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29 de mai. de 2019

23 de mai. de 2019

Este livro não tem rosto de romance.


Pode-se até ler Svetlana Aleksievitch como se fosse um romance, tamanha a dramaticidade dos escritos da premiada escritora e jornalista bielorrussa, incluindo o Nobel de Literatura de 2015.

No seu primeiro livro A Guerra não tem Rosto de Mulher, de 1986, a hoje setuagenária inicia a obra num prólogo já emocionante, estarrecedor e dramático. E, numa relevante e construtiva postura feminista, esclarece e inicia sua inédita e importante inversão das narrativas sobre as guerras:

Trabaladora, pegue em arma!
“Não sabíamos como era o mundo sem guerra, o mundo da guerra era o único que conhecíamos, e as pessoas da guerra eram as únicas que conhecíamos. Até agora não conheço outro mundo, outras pessoas. Por acaso existiram em algum momento? A vila de minha infância depois da guerra era feminina. Das mulheres. Não me lembro de vozes masculinas. Tanto que isso ficou comigo: quem conta a guerra são as mulheres. Choram. Cantam enquanto choram.”

Menina na guerra
Por essa conclusão lógica, constatou então que tudo o que se falava, escrevia e consagrava sobre as guerras era através da voz masculina. E, depois de inúmeras pesquisas e entrevistas com mulheres que viveram a guerra, concluiu que os relatos femininos são distintos e falam de outras coisas: “A guerra ‘feminina’ tem suas próprias cores, cheiros; sua iluminação e seu espaço sentimental. Suas próprias palavras. Nela, não há heróis nem façanhas incríveis, há apenas pessoas ocupadas com uma tarefa desumanamente humana. E ali não sofrem apenas elas (as pessoas!), mas também a terra, os pássaros, as árvores”. E completa: “Um mundo inteiro foi escondido de nós. A guerra delas permaneceu desconhecida… Quero escrever a história dessa guerra. A história das mulheres”, esclarece Svetlana.

Sapadoras no cerco de Moscou
Assim surge a monumental crônica feminina sobre a Segunda Guerra Mundial, mais especificamente nos confrontos entre nazistas e Exército Vermelho soviético, com passagens pela Revolução Bolchevique sob a tutela do carniceiro ditador Stálin. Trata-se, sobretudo, de um livro para pessoas sensíveis e corajosas, tanto homens como mulheres, interessados na verdade nunca contada - nem imaginada - sobre os reais bastidores das guerras, com mais de um milhão de mulheres tanto na retaguarda como na linha de frente dessas batalhas.

Batalhão de fuzileiras
A Academia Sueca atribuiu valor e poder a uma obra e estilo inéditos. Em séculos de literatura nada nesse gênero havia sido escrito. Svetlana criou, assim, um novo gênero literário classificado como novela coletiva. Ou seja, com seus textos a meio caminho entre a literatura e o jornalismo, ela usa a técnica de “colagem”, justapondo testemunhos individuais com o que consegue aproximar-se mais da substância humana dos fatos. 

As temidas aviadoras soviéticas
Não se consegue encontrar algo no estilo aproximadamente similar nem nas obras dos norte-americanos Truman Capote, Gay Talese, Tom Wolfe e Norman Mailer, precursores do jornalismo literário. Não se trata de escrever ensaio ou crônica sobre um único fato individual ou familiar, mas sim de uma tragédia coletiva de uma época longa baseado em dezenas de testemunhos explícitos de inúmeras mulheres, arrancados de suas almas. 

Mulher em luta corporal
A sofrida e feroz vitória soviética sobre os nazistas custou mais de 20 milhões de vidas humanas em quatro anos e só foi conseguida graças à imensa participação das mulheres soldados com idades entre catorze e mais de cinquenta anos. Sim, isso mesmo: de crianças a idosas.

Em nome da Revolução Bolchevique, o inescrupuloso e homicida Stálin, já em 1937, três anos antes de se enfiar na guerra contra os alemães com seu Exército Vermelho, começou a eliminar dessa hoste milhares de soldados e principalmente comandantes “não confiáveis” para se garantir no poder, consolidando sua ditadura sanguinária. E, assim, como não havia homens suficientes na União Soviética, as mulheres tiveram que se sacrificar heroicamente na defesa da pátria.

Órfãos soviéticos
Antes da metade do livro você se convence que pouco conhece de guerra. Tudo o que sabe é o básico, histórico, técnico, de heroísmo barato, com muito pouco sentimento. Pois Svetlana é implacável em sua apresentação crua, real, detalhada e humana da guerra. Sim, você vai ponderar: no meio de algo tão animalesco a guerra é humana. Em meio a algo tão “desumano” são as atitudes femininas, das soldados lá engajadas para vencer e sobreviver, que se destacam os atos heroicos e extremamente humanos, dilacerando a alma, a mente e a vida dessas guerreiras chamadas então de “irmãzinhas” por seus companheiros de batalhas, fugas, fome, frio, destruição e atrocidades. Enfim, de verdadeira carnificina.

Svetlana Aleksievitch
Neste livro, dezenas de depoimentos emocionantes, brilhantemente arrematados e organizados por Svetlana ao longo de anos, traduzem o ineditismo do massacre que foram os embates entre soviéticos comunistas e alemães fascistas (como são tratados pela autora), moldados pelos inacreditáveis destinos de patrióticos soldados soviéticos tratados como traidores pelo totalitarismo gélido e sangrento do alto comando stalinista.

Depois deste livro você vai encarar novas narrativas de guerras com outra visão. E vai concluir que tudo que já leu sobre os conflitos bélicos não tem realmente rosto de mulher.

Valdemir Martins
Em 22/05/2019.

Outros livros da autora publicados no Brasil pela Companhia das Letras: O Fim do Homem Soviético, Vozes de Chernobil, As Últimas Testemunhas e Rapazes de Zinco.

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13 de mai. de 2019

Flores para Algernon: a vida por trás de uma janela.


Ler “Flores para Algernon” incomoda. Desde o início, onde parece que estamos lendo com areia nos olhos. A escrita com grafia errada e encoberta propositalmente pelo norte-americano Daniel Keyes para reforçar a condição de retardado mental do protagonista Charlie, por quarenta páginas iniciais, é o que dá início ao incômodo. Mesmo assim, o leitor não desgruda do livro.

Então, a ansiedade de Charlie torna-se contagiante e atinge quem está lendo sua luta para ficar inteligente, seja na padaria onde trabalha, no laboratório experimental ou nas consultas médicas. Seja nas disputas com Algernon. E, aos poucos, o texto começa a mudar e o personagem começa a desabrochar, como uma flor cercada de espinhos.

Charlie após cirurgia
Começa então a ficar clara a proposta de Keyes de ir desmontando, gradualmente, as imagens que se constrói das pessoas, sejam elas doutores, estudantes, genitores ou simples trabalhadores braçais. Não só no texto, mas em reflexões sobre a vida real ao que o leitor é instigado pela força extraordinária da obra. Com intensa profundidade psicológica, o livro leva-nos a constatar - mais uma vez em ponderações – o quanto as mensagens que nos foram passadas durante a infância e a juventude influenciaram a formação de nosso caráter. E depois da leitura muita coisa pode mudar nos conceitos dos próprios leitores.

Labirinto montado por Chalie
As mensagens bruxas, que nos são transmitidas através das falas e das atitudes de terceiros durante nosso período de desenvolvimento intelectual, desde uma surra, puxões de orelha ou punições durante a infância até aqueles comentários inconsequentes – tipo “você é um inútil” ou “nunca vai ser ninguém na vida” ou ainda “Deus vai te castigar...” -, podem, inconscientemente, levar algumas pessoas a ser covardes, tímidas, agressivas ou pior, até psicopatas. Cada um acumula ou desenvolve de forma diferente, de acordo com a atmosfera em que cresce: seu ambiente familiar, suas amizades, sua educação, seus costumes. Agora, consciente de seus antecedentes pessoais, imagine se acontecesse com uma mente retardada.


Assim é com o protagonista, cuja evolução leva-o a enxergar com absoluta clareza os fatos, pessoas, locais e mensagens que lhe foram infligidas. Ele aprende tudo extraordinariamente rápido, mas não consegue evoluir emocionalmente e lidar com seus sentimentos.

Charlie e sua paixão
Apesar de fortemente densa, a obra flui com leveza, num romance de ficção científica extremamente interessante e de leitura cativante, claro, agora não mais com areia nos olhos. Do meio para o fim, a história sofre uma reviravolta com alterações no protagonista e em seu coadjuvante. E, de surpresa em surpresa, a obra consolida-se como um debate profundo sobre a bondade, o relacionamento humano e a solidão. Por uma das personagens principais, causadora de problemas e crises importantes na história, Keyes demonstra o perigo de se ter aquela preocupação “do que os outros vão pensar” e, assim, tornar-se uma pessoa egoísta em prejuízo inconsciente de quem se ama de verdade.

Daniel Keyes
O livro é um clássico da literatura norte-americana e adotado lá como leitura básica em muitas escolas de segundo grau. Consideram-na importante na formação dos jovens por despertá-los para o fato de que professores, chefes, líderes religiosos, atletas e até mesmo nossos desafetos ou amados são pessoas como nós. Têm sentimentos variáveis, dores na alma, problemas de alguma ordem, defeitos de personalidade, doenças invisíveis, frustrações diversas e também seus próprios desafetos.

Keyes, nesta obra, apresenta-nos a vida que temos – o cotidiano - por trás de uma janela. A janela da própria vida. Com muita simbologia, constrói uma obra pungente, extremamente dolorida, apesar de fascinante e assaz emocionante. Como já disse, ler esta obra incomoda. Ninguém sai incólume à leitura de Flores para Algernon.

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Sobre o livro:
Entre os temas mais recorrentes da ficção científica, a percepção de múltiplas realidades já abriu margem para narrativas clássicas e questões tão profundas quanto um buraco negro. Afinal, o mundo que sempre percebemos a nossa volta realmente existe? Mas para além dos portais interdimensionais, o autor norte-americano Daniel Keyes manteve os pés no chão dentro do universo scifi e apresentou uma história que explora o conceito, ao mesmo tempo que impacta por sua delicadeza. Publicado originalmente em 1966, Flores para Algernon foi o grande expoente da carreira do escritor, ganhador do prêmio Nebula e inspiração para o filme Os Dois Mundos de Charly (1968) – que garantiu a Cliff Robertson o Oscar de Melhor Ator. E com mais de cinco milhões de exemplares vendidos é referência dentro das escolas dos Estados Unidos. (Editora Aleph)

Sinopse (com spoiler):

A obra surgiu sobre as palavras de um homem de 32 anos e 68 de QI: Charlie Gordon. Com excesso de erros no início do romance, os relatos de Charlie revelam sua condição limitada, consequência de uma grave deficiência intelectual, que ao menos o mantém protegido dentro de um “mundo” particular – indiferente às gozações dos colegas de trabalho e intocado por tragédias familiares. Porém, ao participar de uma cirurgia revolucionária que aumenta o seu QI, ele não apenas se torna mais inteligente que os próprios médicos que o operaram, como também vira testemunha de uma nova realidade: ácida, crua e problemática. Se o conhecimento é uma benção, Daniel Keyes constrói um personagem complexo e intrigante, que questiona essa sorte e reflete sobre suas relações sociais e a própria existência. E tudo isso ao lado de Algernon, seu rato de estimação e a primeira cobaia bem-sucedida no processo cirúrgico. (Editora Aleph)

Preço médio R$ 48,00. Em algumas lojas Saraiva e no site Amazon R$ 30,90. E-book Kindle R$ 23,48.

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