Pode-se até ler Svetlana Aleksievitch
como se fosse um romance, tamanha a dramaticidade dos escritos da premiada
escritora e jornalista bielorrussa, incluindo o Nobel de Literatura de 2015.
No
seu primeiro livro A Guerra não tem Rosto de Mulher, de 1986, a hoje setuagenária
inicia a obra num prólogo já emocionante, estarrecedor e dramático. E, numa
relevante e construtiva postura feminista, esclarece e inicia sua inédita e
importante inversão das narrativas sobre as guerras:
Trabaladora, pegue em arma! |
“Não sabíamos como era o mundo sem guerra, o mundo da guerra
era o único que conhecíamos, e as pessoas da guerra eram as únicas que
conhecíamos. Até agora não conheço outro mundo, outras pessoas. Por acaso
existiram em algum momento? A vila de minha infância depois da guerra era
feminina. Das mulheres. Não me lembro de vozes masculinas. Tanto que isso ficou
comigo: quem conta a guerra são as mulheres. Choram. Cantam enquanto choram.”
Menina na guerra |
Por essa conclusão lógica, constatou então que tudo o que se
falava, escrevia e consagrava sobre as guerras era através da voz masculina. E,
depois de inúmeras pesquisas e entrevistas com mulheres que viveram a guerra, concluiu
que os relatos femininos são distintos e falam de outras coisas: “A guerra ‘feminina’
tem suas próprias cores, cheiros; sua iluminação e seu espaço sentimental. Suas
próprias palavras. Nela, não há heróis nem façanhas incríveis, há apenas
pessoas ocupadas com uma tarefa desumanamente humana. E ali não sofrem apenas
elas (as pessoas!), mas também a terra, os pássaros, as árvores”. E completa: “Um
mundo inteiro foi escondido de nós. A guerra delas permaneceu desconhecida…
Quero escrever a história dessa guerra. A história das mulheres”, esclarece
Svetlana.
Sapadoras no cerco de Moscou |
Assim surge a monumental crônica feminina sobre a Segunda
Guerra Mundial, mais especificamente nos confrontos entre nazistas e Exército
Vermelho soviético, com passagens pela Revolução Bolchevique sob a tutela do
carniceiro ditador Stálin. Trata-se, sobretudo, de um livro para pessoas
sensíveis e corajosas, tanto homens como mulheres, interessados na verdade
nunca contada - nem imaginada - sobre os reais bastidores das guerras, com mais
de um milhão de mulheres tanto na retaguarda como na linha de frente dessas
batalhas.
Batalhão de fuzileiras |
A Academia Sueca atribuiu valor e poder a uma obra e estilo
inéditos. Em séculos de literatura nada nesse gênero havia sido escrito.
Svetlana criou, assim, um novo gênero literário classificado como novela
coletiva. Ou seja, com seus textos
a meio caminho entre a literatura e o jornalismo, ela usa a técnica
de “colagem”, justapondo testemunhos individuais com o que consegue
aproximar-se mais da substância humana dos fatos.
As temidas aviadoras soviéticas |
Não se consegue encontrar algo
no estilo aproximadamente similar nem nas obras dos norte-americanos Truman
Capote, Gay Talese, Tom Wolfe e Norman Mailer, precursores do jornalismo
literário. Não se trata de escrever ensaio ou crônica sobre um único
fato individual ou familiar, mas sim de uma tragédia coletiva de uma época
longa baseado em dezenas de testemunhos explícitos de inúmeras mulheres,
arrancados de suas almas.
Mulher em luta corporal |
A sofrida e feroz vitória soviética sobre os nazistas
custou mais de 20 milhões de vidas humanas em quatro anos e só foi conseguida
graças à imensa participação das mulheres soldados com idades entre catorze e
mais de cinquenta anos. Sim, isso mesmo: de crianças a idosas.
Em
nome da Revolução Bolchevique, o inescrupuloso e homicida Stálin, já em 1937,
três anos antes de se enfiar na guerra contra os alemães com seu Exército
Vermelho, começou a eliminar dessa hoste milhares de soldados e principalmente
comandantes “não confiáveis” para se garantir no poder, consolidando sua
ditadura sanguinária. E, assim, como não havia homens suficientes na União
Soviética, as mulheres tiveram que se sacrificar heroicamente na defesa da
pátria.
Órfãos soviéticos |
Antes
da metade do livro você se convence que pouco conhece de guerra. Tudo o que
sabe é o básico, histórico, técnico, de heroísmo barato, com muito pouco
sentimento. Pois Svetlana é implacável em sua apresentação crua, real,
detalhada e humana da guerra. Sim, você vai ponderar: no meio de algo tão
animalesco a guerra é humana. Em meio a algo tão “desumano” são as atitudes femininas,
das soldados lá engajadas para vencer e sobreviver, que se destacam os atos
heroicos e extremamente humanos, dilacerando a alma, a mente e a vida dessas
guerreiras chamadas então de “irmãzinhas” por seus companheiros de batalhas,
fugas, fome, frio, destruição e atrocidades. Enfim, de verdadeira carnificina.
Svetlana Aleksievitch |
Neste
livro, dezenas de depoimentos emocionantes, brilhantemente arrematados e
organizados por Svetlana ao longo de anos, traduzem o ineditismo do massacre
que foram os embates entre soviéticos comunistas e alemães fascistas (como são
tratados pela autora), moldados pelos inacreditáveis destinos de patrióticos
soldados soviéticos tratados como traidores pelo totalitarismo gélido e
sangrento do alto comando stalinista.
Depois
deste livro você vai encarar novas narrativas de guerras com outra visão. E vai
concluir que tudo que já leu sobre os conflitos bélicos não tem realmente rosto
de mulher.
Valdemir Martins
Em
22/05/2019.
Outros livros da autora publicados no Brasil pela Companhia das Letras: O Fim do Homem Soviético, Vozes de Chernobil, As Últimas
Testemunhas e Rapazes de Zinco.
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