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15 de out. de 2020

Sobre Como um Monstro é Criado *****

Uma façanha incrível consegue o estreante – e já premiado - escritor sueco Niklas Natt och Dag em sua obra inicial 1793: você lê no escuro. Sim, é a incrível sensação que temos ao ler este eletrizante e ousado thriller noir, um dramático romance policial histórico transcorrido em Estocolmo no final do século XVIII.

Desde os ambientes descritos, sejam numa taberna, num quarto ou num escritório, até as peripécias em resgate de corpo, batalhas, investigações ou caminhadas, tudo sugere escuridão ou pouca luz, tornando seu universo muito pesado, apesar da leitura fácil e leve. Esse clima leva intencionalmente o leitor ao condicionamento do ambiente que o autor quer que se leia a obra. E você passa a participar dela no intenso frio e nas sombras.

Até os dois protagonistas e demais personagens são carregados de peso, com suas dores, sujeiras, doenças, bebedeiras, roupas e defeitos físicos. E assim, proporcionam uma perturbadora leitura sempre mais acentuada a cada página. A trama desenvolve-se em Estocolmo e seus arredores, com um pit stop na Revolução Francesa. Aqui, num drama histórico, a capital sueca mais parece estar na Idade das Trevas ou Idade Média e não no final do século XVIII, em plena modernidade histórica. Tudo é extremamente grotesco, escuro, fétido, mórbido, insalubre: outro desafio para o leitor.

O fio condutor, um crime bárbaro, leva-nos aos excessos do poder. Não dos grandes poderosos, mas dos menores, os mais perigosos e contundentes, causando-nos revolta e indignação de níveis extremos. Um antídoto intenso àqueles arautos que atualmente cultuam o empoderamento de grupos em suas diversidades.

Claro que ler 1793 incomoda. É uma obra chocante. Natt och Dag equivale e às vezes supera, em terror, o aclamado Stephen King. E é insuperável nas descrições mundanas e escatológicas. Mescla suspense e pressão psicológica de maneira magistral e, assim, prende o leitor naquele ponto de não conseguir largar a leitura. Sem obviedades, surpreende a cada página com um realismo cru, pungente e muitas vezes repugnante. Para nós latinos, a única dificuldade desta leitura reside nos nomes de pessoas e locais, algo extremamente difícil, passando a ser mais um desafio no livro.

Este é um surpreendente thriller histórico que “retrata a capacidade de se ser cruel em nome da sobrevivência ou da ganância, como também a capacidade para o amor, a amizade e o desejo de um mundo melhor.”

Hoje, em tempos de hipersensibilidade social, onde muitas pessoas revoltam-se gratuitamente ao se sentirem ofendidas e agredidas por simples palavras ou imagens na tv ou nas redes sociais, levando consigo irracionalmente seus grupos de convívio de raça, religião e opção sexual, é importante que 1793 seja lido. Niklas Natt och Dag irá apresentar-lhes o que realmente é sofrimento, sujeira, ignorância, intolerância e injustiça.

Nesta era em que eternas desigualdades são totalmente visíveis, aprender como um monstro é criado em época de predominância dos monstros talvez amenize essa injustificada e incipiente ânsia por justiça social em confortáveis tempos de internet.


Valdemir Martins

14.10.2020 

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Obs: segundo o próprio autor, este é o primeiro livro da trilogia denominada Bellman Noir. O segundo livro, 1794, já foi publicado na Europa e o terceiro está no prelo.


2 de out. de 2020

A luminosidade em seres tão mergulhados nas trevas ****

Após ler os excelentes “A Estrada” e “Onde os Velhos não Têm Vez” (este, base para o filme ganhador do Oscar em 2007), li o impressionante Meridiano de Sangue ou O Crepúsculo Vermelho no Oeste, do norte americano Cormac McCarthy. Um faroeste diferenciado, extremamente realista e chocante. Um western reinventado, onde o absurdo e a alucinação se sobrepõem à realidade.

O calor e ...

Aqui, o leitor sente o terrível calor e secura do inóspito oeste norte americano e do norte mexicano, bem como seu frio extremo mais ao norte; sente a terrível fedentina dos corpos imundos dos personagens e seus piolhos; gruda no barro e no sangue de inúmeros mortos; arrepia-se e fica abalado com carnificinas de índios e mexicanos protagonizadas por um grupo extremamente violento de americanos desgarrados e desencaminhados de sua pátria, 
deleitando-se em sua monstruosa missão infame contratada por poderosos regionais para eliminar o maior número possível de índios. E, ironicamente, levar seus escalpos como comprovantes.

...o frio do deserto.

Quem lê Meridiano de Sangue não sai a mesma pessoa no final do livro. Intermitentes deambulações pela violência extremamente explícita abalizam o arcabouço desta assustadora obra de McCarthy. Num crescendo, com detalhes meticulosamente sanguinolentos e escatológicos, a violência tropeça sempre nos trechos ou frases de lirismo e poesia, estilo e sabedoria de McCarthy.

O bando

O protagonista não tem nome. De “garoto” ele transforma-se em homem no momento certo do enredo e, para sobreviver, precisa ser tão ou mais violento que seus companheiros e inimigos. Seu co-protagonista, um juiz poliglota, culto, multi prodigioso, às vezes asqueroso e caricato, é na realidade um monstro dentro de toda alucinante violência conduzida pelo perpétuo e ambíguo personagem.

É um majestoso romance noir sobre aspectos cruciantes da história do oeste norte americano, sem concessões à cinematografia: sem John Wayne ou Clint Eastwood ou Jerônimo ou sargento Garcia. Nem Rin Tin Tin. A linguagem do livro, seus personagens, as paisagens, as descrições eventuais de romance de formação, a intensidade dos fatos e seu ritmo alucinante, constroem a grandeza da obra.

Os Apaches

O controvertido crítico literário norte americano Harold Bloom, ao considerar que este romance sobre o western “jamais será superado, escreveu: “A merecida notoriedade de ‘Moby Dick’ e ‘Enquanto Agonizo’ é levada adiante por ‘Meridiano de Sangue’, pois Cormac McCarthy é discípulo de Melville e Faulkner. Eu diria que nenhum romancista norte-americano vivo, nem mesmo Pynchon, oferece-nos um livro tão marcante e memorável quanto ‘Meridiano de Sangue’...”.


No final, com suas ponderações, McCarthy expõe o âmago da obra, em meio aos discursos infindáveis do grotesco juiz Holden, esclarecendo que era contra o vazio e o desespero que o grupo pegava em armas e se refastelava em sangue.

Todos seus personagens são absolutamente humanos com suas obscuridades e brilhos, uns mais outros menos, como todos nós. Mas McCarthy nos faz enxergar “a luminosidade nesses seres tão mergulhados nas trevas”.

Valdemir Martins

30.9.2020

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