Pesquisar este blog

27 de fev. de 2018

Donna Tartt sempre surpreende quem gosta de trama densa.


Fico muito cansado lendo Donna Tartt. Esgotado. Porém muito, muito feliz. Ela consegue enlaçar-nos em seu texto através de liames antecipados de situações, criando ansiedade e suspense. Num texto intensamente bem construído, ainda nos contempla oportunamente com uma boa história além de referências históricas ou técnicas do que está envolvido na trama. E nada melhor, pelo menos para mim, que o intenso prazer de uma boa leitura. Arrefece qualquer cansaço.

Longe de ser uma romancista de formação, como um Thomas Mann, a controversa Donna Tartt aproxima-se dele num viés moderno e contemporâneo, versão bem norte-americana. Nada de importante e crucial – seja em detalhe ou não - escapa à sua construção de escrita exuberante. Com uma dinâmica narrativa extremamente funcional, arquiteta romances monumentais como é o caso também do seu aclamado “O Pintassilgo” (The Goldfinch), de 2013, ganhador do Prêmio Pulitzer de Ficção em 2014 ( veja comentário  no blog Contracapa/LadoB http://contracapaladob.blogspot.com.br/2017/03/uma-monumental-montanha-russa.html ). E, não por acaso, muito críticos comparam seu estilo ao de Charles Dickens.

Neste “A História Secreta”, seu romance de estreia em 1992, o que poderia ser uma aborrecida história de um grupo de estudantes de grego numa gélida universidade em Vermont, no interior norte-americano, transforma-se numa maratona de situações não tão acadêmicas. Apesar de um pouco pesado no início, o romance segue num crescendo ritmado, com graves e agudos, passando por uma inusitada bacanal dionisíaca e um dramático complô assassino e subsequentes situações de suspense e desespero, como numa tragédia grega. A construção competente de personagens leva-nos até os complexos perfis psicológicos praticamente de todos os participantes da trama em primeiro e segundo níveis. E Tartt lida muito bem com seus egos, proporcionando que o leitor participe das situações exatamente por conhecer como pensam e agem suas principais criaturas. E para eles, simplórios ou sofisticados, não há limites para o consumo de álcool e até de drogas, exalando forte espírito de uísque por suas páginas.

Não sou editor, mas – como se já o fosse – eliminaria alguns trechos de discussões do grupo de alunos e de seu distinto professor sobre construção de textos em grego, Platão, Homero, Dionísio, a Ilíada e a Odisseia e por aí afora. Não que deixe de ser importante, mas inadequado e dispensável no seu excesso. Os leitores não são hermeneutas e Tartt poderia ser um pouco parcimoniosa na transmissão de seus conhecimentos da língua e da cultura grega antiga. Mas a construção da obra no todo é de grande qualidade literária e leva-nos, por exemplo, em determinado capítulo, a quase congelar no rigoroso inverno de Vermont ao lado de um dos protagonistas. Põe em ação, progressivamente, um perfeito personagem sádico arrivista, promotor de recorrentes diatribes, que incomoda propositalmente o leitor, fazendo-o vivenciar com intensidade e participar, assim, involuntariamente, da absorvente trama. A própria autora assim o descreve no texto: “Era pior quando ele escolhia para vítima uma pessoa específica. Sua sobrenatural perspicácia lhe dizia em qual nervo tocar, e em que momento exato, para ferir e provocar o máximo de indignação”.

E a obra termina como o derretimento da neve que tanto a caracteriza. Lenta e gradualmente, trazendo consigo, em seus gélidos resíduos, a obsessão de manter um segredo, vigiada pelo permanente fantasma da marcante personalidade do membro dominante da turma.

Valdemir Martins, em 26/02/2018.

*** Se você gostou deste comentário, siga-nos. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito do blog. Muito obrigado!

9 de fev. de 2018

O gigante não enterrado, mas esquecido.

Apesar de Ishiguro repudiar a classificação desta sua brilhante obra “O Gigante Enterrado” (The Buried Giant) como romance de fantasia, a mestra da fantasia e da ficção científica Ursula Le Guin a considerou uma fábula adulta (“Isso é fantasia, e sua recusa em colocar o rótulo é evidência de que o autor se sente superior a isso.”), com o que concordo. O atual Prêmio Nobel provavelmente está ponderando todas as implicações subliminares do livro, desconsiderando seu formato ou estilo. E ele, com certeza, como criador, está correto, pois somente ele sabe exatamente a fórmula engendrada para transmitir suas mensagens e dar o seu recado.

E deu. Comecemos com o fato de que o gigante enterrado não existe, limitando-se a uma citação inicial de que seria a causa de uma elevação no relevo; uma colina. E aí, as inúmeras montanhas da obra, galgadas com enorme esforço pelos personagens, tomam conta das paisagens, principalmente em seu terço final. Outra figura nessa simbologia do gigante é a memória, enterrada por uma dominante névoa emanada pelo bafo de uma dragoa – provavelmente simbolizando a religião – que causa a perda de memória nas pessoas.

Não li ainda outras obras do britânico Kazuo Ishiguro. Acredito que meu première foi acertado nesta magnífica obra onde são entrelaçados elementos históricos do século oito na Grã Bretanha com suas lendas e mitologia grega. A crendice domina a obra e predomina nos desígnios de vida dos seus protagonistas, dois simpáticos e cativantes idosos que só transmitem amor e bondade. Mesmo nas piores circunstâncias o casal tem sempre uma pergunta ou uma colocação que indica o lado bom das situações ou mostram um novo caminho. Ajudam e são ajudados. É sempre o bem compensando o bem.

Outra conjuntura simbólica é frisada pela ideia fixa dos anciães Axl e Beatrice em visitar o filho em sua aldeia que eles não veem há anos, tão saudoso quanto um defunto querido ou tão distante quanto a vela (ou a luz) que eles não podem ter. A não admissão da perda de algo que muito se ama ou se necessita marca obsessivamente não só a história, como também os principais personagens. O texto registra muitas perdas: históricas, materiais, pessoais e de memória. E as compensações são adquiridas de forma singela, quase natural, mostrando aqui o autor que não se deve extrapolar nas tentativas ou na recuperação de perdas importantes. Existem maneiras simples e leves de se apaziguar o coração e a alma.

Um velho guerreiro descendente do rei Arthur – e seu garboso cavalo -, um jovem competente e impetuoso guerreiro – e sua égua manca –, compreensivelmente antagonistas, convivem tolerantes por solidariedade aos velhos. E um rapazote marcado fisicamente pelo mal e vítima de perseguições, além de um bando de frades do bem e do mal completam as principais figuras dramáticas desta magnífica história.

Como declarou o próprio Ishiguro, esta não é sua principal obra – ele destaca sempre “Os Vestígios do Dia” -, mas com certeza é sua mais profunda reflexão escrita sobre o esquecimento, o respeito e o amor.

Por Valdemir Martins

Em 30 de janeiro de 2018.

*** Se você gostou deste comentário, siga-nos. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito do blog. Muito obrigado!