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16 de abr. de 2024

Caminhamos para um Admirável Mundo Novo.

Com um início extremamente descritivo e técnico, Aldous Huxley principia sua considerada obra prima Admirável Mundo Novo de forma a condicionar o leitor àquilo que irá enfrentar em sua leitura. Assim como os personagens, seres desenvolvidos nos laboratórios do romance são também condicionados.

Vemo-nos, de repente, no ambiente de outro mundo. Um que nunca imaginaríamos, como pessoas normais, tecnicamente muitíssimo evoluído e assombrosamente vivenciado, onde as pessoas não são geradas naturalmente e sim produzidas artificial e industrialmente com características para atender às necessidades dessa então nova civilização. Assustador.

Uma civilização que matou de fome um bilhão de pessoas naturais para facilitar seu controle sobre o bilhão sobrevivente e reduzir o consumo de comida – muito próximo da narrativa da atual Agenda 2030 disseminada pelos globalistas da Nova Ordem Mundial. Segundo seu mote doutrinário, não há civilização sem estabilidade social. E não há estabilidade social sem estabilidade individual. Daí a programação de cada indivíduo antes de nascer.

Os óvulos são fecundados de acordo com as características genéticas desejadas para determinada atividade e região do planeta; e reproduzidos exatamente idênticos em até 96 mil exemplares por lote. Servidores braçais, por exemplo, não precisam ter inteligência desenvolvida, função esta inibida e condicionada já em sua criação. E uma exígua quantidade de fortes inteligentes é permitida para se formar uma elite administrativa.

A certa altura da obra um administrador se expressa para um grupo de estudantes: “Feliz gente nova! Nenhum trabalho foi poupado para tornar a vossa vida emotivamente fácil, para preservá-la, tanto quanto possível, até das próprias emoções”. Para ele, “... é aí que está o segredo da felicidade e da virtude: gostar daquilo que se é obrigado a fazer. Tal é o fim de todo o condicionamento: fazer as pessoas apreciarem o destino social a que não podem escapar”.

Em meio a esse grotesco, surgem dúvidas cruciais e uma espécie de romance. Nada mais desafiador para uma civilização daquelas, onde ninguém nasce apenas é criado; não existe casamento e família; cada indivíduo tem que ser autossuficiente; não há religião, doenças ou time do coração. Não há emoção. Não existem problemas. Não existe Deus; existe Ford. Uma verdadeira utopia.

Quando Huxley publicou esta obra em 1932, não se imaginava a informática e a computação. Mas mesmo assim o autor conseguiu desenvolver um enredo fantástico de evolução tecnológica sem a utilização desses elementos. Usou apenas a combinação de um desenvolvimento de tecnologia reprodutiva, da hipnopedia, do uso de psicotrópicos, do condicionamento tradicional e da manipulação psicológica, obtendo um contexto de mudanças profundas na sociedade e na civilização como um todo.

Após a leitura desta estarrecedora obra distópica, sob reflexão, podemos imaginar a monstruosidade que Huxley poderia ter criado caso tivesse, à época, conhecimento da tecnologia atual como um todo. E, aí então, resvalaremos em nossa realidade atual para perceber que estamos a alguns passos de adentrarmos num admirável mundo novo.

Talvez não ao de Huxley, cujo objetivo principal era gerar felicidade a um custo calculado e planejado, mas ao de algo muito pior, determinado e gerenciado pelo poder econômico a usar os habitantes terrestres como simples consumidores controlados, gerando riquezas permanentes aos poderosos que hoje controlam a economia mundial.

Antes de finalizar, Huxley dá um toque perfeito de que a imprensa é imutável. Mesmo num mundo ultra evoluído, ela mantém sua tradição de fazer estragos dedicando-se ao sensacionalismo. E finaliza esta brilhante obra distópica com a ironia de se viver uma sofrida vida normal em detrimento de uma feliz vida ideal, algo somente possível num Admirável Mundo Novo.

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Valdemir Martins

26.02.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Laboratório; 3. Incubadores de bebês modificados; 4. As classes sociais; 5. Soma, a pílula da felicidade; 6. Um mundo paradisíaco; 7. Os clones trabalhadores; 8. Personagens do filme; 9. Aldous Huxley.

10 de abr. de 2024

Um Vulgar Copo de Cólera.

Decepção. Isso. Decepção foi o que encontrei ao ler Um Copo de Cólera do badalado escritor brasileiro Raduan Nassar. Como não conhecia seu trabalho e em função das críticas lidas sobre sua obra anterior Lavoura Arcaica, até então, esperava algo próximo de José Lins do Rego e até de Graciliano ou Euclides.

Aqui, num curto texto machista, simplório e às vezes vulgar, duma temática vazia e cotidiana, ele escreve tentando o estilo Saramago, de uma só braçada, sem parágrafos ou raros pontos finais, misturando linguagem corriqueira com palavras rebuscadas – como se usasse o Google para auxiliá-lo na troca de repetições – e, como ele próprio descreve “toda essa agressão discursiva já beirava exaustivamente a monotonia” quando cheguei ao primeiro terço do livro. Muito chato.

Como um “biscateiro graduado” – assim se intitula o protagonista – seu discurso segue prolixo e desinteressante, criticando e ridicularizando sua companheira (e seu casal de empregados), sem qualquer objetivo a não ser uma impactante potência verbal, seu único valor literário. Simplesmente um forte vomitar de palavras fortes, desinteressantes de leitura.

Este Copo de Cólera parece-me um texto descarregado do intelecto de um ex-estudante de universidade pública, sem qualquer experiência de vida e parece que se inspira nos detritos televisivos e nos seus docentes militantes de alguma coisa da moda. Sim escreve bem e tem estilo, mas falta-lhe conteúdo para erigir uma obra literária. Tem um texto prolixo e vazio, rico em tentativas “estilosas” de contrações insípidas de palavras.

Seu discurso lembra, às vezes, elucubrações oriundas de quem está em estado contemplativo, sob o efeito de algo ingerido. Não produto de inspiração poética, sentimental ou algo puro que se desprende da alma, ou mesmo de devotamento histórico como a crítica sugere sobre seu livro anterior.

Claro que ele não tem que escrever como eu gosto. Ele é Raduan Nassar. Tem quem elogie e goste, e respeito. Tem até quem o considere “um clássico de nossos tempos”. Eu, particularmente, detestei e espero que respeitem.

Vou ler Lavoura Arcaica para lavar a má impressão.

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Valdemir Martins

11.02.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Capa do Lavoura Arcaica; 3. Elogios aos Lavoura Arcaica; 4. Raduan Nassar.

2 de abr. de 2024

Embarque nesta viagem. Você jamais irá esquecê-la!

De todas as armadilhas da Natureza, talvez a mais cruel seja a dominação pelo gelo. Isto principalmente no século XIX e princípios do XX, quando os então impérios, em especial o britânico, somavam os esforços de suas esquadras ao desenvolvimento da ciência e às novas descobertas geográficas. E é sobre uma destas impressionantes armadilhas que trata o livro A Incrível Viagem de Shackleton: a mais extraordinária aventura de todos os tempos, do pesquisador, escritor e jornalista norte americano Alfred Lansing, publicado em 1959.

Esta extraordinária obra traz o relato da fracassada Expedição Imperial Transantártica Britânica de Sir Ernest Shackleton e sua tripulação ao Polo Sul em 1914. Felizmente todos sobreviveram após muitas e muitas agruras, ao contrário do que aconteceu à expedição liderada pelo prestigiado capitão Sir John Franklin, com os navios Erebus e Terror, em 1845. Eles deixaram a Inglaterra à procura da cobiçada Passagem Noroeste que liga os Oceanos Atlântico e Pacífico através do Círculo Polar Ártico.

Contava com uma tripulação de mais de cem homens, os equipamentos mais avançados da época e provisões suficientes para três anos de viagem. Ao entrar na zona polar, no entanto, os navios depararam com o segundo verão consecutivo sem degelo, ficaram presos e ninguém sobreviveu. A história é contada no livro de ficção histórica O Terror, de Dan Simmons, cujo comentário pode ser lido em
https://contracapaladob.blogspot.com/2021/02/o-terror-realmente-um-livro-para-fortes.html

No caso de Shackleton, Lansing teve o especial cuidado de entrevistar dez sobreviventes e estudar e consultar inúmeros diários pertencentes a diversos membros da tripulação. E pôde constatar que, apesar das numerosas dificuldades, nunca houve terror. A viagem ocorreu em 1915 e destinava-se a ser a maior e mais notável das expedições: atravessar de forma pioneira o continente antártico. O navio comandado por Shackleton chamava-se Endurance e sua tripulação consistia de 27 homens das mais diversas formações técnicas e 70 cães canadenses para os trenós da travessia.

Em estilo e ritmo de romance histórico, Lansing inicia seu texto com bastante clareza e numa sequência bastante estimulante para a leitura, apesar da quantidade de informações e dados. Apresenta todos os empolgantes preparativos, financiamentos, equipe, etc. E assim iniciam a viagem via Buenos Aires e Ilhas Geórgia do Sul. Atravessam as Ilhas Sandwich e entram no complicado Mar de Weddell, já no Círculo Polar Antártico. Lá ficaram encalhados por nove meses, aprisionados pelo gelo traiçoeiro, até o Endurance ser esmagado.

Sem nenhum indício de pavor, iniciaram sua longa jornada de retorno caminhando através das banquisas de gelo, sempre em direção ao oeste, onde deveria existir terra firme. Não fosse a autoconfiança inabalável de Shackleton, não teriam sobrevivido às extremas e praticamente inviáveis condições físicas e psicológicas pelas quais passaram. Isso durou mais de um ano improvável. E o capitão Shackleton foi sem dúvida o grande responsável pela união e sobrevivência do grupo, pois suas atitudes tomavam sempre a forma de otimismo. E funcionavam de maneira a inflamar as almas de seus homens.

Além de enfrentarem as condições marítimas mais inóspitas e perigosas do planeta, ainda tiveram uma aventura terrestre inesquecível. Fome, sede, frio gélido, falta de higiene adequada, umidade permanente e outras condições inóspitas, moral baixo, a ameaça permanente de catástrofe sobre suas cabeças e muita, muita esperança marcaram a sobrevivência impensável do grupo.

Quem embarcar nesta viagem, jamais conseguirá esquecê-la.

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Valdemir Martins

10.02.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Shackleton; 3. A Endurance atravessando o gelo; 4. Endurance esmagada pelo gelo; 5. A longa caminhada carregando barcos, alimentos e apetrechos; 6. O mapa final da viagem; 7. Alfred Lansing.

Mais fotos e vídeos da viagem:
https://marsemfim.com.br/a-saga-de-ernest-shackleton-nos-mares-austrais/

24 de mar. de 2024

O Ruído do Tempo e da História.

Confusão é o sentimento de que Julian Barnes impregna o início de sua consagrada obra O Ruído do Tempo, em função de sua proposital fragmentação narrativa. Cabe ao leitor, no seu deleite, ir juntando as peças e informações para descobrir a formação inicial de um brilhante texto.

Confusa também é a sofrida história do músico russo Dmitri Dmitriyevich Shostakovich, compositor e pianista da era soviética que se tornou internacionalmente conhecido em 1926 após a estreia de sua Primeira Sinfonia, composta aos 19 anos, e foi considerado ao longo de sua vida como um grande compositor. Barnes fala da infância complicada do protagonista que o obrigou a ser o “homem da casa” logo cedo, aos 16 anos. Mas, com todo o seu talento, nesses tempos já era um talento precoce e brilhava nos palcos de Moscou. Mas apesar disso e mesmo após a consagração, sempre se sentiu um menino perdido.

Teve uma relação extremamente complexa e crítica com o regime comunista. Quando estava ainda no Conservatório, a Associação Russa de Músicos Proletários iniciava então uma campanha contra a hegemonia das elites nas artes, na qual Shostakovich estava incluído, pregando que “os trabalhadores tinham que ser treinados para se tornar compositores, e toda a música viria a ser instantaneamente compreensível e agradável às massas”. Além de utópico, isso contrariava frontalmente sua formação iniciada com a mãe ao piano desde os nove anos.

Além do azar de Stálin não ter gostado de sua sinfonia, teve que enfrentar o Estado que acabou assumindo também as tarefas das artes e os burocratas do Regime passaram a controlar a produtividade também dos músicos, não importando sua qualidade. Sua ópera Lady Macbeth de Mtsensk, consagrada até internacionalmente recebeu crítica positiva do Pravda por ser uma conquista internacional soviética, mas quando os humores políticos internos mudaram, o mesmo Pravda destruiu e ridicularizou a obra por se tratar de uma expressão depressiva da burguesia.

E, como delata Barnes, o controle das artes passou a assumir um nível de censura política e social de forma radical e absurda, por pessoas absolutamente ignorantes e brutais. Daí a patente queda das artes soviéticas, principalmente russas, enquanto durou o bolchevismo. Dali para frente na história, as manifestações artísticas em regimes social-comunistas basicamente deixaram de existir, em função do baixíssimo nível do que era produzido para manipular as massas ignorantes e rústicas. O que perdura até hoje nesses padrões de regimes quase sempre totalitários.

Mas, por diversos motivos, Shostakovich foi sobrevivendo, submetendo-se na maioria das vezes aos caprichos dos líderes comunistas e aos censores. Sua potente e grandiosa Quinta Sinfonia em Ré menor, opus 47, de 1937 – sua primeira obra dentro das novas regras governamentais – traz uma poderosíssima crítica imperceptível ao regime e o consagra internacionalmente. E assim, com muita inteligência, esperteza e competência foi conduzindo sua vida e obra sob permanente coação e intimidação. E é nas reflexões do protagonista onde Barnes desfila toda a ironia, questionamentos e paixões de Shostakovich com relação ao regime soviético, seus líderes e tiranos em geral.

Sua música expressa o colorido orquestral da escola russa e a diversidade de uma enorme produção em todos os gêneros. Apesar de criticado por sua forçada adesão política, era admirado por compositores da grandeza de Bela Bartok e respeitado por contemporâneos como Stravinsky e Prokofiev. Mas, a qualidade de sua obra se impôs e se mantém nos programas de todas as salas de concerto da atualidade.

E sua música, como praticamente a completude delas, sobreviveu ao totalitarismo. As obras de Shostakovich superaram o ruído do tempo e da história.

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Valdemir Martins

28.01.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Shostakovich pela FineArt America; 3. Cena da ópera Lady Macbeth; 4. Shostakovich compondo; 5. Capa da revista Time; 6. Recebendo a notícia da doença fatal; 7. Julian Barnes.

 

15 de mar. de 2024

Nove Noites para um suicídio e duas gerações.

O livro começa complexo, pesado. E aos poucos o leitor vai montando o enredo diante das informações que vai assimilando em Nove Noites, mais um trabalho característico do jornalista, talentoso e premiado romancista brasileiro Bernardo Carvalho. Apesar de seu texto objetivo, sua fragmentação narrativa exige maior atenção do leitor, uma de suas características principais. Nesta obra, este início torna-se um exercício de perseverança para o leitor mais interessado em leituras fáceis.

A trama se inicia na cidade sul maranhense de Carolina, na divisa com Goiás (hoje Tocantins). Um enfoque em etnologia e antropologia, ciências nas quais o protagonista e demais personagens estão envolvidos, marcam a base de veracidade deste romance sobre fatos e pessoas reais. Narrado em dois tempos, a obra revela dois protagonistas: o etnólogo americano Buell Quain e o narrador-autor brasileiro Bernardo de Carvalho.

Ao relatar as viagens de estudo e contatos ou relacionamentos, o narrador revela costumes indígenas pouco conhecidos, bem como as interações com nomes importantes como Lévi-Strauss, Ruth Benedict e os irmãos Villas-Bôas. O protagonista vai sendo revelado como uma figura extremamente problemática, apesar de rica, jovem - porém vivida – e inteligente.

As descrições sobre a região do Xingu, as fazendas, os indígenas e as aventuras de um pai maluco enriquecem sobremaneira e dão uma boa suavizada na leitura que deixa de ser tão densa. Por aí, descobrimos que o Vaticano tem terras extensas na região e a denúncia de que nas terras marginais às reservas indígenas vive a escória do Brasil, tipo degenerado de brasileiros que se influenciam negativamente e exploram os indígenas.

Enfim, para contar a história infeliz do norte-americano no Brasil no final da década de 1930, Carvalho, com sua ótima veia jornalística, faz excelentes explanações sobre as regiões, comunidades e costumes que envolveram o ianque quando aqui viveu. Além de que o livro torna-se também um laboratório de psicologia ao analisar culpas, dúvidas, influências, atitudes e responsabilidades.

São na realidade duas histórias contadas paralelamente, sendo uma o fulcro da outra. Misto de ficção e fatos reais, Carvalho viveu pessoalmente os fatos que relata no crepúsculo do romance. E o narrador vai de sua infância à maturidade – como num romance de formação - para contar sua fantástica história em busca de revelar outra história que o despertou em um artigo de uma antropóloga num jornal. E o resultado é este romance que cresce, cresce como um bolo a cada página para se transformar numa saborosa narrativa.

Por seu valor de teor jornalístico, este livro tornou-se leitura obrigatória na Fuvest e em diversos cursos de Comunicação pelo Brasil.

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Valdemir Martins

Capa: 1. Capa do livro; 2. A região indígena; 3. Bernardo criança e o índio Xingu; 4. Buell Quain; 5. O prédio em Nova Iorque; 6. Bernardo de Carvalho.

17.01.2024

6 de mar. de 2024

A leitura branda de O Lugar

A maioria das pessoas já passou pelo agastamento de um funeral familiar. Descrevê-los, nem pensar. Mas a ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 2022 (entre outros), a francesa Annie Ernaux enfrentou o desafio e reviveu, em detalhes, a morte e os funerais do pai de sua protagonista no livro O Lugar. É de uma tristeza e de uma realidade incomparável.

Desta forma principia seu romance familiar, uma vez que a protagonista é ela mesma neste seu trabalho autobiográfico ou autossociobiográfico como prefere a Fósforo Editora. Debruça-se na história do pai, com ricos detalhes e considerações sociais e psicológicas, e pleno de nostalgia.

Numa linguagem simples, sem arroubos literários, neste seu primeiro livro Ernaux desfia os hábitos, os costumes e a sociedade na região de Le Havre, no norte da França – provavelmente na cidade de Yvetot -, principalmente no período da Segunda Guerra e no pós-guerra. É também uma história simples, até corriqueira, de uma família, suas comunidades, segredos, sofrimentos e alegrias. Ali nasceu e cresceu a menina Ernaux, que apesar das dificuldades tornou-se escritora.

A obra desperta reminiscências nos leitores, o que a torna atraente para a leitura. Mas não prende o leitor pela ansiedade de se saber a próxima ação do livro. Pois, trata-se de um texto brando sobre a vida real numa época ultrapassada.

Aos dezessete, ocupada com as necessidades e vontades intrínsecas da idade, vivia sendo recriminada pelo pai que pouco aceitava a evolução e o progresso. Às mudanças dos tempos. Um homem que disse a ela “Os livros e a música são bons para você. Eu não preciso de nada disso para viver”. Um ser vivendo em seu próprio mundo.

Após largar a universidade no meio do curso, Ernaux foi viver a própria vida em Londres e depois voltou para estudar Letras. Após o casamento, o genro distante, o neto e a velhice dos pais. O pai doente. Talvez não sobrevivesse à leitura que ela fazia de Os Mandarins, da Simone de Beauvoir. E daqui, retornamos ao funeral.

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Valdemir Martins

Capa: 1. Capa do livro; 2. O funeral; 3. Yvetot quando ela nasceu; 4. Annie estudante; 5. A autora na atualidade.

11.01.2024 

27 de fev. de 2024

Andando Por Lugares Devastados

Quase toda a ruína que uma guerra propicia pode ser observada no livro (e filme) O Menino do Pijama Listrado, do escritor irlandês John Boyne, cujo enredo, desenvolvido de forma brilhante pelo autor, traz ao leitor as devastações causadas pelos nazistas na vida de todos os envolvidos. Tanto nos soldados e suas famílias, como nos prisioneiros e nas áreas físicas afetadas, mas, principalmente, na mente humana.
Para Boyne, sua história, apesar de muito bem contada, ficou incompleta. Faltava contar as consequências da guerra nos sobreviventes e seus descendentes. O espólio e o rescaldo do maior flagelo humano dos tempos modernos. E aqui está o autor com a continuação – escrita durante a pandemia - da sua obra mais famosa, lançando Por Lugares Devastados, onde nos apresenta o drama das mentes e as culpas num intenso romance de pós-guerra.

A protagonista é nada menos que Gretel, a filha do chefe do campo de concentração de Auschwitz e irmã de Bruno, o protagonista do primeiro livro. E sua história, a partir do fim da guerra, é contada em dois tempos simultaneamente, entre os 15 e os 91 anos. Deslumbrante até o final e tão ilusório quanto os banhos nos campos de concentração.

Neste ínterim, Boyne volta-se para o interregno entre essas idades da protagonista, cujos traumas evidenciam-se acentuadamente fazendo de sua vida uma verdadeira montanha russa de emoções. E mesmo refugiando-se a 17 mil quilômetros da Europa, Gretel continua encontrando fantasmas da guerra. Mas, no final, ela vai mesmo é defrontar-se com assombrações, perspectivas obscuras e terror em seu próprio quintal aos 91 anos.

É comum encontrarmos na internet e até na mídia uma enxurrada de críticas nefastas a estes dois livros de Boyne. Todas de cunho pessoal e nenhuma delas de caráter literário. Esse fato denota quanto muitas pessoas hoje em dia estão mais preocupadas em criticar aspectos políticos, ideológicos, psicológicos e sociais de uma obra. Não têm o mínimo de senso crítico para perceber que se trata de arte e, como tal, merecem apenas, neste caso, as críticas específicas de especialistas em literatura. A analista do jornal Folha de S. Paulo Juliana de Albuquerque chega ao absurdo de considerar o livro como infanto-juvenil (sic) e a declarar que caso não tivesse que fazer uma resenha do livro jamais o teria lido, numa demonstração claramente preconceituosa para uma “jornalista” metida à crítica literária. Isto, para citar apenas um caso que considero grave.

Porém, John Boyne é um excelente contador de histórias. Um dos melhores. E a descrição direta de cenas alegres e principalmente as de tensão extremamente tristes são simplesmente brilhantes, emocionantes e fluídas. Um grande romancista deixa, como ele, as grandes surpresas, jamais esperadas, para o fim. Seu suspense é lírico e envolvente. Seu romance é sobre culpa. A nossa, a dos outros, e as dos que nos são caros.

Fica a minha recomendação enfática para a leitura sequencial de O Menino do Pijama Listrado e Por Lugares Devastados, ambos pela Companhia das Letras.

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Valdemir Martins

Fotos: 1. Capa do Livro; 2. Gretel com a mãe e o irmão; 3. Torturada pela Resistência Francesa; 4. Aos 91 anos; 5. O prédio em Mayfair; 6. John Boyne.

06.01.2024 

16 de fev. de 2024

Tudo é Rio: elogiar é plágio.

Elogiar Carla Madeira é plágio. Todos o fazem. Até os críticos mais rigorosos. Seu livro de estreia Tudo é Rio, de 2014, é uma obra de qualidade literária reconhecida com atraso. Estreou e não brilhou, por conta da editora da época que não investiu no seu talento. Jornalista e publicitária mineira, Madeira mudou de editora e em 2021 teve sua obra revisada e relançada pela Record e o sucesso, tão grande, levou-a a ser a escritora brasileira mais lida naquele ano, perdendo só para o fenômeno Itamar Vieira Júnior e seu Torto Arado (veja análise em https://contracapaladob.blogspot.com/2021/01/ver-os-homens-derramando-sangue-para.html ).

Em sua linguagem direta, crua e sucinta, Carla inicia esta obra chocando. No ambiente, no clima, no relacionamento, no sexo excitante e na religião desacreditada. Na perda da inocência. E, como um rio, tudo passa ligeiro e indelével. Suas metáforas são brilhantemente colocadas enriquecendo o texto e a compreensão de toda uma situação - até complexa – numa única frase.

Delicadamente Carla passa a expor a amizade, o amor e a família; afrontosamente Carla desenrola o terrível ciúme, o casamento; tudo bordado com os costumes de uma época. E assim ela desenvolve o enredo costurando vidas pregressas – como no vestido da noiva - para nos entranharmos, ansiosamente, nas tramas do livro.

E os desafios, desaforos, dão lugar ao intenso sofrimento. Triplo. Como escreveu a própria Carla “a dor vicia enquanto mantém a gente vivo”. E em meio a um intenso sofrimento de morte e desencontro, ela abre espaço para um discurso sobre Deus, para consolo ou raiva de quem quer apegar-se a Ele. O julgamento vazio, inconsequente, arrebentando pessoas bondosas e extraordinárias é outra linha crítica no cinzelado texto da autora. Mas a justiça, divina ou não, sempre se faz presente.

Esta obra-prima não trata de um triângulo amoroso como algo simplório e corriqueiro como faz crer o divulgado pela editora e propalado nos sites de livrarias. Trata-se de um belíssimo caso de amor atravessado por uma puta. Enquanto o casal tem muito amor, apenas suspenso por uma tragédia, a mundana tem tão somente paixão e tesão, e efêmeros, como um verdadeiro desafio que foi superado. 

Esse é o fulcro deste esplendoroso romance escrito como se confeitado. Poético às vezes, agressivo com frequência, mas fluido com leitura fácil e agradável. Carla consegue usar linguagem simples, popular, sem ser vulgar. Pelo contrário, enriquecendo as narrativas com o que lhe é imensamente adequado.

São aqui muitas vidas, muitas feridas e muitas felicidades. Dor e alegria. Assim a vida corre, arrasta, envolve, revira e deságua. Assim, tudo é rio.

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Valdemir Martins

Fotos: 1. Capa do Livro; 2. A carpintaria; 3. A família feliz; 4. O bordel; 5. Final feliz; 6. Carla Madeira.

30.12.2023