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21 de fev. de 2023

Desonra, uma reflexão sobre o que nos honra na vida.


Apesar de sabermos, até vulgarmente, que cada ser é feliz à sua maneira, para o freguês regular de uma meretriz na Cidade do Cabo, “nenhum homem é feliz até morrer”, como na última fala do coro de Édipo. E assim, nesta atmosfera, temos o início do intrigante romance Desonra do consagrado escritor sul africano J. M. Coetzee, laureado com o Nobel de Literatura em 2003, e premiado na França, na Irlanda e em Israel; foi o primeiro autor agraciado duas vezes com o Man Booker Prize.

E a felicidade do professor protagonista, encontrada somente nos momentos de alcova com suas conquistas - ou com qualquer outra mulher, pois ele não tem limites - é suspensa quando, arrogante, é desmascarado pelo seu próprio círculo de trabalho.

O excêntrico protagonista sempre esteve cercado de mulheres desde a infância. É um mulherengo incontrolável e Coetzee, inspirado num poema do britânico Lord Byron, cria um enredo brilhante para este incontrolável namorador, um “espírito errante” como na composição byroniana.

Num momento de confronto entre a obra do poeta e esta do romancista, cria-se um ato de colisão do personagem de Byron com o de Coetzee, e é intenso e primoroso. Revela também aqui, sem dúvidas, a genialidade literária do autor. Como o Lúcifer do poeta, o protagonista de Coetzee não age por princípios, mas por impulsos.

E, mais uma vez, um literato traz à baila o degenerado jeito de ser da imprensa moderna: baseado num pretenso fato, traçar narrativas para demolirem-se reputações. Tudo para, irresponsavelmente, garantir audiências e visualizações e, portanto, verbas publicitárias para sobrevivência da corrosiva mídia. Segundo o texto, os jornalistas agem como “caçadores que encurralaram um animal estranho e não sabem como acabar com ele.”

Finalmente, depois de longa procrastinação, o protagonista inicia ensaios para escrever uma ópera sobre Byron na Itália. O que alcança, consciente ou não, são encenações de flashes de sua própria vida como se fossem as do poeta, mudando apenas os personagens e os lugares. E como sua vida, fica incompleta. Assim, como tudo em sua existência, deixa de viver a felicidade, mesmo antes de morrer, corroborando o pensamento de Sófocles.

O livro é uma lição literária e o texto conciso de Coetzee torna-se mais mordaz quando se embrenha nas relações branco-negros no pós-apartheid envolvendo a família do professor, em partes marcantes e decisivas do livro. A violência percorre toda a obra deixando suas marcas tóxicas nos principais relacionamentos e nos abusos, sejam de pessoas ou de animais.

Envolto em sua teimosia e arrogância, o protagonista caminha para a velhice percebendo-a verdadeiramente num confronto direto com sua vida, em uma encruzilhada que lhe ocorre quando tenta conviver com a filha. O que construiu de sólido? E esta é a grande reflexão que a obra nos leva a fazer sobre nossas próprias vidas. Principalmente aos que já suplantaram a chamada meia idade. Somos honrados? O que nos restou de tudo o que fizemos?

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Valdemir Martins

20.02.2023

Obs: Mesmo não tendo a menor sombra de preconceito em seu texto, o livro teve uma forte repercussão na África do Sul, apenas por abordar a existência de conflitos ainda como ranço do apartheid, obrigando Coetzee a abandonar sua terra natal e se estabelecer em Adelaide, na Austrália.

Fotos: 1. Capa do livro:; 2. A Universidade do Cabo; 3. A aula fatídica; 4. A fazenda; 5. A feira; 6. O sacrifício de cães; 7. J. M. Coetzee.

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8 de fev. de 2023

A Segunda Espada: uma história de maio.

Numa narrativa alucinante e riquíssima em referências pessoais, num texto claro e brilhante, o escritor pós-modernista austríaco de descendência eslovena Peter Handke, Prêmio Nobel de Literatura de 2019, leva sua obra A Segunda Espada – uma história de maio a uma das mais brilhantes narrativas do individualismo e da neurose solitária, enquanto, ao descrever seu mundo, o desconstrói através das palavras.

Num texto que inicialmente parece ir tornando-se confuso, aos ajustes primorosos de Handke - um mestre das palavras - vão encaixando-se as situações, os lugares, o tempo, os personagens e os questionamentos. Trechos lembram até divagações de mentes de idosos em suas indefectíveis reminiscências.

Na primeira frase da obra, Handke consegue apreender toda a sensação permanente de solidão que transmite o protagonista, porquanto só ele tem em seu âmago ferido os motivos da demanda: “Então, essa é a face de um vingador!”, quando se olhou no espelho pela manhã. E o motivo do vingador é a disseminação de uma mentira.

Como em outras obras atuais, mais uma vez apresenta-se aqui uma crítica de um literato ao sensacionalismo jornalístico de uma imprensa que apenas procura seus interesses militantes e comerciais sem escrúpulos, deixando de prestar sua principal função que é a de informar a verdade. E as consequências são inúmeras e muitas vezes fatais, como é o caso desta história. E aqui se torna o fulcro do enredo, como numa caixa de surpresas.

Sua crítica política e pregação pela liberdade são sutis: “Mas há uma coisa que eu sei e sempre soube: quero levar uma vida cavalheiresca. E isso é algo que aqueles lá, do outro lado das montanhas não permitem, sequer conhecem algo assim, não têm a menor ideia do que seja une vie chevaleresque. Libertar-se – mas como? Livrar-se dos assassinos dos andares superiores e ingressar no mundo dos cavalheiros – mas como?”

A meta na vida presente do personagem vem de uma inspiração bíblica de longa data, segundo Handke, onde Deus pede vingança para si e para seu povo, concedendo-lhe, assim, o direito – como membro do seu povo – de também pleitear vingança. E, portanto, o autor explora a subjetividade do personagem ao extremo. As divagações pessoais e até filosóficas inundam o texto, a partir de reminiscências desde a infância.

Assim, encontramos aqui mais um grande mestre na digressão no enredo, como o fizeram consagrados nomes (citados por ele), de Homero a Tolstoi, passando por Cervantes. E ao analisar profundamente o sentimento das pessoas que viajavam com o protagonista em um bonde, Handke até transita pelo surrealismo, descrevendo um leitor com o livro de ponta-cabeça e uma pessoa falando ininterruptamente ao celular inoperante, e o comportamento controverso de outros passageiros no veículo. E, de forma recorrente e inteligente, constrói uma história divagando e tergiversando.

Então, Handke nos traz a história de um homem solitário com uma meta na vida. Um solitário que convive com outros na mesma condição. E cada encontro é uma história, um pensamento, uma reflexão. E esta, corroborada por sua qualidade literária e estilo original, é a condição do livro. Uma obra forte, sucinta e sempre ambivalente. Essa solidão – imensa – nos é relatada nas diversidades do cotidiano, onde Handke chega ao extremo de divagar, séria e filosoficamente, sobre a solidão de insetos, animais e até atletas, comparando-os, inclusive, com marionetes. Como ele escreve: “E todos pareciam ocupados em seus silêncios”.

Ao final, Handke tece uma eloquente narrativa da solidão sentida, onde se á vulnerável e ao mesmo tempo invisível. Aquele despercebido das multidões só é notado e valorizado pelo próprio protagonista, segundo se subentende, sem mágoas. Condição que é difícil de aceitar, sem condicionar-se ao desprezível, ao frágil e ao insignificante. No entanto, enquanto todos passam precipitados em seus egos e devaneios, ele estava feliz, pois era o único a caminhar sob um belíssimo céu azul.

A tudo isso, some-se a permanente expectativa pelo deslanche e pelo desfecho da história, deixando, quem se deleita com um bom texto literário, preso atentamente à leitura.

Este é um livro surpreendente, mais que recomendado para quem procura deleite literário e não apenas uma história bem escrita. Uma obra fadada a ser um clássico.

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Valdemir Martins

08.02.2023

Fotos: 1. Capa do livro:; 2. Olhando-se no espelho; 3. Solitários no bar; 4. Picardia, na Île-de-France; 5. Ruinas de Port-Royal des Champs; 6. Peter Handke.

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