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27 de fev. de 2024

Andando Por Lugares Devastados

Quase toda a ruína que uma guerra propicia pode ser observada no livro (e filme) O Menino do Pijama Listrado, do escritor irlandês John Boyne, cujo enredo, desenvolvido de forma brilhante pelo autor, traz ao leitor as devastações causadas pelos nazistas na vida de todos os envolvidos. Tanto nos soldados e suas famílias, como nos prisioneiros e nas áreas físicas afetadas, mas, principalmente, na mente humana.
Para Boyne, sua história, apesar de muito bem contada, ficou incompleta. Faltava contar as consequências da guerra nos sobreviventes e seus descendentes. O espólio e o rescaldo do maior flagelo humano dos tempos modernos. E aqui está o autor com a continuação – escrita durante a pandemia - da sua obra mais famosa, lançando Por Lugares Devastados, onde nos apresenta o drama das mentes e as culpas num intenso romance de pós-guerra.

A protagonista é nada menos que Gretel, a filha do chefe do campo de concentração de Auschwitz e irmã de Bruno, o protagonista do primeiro livro. E sua história, a partir do fim da guerra, é contada em dois tempos simultaneamente, entre os 15 e os 91 anos. Deslumbrante até o final e tão ilusório quanto os banhos nos campos de concentração.

Neste ínterim, Boyne volta-se para o interregno entre essas idades da protagonista, cujos traumas evidenciam-se acentuadamente fazendo de sua vida uma verdadeira montanha russa de emoções. E mesmo refugiando-se a 17 mil quilômetros da Europa, Gretel continua encontrando fantasmas da guerra. Mas, no final, ela vai mesmo é defrontar-se com assombrações, perspectivas obscuras e terror em seu próprio quintal aos 91 anos.

É comum encontrarmos na internet e até na mídia uma enxurrada de críticas nefastas a estes dois livros de Boyne. Todas de cunho pessoal e nenhuma delas de caráter literário. Esse fato denota quanto muitas pessoas hoje em dia estão mais preocupadas em criticar aspectos políticos, ideológicos, psicológicos e sociais de uma obra. Não têm o mínimo de senso crítico para perceber que se trata de arte e, como tal, merecem apenas, neste caso, as críticas específicas de especialistas em literatura. A analista do jornal Folha de S. Paulo Juliana de Albuquerque chega ao absurdo de considerar o livro como infanto-juvenil (sic) e a declarar que caso não tivesse que fazer uma resenha do livro jamais o teria lido, numa demonstração claramente preconceituosa para uma “jornalista” metida à crítica literária. Isto, para citar apenas um caso que considero grave.

Porém, John Boyne é um excelente contador de histórias. Um dos melhores. E a descrição direta de cenas alegres e principalmente as de tensão extremamente tristes são simplesmente brilhantes, emocionantes e fluídas. Um grande romancista deixa, como ele, as grandes surpresas, jamais esperadas, para o fim. Seu suspense é lírico e envolvente. Seu romance é sobre culpa. A nossa, a dos outros, e as dos que nos são caros.

Fica a minha recomendação enfática para a leitura sequencial de O Menino do Pijama Listrado e Por Lugares Devastados, ambos pela Companhia das Letras.

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Valdemir Martins

Fotos: 1. Capa do Livro; 2. Gretel com a mãe e o irmão; 3. Torturada pela Resistência Francesa; 4. Aos 91 anos; 5. O prédio em Mayfair; 6. John Boyne.

06.01.2024 

16 de fev. de 2024

Tudo é Rio: elogiar é plágio.

Elogiar Carla Madeira é plágio. Todos o fazem. Até os críticos mais rigorosos. Seu livro de estreia Tudo é Rio, de 2014, é uma obra de qualidade literária reconhecida com atraso. Estreou e não brilhou, por conta da editora da época que não investiu no seu talento. Jornalista e publicitária mineira, Madeira mudou de editora e em 2021 teve sua obra revisada e relançada pela Record e o sucesso, tão grande, levou-a a ser a escritora brasileira mais lida naquele ano, perdendo só para o fenômeno Itamar Vieira Júnior e seu Torto Arado (veja análise em https://contracapaladob.blogspot.com/2021/01/ver-os-homens-derramando-sangue-para.html ).

Em sua linguagem direta, crua e sucinta, Carla inicia esta obra chocando. No ambiente, no clima, no relacionamento, no sexo excitante e na religião desacreditada. Na perda da inocência. E, como um rio, tudo passa ligeiro e indelével. Suas metáforas são brilhantemente colocadas enriquecendo o texto e a compreensão de toda uma situação - até complexa – numa única frase.

Delicadamente Carla passa a expor a amizade, o amor e a família; afrontosamente Carla desenrola o terrível ciúme, o casamento; tudo bordado com os costumes de uma época. E assim ela desenvolve o enredo costurando vidas pregressas – como no vestido da noiva - para nos entranharmos, ansiosamente, nas tramas do livro.

E os desafios, desaforos, dão lugar ao intenso sofrimento. Triplo. Como escreveu a própria Carla “a dor vicia enquanto mantém a gente vivo”. E em meio a um intenso sofrimento de morte e desencontro, ela abre espaço para um discurso sobre Deus, para consolo ou raiva de quem quer apegar-se a Ele. O julgamento vazio, inconsequente, arrebentando pessoas bondosas e extraordinárias é outra linha crítica no cinzelado texto da autora. Mas a justiça, divina ou não, sempre se faz presente.

Esta obra-prima não trata de um triângulo amoroso como algo simplório e corriqueiro como faz crer o divulgado pela editora e propalado nos sites de livrarias. Trata-se de um belíssimo caso de amor atravessado por uma puta. Enquanto o casal tem muito amor, apenas suspenso por uma tragédia, a mundana tem tão somente paixão e tesão, e efêmeros, como um verdadeiro desafio que foi superado. 

Esse é o fulcro deste esplendoroso romance escrito como se confeitado. Poético às vezes, agressivo com frequência, mas fluido com leitura fácil e agradável. Carla consegue usar linguagem simples, popular, sem ser vulgar. Pelo contrário, enriquecendo as narrativas com o que lhe é imensamente adequado.

São aqui muitas vidas, muitas feridas e muitas felicidades. Dor e alegria. Assim a vida corre, arrasta, envolve, revira e deságua. Assim, tudo é rio.

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Valdemir Martins

Fotos: 1. Capa do Livro; 2. A carpintaria; 3. A família feliz; 4. O bordel; 5. Final feliz; 6. Carla Madeira.

30.12.2023 

5 de fev. de 2024

New York: uma sequência de erros portugueses.

Para quem ama a cidade de Nova Iorque - ou tem vontade de conhecê-la - e não sabe sua história, faz-se importante recomendar que em sua próxima (ou primeira) viagem visite a Peter Minuit Plaza, no ponto mais meridional da ilha. Ou, se preferir, ler a excelente obra Arrancados da Terra, do premiado escritor e jornalista brasileiro Lira Neto.

Não se trata de uma história qualquer. Ela começa na Idade Média, quase um século após as descobertas das Américas. E mais uma vez com o sofrido povo judeu. Aqui, Lira insere-nos na radical e absurda Inquisição portuguesa, apresentando detalhes de um processo inquisitório que nos faz acreditar ser o princípio inspirador dos métodos nazistas, tamanha é a crueldade praticada pela Igreja Católica. Resultado: êxodo dos judeus, os novos-cristãos portugueses, para países livres da Inquisição.

Enquanto porcamente os portugueses colonizavam o Brasil, pois não sabiam o que fazer com tanta terra, nas Províncias Unidas (Holanda) calvinistas o Banco de Câmbio e a Bolsa de Valores eram organizações fundamentais a uma sociedade essencialmente urbana, com o grau de alfabetização mais elevado do continente europeu e a maior média salarial paga a funcionários públicos e privados no mundo. Lá os então cristãos-novos fugitivos encontraram liberdade cultural, econômica e religiosa. E sucesso.

Entra em cena, então, a Companhia das Índias Ocidentais (CIO) criada pelos holandeses exclusivamente para prejudicar o inimigo reino espanhol que, por razões familiares e de herdeiros, governava também Portugal. Assim, em 1621 todas as rotas comerciais ibéricas passam a ser controladas pelos holandeses. Invadir o Brasil, uma colônia indefesa e rica produtora de açúcar, tabaco e pau-brasil torna-se uma meta da Companhia, uma poderosa empresa, híbrido de força militar e companhia comercial.

A um forte e bem sucedido ataque da grande esquadra holandesa a Salvador, surge mais uma teoria da conspiração culpando cristãos-novos portugueses refugiados na Holanda. Na Espanha, prevaleceu a ideia de que os grandes responsáveis pela queda de Salvador teriam sido os judeus. Embora não houvesse nenhuma menção quanto a isso nas narrativas presenciais neerlandesas ou luso-brasileiras, persistiu em Madri a opinião de que os marranos haviam arquitetado toda aquela “trama maligna”.

Enfraquecidos por pura devassidão e desleixo, em 1625 os holandeses são expulsos da Bahia, derrotados por uma poderosa esquadra luso-espanhola. Mas, seis anos depois, muito mais organizados e em número maior de pessoas, os holandeses conquistam Pernambuco rechaçando os luso-espanhóis, E, desta vez, esquematizando-se para trazer, sob um programa de incentivos de colonização organizada, os cristãos-novos fugidos de Portugal que pela fluência da língua seriam fundamentais nesta nova conquista.

Após a aquisição, foi nomeado governador geral do Brasil o nobre protestante conde João Maurício de Nassau, de 32 anos, formação humanística exemplar e forte experiência militar. Após conquistar também Alagoas, Paraíba, Itamaracá, Rio Grande do Norte, Ceará e Maranhão, Maurício pede e começa a receber colonos judeus com profissões diversas e investidores holandeses, abrindo o comércio à iniciativa privada. Depois de anos de sucessos no desenvolvimento da região, Nassau é obrigado pelo governo holandês e pela CIO a retornar para Amsterdam. Aproveitando-se da vacância de governo na região, nacionalistas e rebeldes luso-brasileiros formam milícias e iniciam uma guerra de libertação e reconquista principalmente da capital Recife. Com o apoio dissimulado do rei português D. Manoel IV, em janeiro de 1654 os rebeldes brasileiros reassumem Pernambuco e os holandeses restantes juntamente com os judeus são expulsos da então capital brasileira.

Os rebeldes, na realidade, eram liderados por fazendeiros de tabaco, pau-brasil e cana e produtores de açúcar que deviam muito dinheiro aos judeus holandeses e à CIO. Assim, percebendo suas produção e vendas comprometidas resolveram expulsar seus credores, formando milícias com seus empregados, escravos e indígenas. Foram eles, na realidade, os grandes responsáveis pela expulsão dos holandeses de Pernambuco, sem medir o que essa colonização havia trazido de progresso e civilização para aquela região. Só importou egoisticamente seus próprios interesses e não os de uma futura nação.

Assim, um fato historicamente pitoresco foi o desgarramento de rota de uma das naus com os judeus holandeses e cristãos-novos, que depois de muitas atribulações, desembarcaram numa pequena e modesta ilha de possessão holandesa, denominada Nova Amsterdam, hoje região de Nova Iorque na América do Norte.

Esta obra de cunho documental histórico é recomendada aos que se interessam pelo assunto e pela história do século XVII. O Padre Antônio Vieira – personagem importante da literatura portuguesa e da História do Brasil - é figura atuante neste contexto, assim como todo um histórico de aventuras e desventuras da colônia judaica na Europa e nas Américas e toda a execrável e genocida perseguição da Inquisição da Igreja Católica. A hipocrisia e oportunismo português e luso-brasileiro em meio a todo sucesso holandês e judaico é algo também muito marcante.

Este é, além de um livro surpreendente, um manancial histórico brilhante, de prazerosa e enriquecedora leitura onde se vão entender os terríveis erros cometidos pelos portugueses. Primeiro enxotando os judeus de seu território na Idade Média e posteriormente apoiando maciçamente e de forma dissimulada os luso-brasileiros rebeldes - para não despertar a ira dos holandeses e espanhóis, então seus inimigos políticos - arrancando-os da terra de sua colônia brasileira, e empurrando-os – após extraordinárias realizações no nordeste - para desenvolver, fora de sua jurisdição, a maior cidade do globo em termos econômicos, políticos e culturais, até nossos dias.

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Valdemir Martins

Fotos: 1. Capa do Livro; 2. Lisboa no século XVII; 3. Amsterdã no século XVII; 4. Tribunal da Inquisição em Portugal; 5. Tortura da Inquisição; 6. Pe. Antonio Vieira, o inquisidor brasileiro; 7. Mauricio de Nassau; 8. Ponte construída por Nassau em Recife; 9. As "cidades irmãs" Nova Iorque e Recife; 10. Lira Neto.

16.12.23