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18 de dez. de 2023

A Música de uma Vida

Uma inóspita e enregelada cidade siberiana é o primeiro grande palco deste belíssimo enredo de A Música de uma Vida, do premiado romancista franco-russo Andrei Makine. Tudo começa nessa cidade onde uma forte e longa nevasca ajunta, literalmente, um monte de pessoas em uma estação ferroviária, com composições atrasadas a mais de seis horas.
De repente, o protagonista ouve uma música. Em meio ao caos de pessoas cansadas, sujas, famintas, sonolentas e, incrivelmente conformadas, Makine começa a demonstrar a fortuna intrínseca desse povo russo simples, no início da década de 1970, conformado com o seu eterno e histórico sofrimento. O homo-sovieticus. Aquele que aprendeu a controlar a contestação que é um sentimento universal e, claro, proibido pelo sistema dominante; é censurado pela própria consciência do potencial contestador.

Novamente alguns acordes. “Avanço com a impressão de pegar a ponta de um sonho e nela me instalar”. Assim o protagonista-narrador relata como encontrou o “velho maroto” ao piano. Na viagem então para Moscou, o velho pianista –agora parceiro protagonista - fala de sua vida, sua juventude como músico e as agruras de seus pais, enquanto também músicos, durante o chamado período do Grande Terror Stalinista (1936 a 39), onde uma pessoa era executada tão somente por pronunciar algo ou nome proibido pelo regime comunista.

A obra escorrega para os campos da Segunda Guerra. Mais dissabores e complicações para o velho protagonista, sempre à sombra das escabrosidades e perseguições soviéticas. E, no final, torna à viagem e ao reencontro com o protagonista-narrador. Sempre banhado em música, quando não o som dos obuses, o dedilhar de um piano, a imaterialidade musical norteia a vida do velho personagem Berg, como se não vivesse, apenas ouvisse.

Esta é uma obra curta, equivalente a uma imensa obra literária; muito bonita e triste, constituída por diversas histórias que compõem a história inteira de vida do velho maroto, resultante do talento e da sensibilidade do siberiano Makine, infelizmente um excelente escritor pouco conhecido por aqui, mas altamente recomendado pela sua qualidade narrativa e literária. Fica a ótima dica.

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Valdemir Martins

01.10.2023 

Fotos: 1. Capa do livro; 2. O trem em meio à nevasca; 3. O general e sua filha ao piano; 4. O velho Berg tocando na estação; 5. Andrei Makine.

8 de dez. de 2023

Morreram pela Pátria

Considerada mais uma obra prima da literatura russa do século XX, o livro Morreram pela Pátria, do cossaco Mikhail Sholokhov, prêmio Nobel de Literatura de 1965, além de outros lauréis, cativa-nos já nas primeiras linhas. Num terno tom poético, o autor nos imerge numa chácara das estepes russas, no caótico cenário do fim do inverno, com tudo congelado, queimado e inóspito.

Numa variação radical, Sholokhov passa então para uma linguagem vibrante, extremamente realista, iniciando o que será a narrativa inesquecível de um dos capítulos da brutal ocupação nazista da região do rio Don, ao sul da Rússia, e a histórica resistência do povo e dos soldados russos. Aqui ele se dedica aos dramas pessoais de alguns personagens para que melhor os conheçamos, fazendo assim que nos envolvamos na trama e sejamos parte desta grandiosa luta e poderoso sofrimento impingido à população e soldados naquele local.

Em julho de 1941 a Alemanha Nazista lançou um ataque em massa contra a então União Soviética. A região sul do país, nas proximidades das estepes do rio Don, foi uma das mais agredidas. É sobre essa luta, resistência e sofrimento heroico e a fome do povo russo que Sholokhov escreve com o conhecimento de quem esteve na frente de batalha. Teve enraizado em si os detalhes e sentimentos dessa conflagração que de forma extraordinária e brilhante transferiu para sua obra literária, o que sem dúvida muito lhe favoreceu na conquista do Nobel.

Sholokhov tece um belo comentário sobre patriotismo e sobre as responsabilidades de quem comanda, como um general. O que se contrapõe, de forma acentuada, pela alocução categórica de uma senhora, chamada carinhosamente de “avozinha” por um  soldado, a qual delineia seu ponto de vista sobre a passagem marcante dos batalhões por sua aldeia.

As descrições de batalhas são incrivelmente poéticas, de altíssimo valor literário, pois destacam, nas exposições, as reações psíquicas e da sensibilidade tanto dos personagens, como da natureza ao derredor. Tudo, sempre antecedido por exposições muito humanas de expectativas e procedimentos. O cotidiano da frente de batalhas dos soldados soviéticos, em sua maioria campesinos, mineradores, trabalhadores humildes e, portanto, pessoas muito simples, é relatado de forma extremamente humana.

Estratégias militares passam longe desta magnífica obra que retrata a crueza da guerra vivenciada dramaticamente por pessoas que não pediram para lá estar - e muitas vezes não sabem por que lá estão. Sabem apenas que estão lutando para defender a pátria de uma invasão dos inimigos nazistas alemães e que devem sobreviver também para voltarem aos seus lares e às suas famílias e amigos. E os que não conseguiram, apenas morreram pela pátria.

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Valdemir Martins

08.12.2023 

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Mapa da bacia do rio Don; 3. tanque alemão atolado no rio; 4. Trincheira no quintal das casas; 5. Mikhail Sholokhov.