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21 de ago. de 2020

Uma das mais belas personagens femininas da literatura universal *****


Se eu disser que Ana-não, protagonista e título do quase desconhecido – no Brasil - livro do espanhol Agustín Gómez-Arcos, é uma das mais belas personagens femininas da literatura de todos os tempos, muitos atinarão exagero de minha parte. Mas ela é única em sua beleza, traduzida pelo autor em amor, perseverança, amargura e grandiosidade em sua figura humana.

Porta da casa de Ana-não
Arcos, falecido precocemente aos 59 anos em 1998 em Paris, vítima de câncer, é considerado um anarquista literário altamente inovador pela crítica inglesa e francesa. Pouco sucesso obteve na terra natal por ser um crítico ferrenho e amargo do regime ditatorial franquista, conquistando, deste modo, muitos leitores pela Europa livre, principalmente na Inglaterra e França, onde residiu e trabalhou.

Pão, presente para o filho
Por lá, Ana-não foi um de seus maiores sucessos pelo fato de ser o menos polêmico de seus livros e por abordar uma protagonista extremamente humana. A obra concentra-se na dor e no luto de uma viúva que atravessa o território espanhol a pé, do sul ao norte, para encontrar o filho. Nesta impressionante aventura materna, ela vê a presença constante da morte que lhe passa recados dúbios sobre a certeza de concluir sua jornada e encontrar o ente querido.

Andaluzia - terra de Ana-não
Trata-se, sem dúvida, de um terno e agitado poema em forma de prosa. Uma narrativa diferenciada que se concentra na solidão aflitiva de uma mãe de família e no seu obcecado propósito de rever o filho querido e de levar-lhe algo que muito gosta. Narra sua lentidão numa triste jornada por uma Espanha estranha - moderna e diferente de tudo que ela se lembrava -, em seu caminho para ver o filho sobrevivente, preso para a vida.

Agustín Gómez-Arcos
Possivelmente por razões puramente comerciais, o único livro de Gómez-Arcos publicado por aqui foi Ana-não. Livros preciosos como Maria Republica, L'enfant pain e The Carnivorous Lamb, somente importados e em espanhol, francês e inglês. Assim, quem desejar ter o prazer de ler este grande autor em português só encontrará o livro em sebos físicos e no site Estante Virtual (procure pelo autor) ou eventualmente no Mercado Livre.





Valdemir Martins
18.08.2020

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11 de ago. de 2020

Só mesmo seres inanimados podem ter tanta vida. *****

Ler Atlas de Nuvens do inglês David Mitchell é como saborear um prato de deliciosos canapés variados, com seis sabores, um melhor que o outro. Este é o sentido figurado sobre o prazer de ler esta obra de vanguarda literária, de estrutura inovadora e surpreendente. Utilizando a frase de um personagem do início do livro eu diria que “só mesmo seres inanimados podem ter tanta vida”, considerando-se aqui os seres inanimados como cada uma das seis criativas histórias que compõem a obra.

O ex-escravo Autua e Adam Ewing
Neste livro, considerado a obra-prima de Mitchell, ele judia do leitor. Atormenta-nos com uma certa falta de apoteoses, com os gritos calados. Ele joga com o excitamento e a seguida resignação ao mesmo tempo 
em que vai acumulando pontos de alusão para preparar-nos para algo maior. Arguto, é um grande jogador literário, bulindo com quebra-cabeças muito inteligentes.

Frobisher e o velho compositor
 Aliás, inteligência é o que não falta neste precioso enredo, retalhado por diário de viagem, romance epistolar, novela policial, thriller, drama e aventura distópicos, todos com diálogos inteligentes e arguciosos, dramáticos e irônicos, coloquiais e sofisticados. Todos enredados num contexto de esperança, não só pelo texto, como pela recorrência de referências dos textos coirmãos e uma tatuagem em forma de cometa nos protagonistas que pode até sugerir possíveis reencarnações.

A jornalista Luisa Rey e o segurança
Mitchell é tão competente que você acredita, ao passar de uma história para outra, que está lendo o texto de um novo autor, tamanha a mudança de estilo percebida na história seguinte. E para completar, os primeiros cinco textos têm aproximadamente o mesmo volume, enquanto a sexta narrativa é diferenciada. Trata-se de uma história ambientada num futuro pós-apocalíptico em que a civilização e a linguagem humanas se deterioraram assustadoramente e voltam aos períodos que ironicamente hoje denominaríamos de bárbaros, não fosse o excepcional e assustador desenvolvimento tecnológico em questão.

O atrapalhado editor Cavendish
A quinta história é uma distopia pressaga, de linguagem claudicante e inúmeros vocábulos inventados, a maioria de contrações de palavras normais, resultando na perfeita compreensão do texto. Já na sexta narrativa, a linguagem é inteiramente coloquial, informal e contracionada, porém bastante dinâmica e até divertida de se ler, num texto contado na primeira pessoa e com muitos diálogos. Enfim, recomendo que as seis histórias não devem ser percebidas individualmente, mas em sua totalidade, como parte de uma grande história.

A clone Sonmi-451
O livro, como um todo, torna-se uma charada filosófica onde Mitchell afirma sua crença na bondade e na solidariedade humanas prevalecendo sobre o egoísmo, o fanatismo cego, a maldade e a violência de pessoas ardilosas e traiçoeiras que agem sós ou liderando comunidades rotuladas de governamentais, grupais, empresariais ou religiosas.

Zachry e a misteriosa Meronym
David Mitchell
Enfim, Mitchell é sem dúvida um vanguardista literário. A estrutura deste Atlas de Nuvens bem atesta esta certeza, corroborada pela linguagem extremamente criativa, multifacetada, à vezes poética e incrivelmente originais, em enredos surpreendentes, cultos, com ricos aspectos de pesquisa, além de revolucionários na forma e conteúdo. Obrigatório a quem gosta de inovações e qualidade literária.

Como estes textos inanimados têm tanta vida!

Valdemir Martins
31.07.2020

Obs: as fotos referem-se a cenas do filme - com o título ridículo de "A Viagem" - de 2012 baseado no livro e com famosos no elenco.

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