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2 de ago. de 2023

Um Passageiro em agonia

O personagem Kid Talidomida define a certa altura de um diálogo impossível: “Estamos falando aqui de graus infinitos de liberdade, por isso é sempre possível efetuar uma rotação e fazer com que tudo pareça diferente.” Estes são os devaneios de loucura nos desvãos da consciência que nos presenteia o genial escritor norte americano Cormac McCarthy nos estertores dos seus 90 anos. Parece sem nexo. Entramos num mundo de seres ilógicos, com nadadeiras. E assim iniciamos a leitura do seu livro O Passageiro.

Ato contínuo, vamos ingressar num texto com o DNA específico de McCarthy. Personagens das sombras infestam, então, o início da obra, seja em fantasias ou em realidades. O leitor deverá ter paciência e ir assimilando gradativamente a grandeza do texto que tem pela frente.

O Passageiro narra a história de um mergulhador de resgate, assombrado por perdas, solitário em meio a muitos amigos, e que, perseguido por uma conspiração que não compreende, anseia por um desfecho de vida mais aceitável do que tudo que já presenciou e conviveu.

Personagens, locais e situações muito lentamente vão se encaixando num complexo quebra-cabeça, como um up no ânimo de leitura. Os passados ressuscitados vão encorpando o enredo, desvendando e construindo personagens, suas histórias e conexões.

Boa parte dos diálogos são fortes, construtivos e consistentes, Veja este trecho: “Talvez seja apenas porque as pessoas dizem coisas sobre você que não falam na sua cara. Coisas ruins? Não. Apenas coisas sobre você que podem ser verdadeiras. Você acha que é capaz de aprender tudo sobre si mesmo por conta própria?”. Realmente, dá muito no que pensar, não é mesmo? São diálogos muitas vezes percebidos como irreais, mas que têm um imenso teor de verdades a serem refletidas. Tratam de vida, realidade, culpabilidade, esperança, relacionamento, lógica, fantasia, amor, perda e solidão, entre outros temas profundos.

Em trechos cruciais, passeia entre o sonho e o burlesco, flertando com a fantasia em imersões na psique de personagens fundamentais. Muitas vezes, inversamente a sequências de sua obra Meridiano de Sangue, a violência aqui é psicológica – e até filosófica - e terrivelmente perturbadora.

Uma obra difícil, com alguns diálogos técnicos aborrecidos, que demanda paciência e imensa curiosidade para, finalmente, desembarcar em satisfação após a miríade de locais, situações e personagens transpostas para saber a incrível história do protagonista Bobby Western.

Um imenso poema moderno. Um livro brilhante, cujo projeto ficará concluído com o segundo livro deste díptico do Prêmio Pulitzer McCarthy: Stella Maris.

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Valdemir Martins

02.07.2023

Fotos: 1. capa do livro; 2. Mergulhadores profissionais; 3. Bar típico de Nova Orleans; 4. Port Sulphur; 5. Plataforma de petróleo na Bolívia; 6. Cormac McCarthy.