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27 de mai. de 2024

O Coelho Maldito e outras maldições

Numa linguagem simples e direta a sul-coreana Bora Chung desperta nossa atenção, em sua obra Coelho Maldito, para exatamente a importância das palavras simples e diretas proferidas por pessoas em seus comentários. Uma experiência que todos os leitores já devem ter passado na vida, quando explanações ou palavras suas são ignoradas pelas pessoas que mal educadamente fingem que prestaram atenção.

Na realidade o livro traz uma coletânea de contos desta prestigiada escritora oriental sendo esta sua primeira obra publicada fora da Coreia. Coelho Maldito é o título do surpreendente conto de abertura que nos leva a uma fascinante historieta fantasiosa e sarcástica sobre maldição e vingança.

Cabeça, o premiado* segundo conto, é suspense escatológico. O grotesco e o improvável tornam-se ansiosamente envolventes e ressurge a vingança, alertando-nos para a mansidão e a falsidade. O seguinte, Dedos Gélidos, traz a escuridão permeando as narrativas de falsidade e mentira. Menorreia é literalmente uma descarga de improbabilidades, deixando-nos incrédulos. E expõe um alerta importante sobre as narrativas impositivas e tóxicas, principalmente as empregadas pelos poderosos.

Em Adeus, Meu Amor temos um forte alerta sobre a IA (Inteligência Artificial) superando a nossa inteligência normal, sentimental e humana. Já em Armadilha o alerta é sobre a ganância incomensurável e trágica. O abuso e exploração da ingenuidade e da fragilidade humana é o tema do fantástico conto Cicatriz, corroborado pela perda da infância e do sentido da vida.

Lar, Doce Lar é o conto que demonstra o perigo de um anticapitalista que não trabalha e vive do suor e do sacrifício da mulher que, sozinha, adota uma criança inexistente. A seguir, O Senhor do Vento e da Areia desfaz uma maldição e em Reencontro encontra-se permissão para continuar vivendo.

Ao tempo de sua insolência literária, Chung coloca alta dose de simbologia e metáforas em seus textos, deixando fortes recados subliminares aos leitores. Coelho Maldito é uma obra literariamente corajosa e irreverentemente diferenciada e digna representante da cultura popular das gerações contemporâneas. Provavelmente em função disso tornou-se uma das finalistas do International Booker Prize em 2022.

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Valdemir Martins

01.04.2024

*Prêmio Yonsei de Literatura de 1998.

Fotos: 1. Capa do livro; 2. O coelho maldito; 3. A cabeça na privada; 4. O acidente; 5. O prédio antigo; 6. Boara Chung.


17 de mai. de 2024

Estrela da Manhã traz luz ou escuridão?

Estrela da Manhã
tem início num crepúsculo. Familiar, poético eterno. É o mais recente romance do premiado norueguês Karl Ove Knausgård. Mas nem tudo é rotina simples e plácida como aparenta. Algo surpreendente vai acontecer. E com essas expectativas o autor nos conduz pelas histórias de nove protagonistas em Bergen - a mais bela cidade de fiordes da Noruega -, arrastando, numa leitura agradável, o fantasma da finitude humana.

Arne está em férias caóticas com sua família e Knausgård explora magistralmente o relacionamento deles e ainda acrescenta amigos inquietantes e uma bebedeira assustadora antes do clímax interrompido. Já a pastora Kathrine, abordada frequentemente por um estranho, põe em xeque não só questões bíblicas que abordam sacrifícios e mortes como, repentinamente, seu próprio casamento.

Na terceira história, Emil comete um erro que o persegue pela noite adentro, quando, após o ensaio de sua banda, algo inacreditável, como ocorreu com Arne na primeira história, acontece com ele. Já Iselin surge como uma rica protagonista na história seguinte, brindando-nos com inúmeros fatores psicológicos, provocando provavelmente muitos leitores a refletirem sobre seus relacionamentos.

Solveig, a enfermeira que se preocupa na assistência não só dos pacientes, mas também de seus familiares conduz a história seguinte. Aqui Knausgård coloca-nos à frente de experiências de vida e morte para reflexão do que nos é mais importante, mesmo vivendo numa área rural. E aqui o autor retoma a segunda história, numa sequência de intermitências das histórias tecendo o início de uma malha de enredo. E, então, a pastora Kathrine continua com suas dúvidas reais e existenciais e, com isso, surge a maior de todas as dúvidas.

E, na história seguinte, introduz o jornalista Jostein, com uma severa crítica aos artistas pretensiosos. É um sujeito inconsequente em tudo que faz na vida, seja pessoal ou profissional, que consegue manter-nos num suspense envolvente, apesar de extremamente vulgar. Turid, sua esposa, é a protagonista da história seguinte, como cuidadora de deficientes físicos e mentais numa asilo. E sua vida se complica quando ela se descuida.

Arne volta à cena para descobrir que sofreu um acidente; que sua esposa estava em crise e que havia um animal estranho em sua casa e um gato decapitado na da sua mulher. Kathrine vê no mercado o homem que havia sepultado naquele dia, enquanto seu marido acha que ela tem um amante. Já Iselin fica às voltas com um intruso e acha que é mais uma visão. O jornalista Jostein consegue uma grande matéria e sua esposa Turid está numa enrascada aterrorizante.

Egil, o amigo de Arne da primeira narrativa, constitui-se no protagonista da oitava e o mais rico personagem deste livro. Knausgård consegue torná-lo um ser único com múltiplas personalidades, incoerente na retrospectiva de vida, mas absolutamente coerente no momento da história. Enfrenta toda uma tempestade de pensamentos sobre fé e liberdade, desembocando na filosofia. É a história mais longa e mais pesada pelos inúmeros conceitos em discussão, e nela inicia-se um elo com a pastora Kathrine.

Fatos estranhos vão aparecendo progressivamente nas histórias: calor intenso, alterações comportamentais de pessoas e animais, sons e uivos impressionantes, um morto-vivo, enfim, alterações de toda ordem aumentam subliminarmente as expectativas de suspense e terror do romance.

A temática familiar em todas as dimensões é abordada nesta obra, numa exuberância de situações do cotidiano em casa, no trabalho, na escola e na sociedade. Tudo num contexto contemporâneo e farto em citações musicais, dos clássicos aos modernos, onde convivem geralmente três gerações e seus cuidados e conflitos.

Knausgård coloca um liame de fantástico atravessando todo o enredo, como uma sombra que se esparrama nas problemáticas dos diversos protagonistas, os quais, na essência, apresentam os mesmos problemas, experiências e características de inúmeros leitores.

Dramas existenciais são profundamente analisados num longo ensaio sobre a morte incrustado nas histórias; e um longo devaneio de um personagem em coma traz a fantasia como seu exemplo prático.

Estrela da Manhã é o que Jesus se autodenominou ou é o Diabo descrito no Livro de Isaías? Leia este livro e descubra. Vale a pena.

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Valdemir Martins

21.03.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. A estrela supernova; 3. A invasão de caranguejos; 4. A pastora; 5. A linda cidade de Bergen; 6. O chalé na montanha; 7. O hospital psiquiátrico; 8. Os penhascos; 9. O autor Karl Ove Knausgård.



7 de mai. de 2024

Os arrulhos literários de O Pombo-torcaz.

O polêmico e consagrado escritor e editor francês André Gide, Prêmio Nobel de Literatura de 1947, sempre esteve envolvido na defesa de grupos minoritários e principalmente do homossexualismo, extremamente combatido em sua época. Casado e pai de uma filha, nunca deixou de assumir sua pederastia. O fato veio a público com maior ênfase após a descoberta de seu conto O Pombo-torcaz, publicado postumamente na França em 2002 e no Brasil em 2009 (pela editora Estação Liberdade).

Ao organizar os papéis e documentos de seu pai, Catherine Gide encontrou num envelope o conto inédito, datado de 1907. Segundo ela, “o conto transmite ao leitor a emoção da descoberta erótica, a alegria da cumplicidade, a vitória do desejo e do prazer partilhados”, razão pela qual resolveu publicá-lo. Este fato atraiu-me para a leitura, em se tratando de um grande e polêmico escritor.

Enquanto no rico prefácio, o crítico Jean-Claude Perrier revela que o contexto do escrito ocorreu quando Gide tinha aproximadamente 38 anos, a capa da edição brasileira apresenta, erroneamente, o autor por volta dos 70 anos, incompatível com a obra. Revela também que o autor teve convívio frequente com jovens e que sempre atuou junto a eles não no sentido erótico, mas no contexto moral, recuperando para o bom caminho a maioria deles que convivia com maus hábitos.

O acontecido e narrado neste conto foge a essas experiências de Gide, pois foi algo tão profundo para ele que “comunica uma sensação de frescor e poesia”, segundo Catherine. E realmente, num texto exuberante em sensibilidade, paixão e imensa ternura, seu pai expõe delicadamente todo o teor do encontro. Escrito numa época em que o homossexualismo era não apenas marginal, mas fora da lei, esse breve relato é uma delicada vitória do desejo e da liberdade sobre a hipocrisia.

Pombo-torcaz é a designação comum da espécie Columba palumbus, o mais corpulento de todos os pombos, chegando a medir mais de 40 cm. É a espécie europeia de pombo mais comum. E com arrulhar profundo e característico.

Gide enreda-nos numa comemoração política de um amigo, onde prevalece a companhia de jovens, dado o comportamento jovial de Gide onde ele descobre o adolescente ciclista Ferdinand. Que iria transformar-se no pombo-torcaz, quando num contato físico com o autor, arfava feito o arrulho de um pombo.

Então, num posfácio que supera em volume três vezes o texto do autor, temos detalhados em importância os fatos da vida de Gide, seus familiares e amigos e o destino de Ferdinand. Claro, no mais alto nível literário. Assim, o breve conto converte-se numa rica história de um personagem e de sua época riquíssimos em fatos literários e de vida.

A quem não tiver preconceitos, recomendo a leitura por todo o valor literário que nos traz.

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Valdemir Martins

03.03.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. O pombo-torcaz; 3. A bicicleta de Ferdinand; 4. Gide e a filha; 5. Catherine Gide; 6. André Gide em 1947 quando ganhou o Nobel.