Obras de autores lusófonos devem ser lidas no original para
completo desfrute de sua essência. São os casos, por exemplo, de Mia Couto, João
Cabral de Melo Neto, José Saramago, João Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Raduan
Nassar, António Lobo Antunes e Graciliano Ramos. Há que se saborear com deleite
toda a grandeza de seu estilo, sua linguagem, sua sintaxe e semântica, sua
sobriedade e ironia, entre outras filigranas imperdíveis e impossíveis de não
se refestelar de prazer literário. Não foge a essa premissa o esplendoroso O Remorso de Baltazar Serapião, do escritor,
editor, artista plástico, apresentador de televisão e cantor angolano-português
Valter Hugo Mãe. Indispensável é a
leitura da introdução de José Saramago a este livro vencedor do prêmio que leva
seu nome, em 2007. Nela, nosso único Nobel lusófono define: “Este livro é uma
revolução. Este remorso tem de ser lido como algo que traz muito de novo e
fertilizará a Literatura. É impossível que não influa no que se escrever daqui
para diante.”
Passa-se a história numa aldeia portuguesa na Idade Média,
quando uma mulher esposa é tão valiosa quanto uma vaca doméstica. O narrador é
apenas um adolescente com a testosterona em explosão trazendo todo o contexto
macho/fêmea da época inserido num ambiente familiar e social do lugarejo onde
habita.
E num clima que entremeia o fantástico com realidades que
chegam a ser cruéis, predomina a desconfiança persistente da traição de uma
esposa, não tornada factual pelo insano corno. Então, quando a obra ameaça
ficar no marasmo, o rei, uma mulher queimada e uma maldição entram em cena e o
romance sai da aldeia, toma novos rumos e a ela retorna. Aqui, Mãe rasga a
realidade para criar beirando a desumanidade, onde, ironicamente, prevalece o
amor do protagonista.
Uma obra para ser lida com disposição e apetite literários,
sem se esperar descrições simples, mesmices românticas e palavreado rotineiro.
É, em seu âmago, uma obra de arte de um realismo acentuado e enriquecido pelo
fantástico. A violência crua, presença que permeia a obra, dobra-se de quando
em quando ao lirismo nato do autor, enriquecendo sobremaneira a leitura.
É, sem dúvida, um texto que exige do leitor algum
discernimento do contexto regional e do português lusitano, posto que todas as
obras de Valter Hugo Mãe aqui são assim publicadas por exigência do autor. O
que é ótimo, pois se traduzido para o português brasileiro perderia totalmente
sua essência e seu esplendor.
Não perca esta revolução. Nesta leitura apreende-se a força e
a beleza de um descobrimento literário; de um criador artístico sublime
revelando uma língua multiforme, multicolorida. E, definitivamente, um enredo poderosamente
simples o suficiente para não ser superado pela força técnica e de expressão da
própria obra.
Valdemir Martins
18.12.2022
Ilustrações: 1. Capa Editora 34; 2. Capa Editora Globo; 3. Baltazar Serapião; 4. A vaca Sarga; 5. A mulher queimada; Valter Hugo Mãe.
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