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24 de jan. de 2021

O Tigre Branco desencanta a exótica pátria dos sáris coloridos *****

Há cerca de uma década falava-se – e escrevia-se – muito sobre os países emergentes na mídia. E dentre eles, o de maior destaque era a Índia, imenso e tradicional país do ocidente asiático. Assim como no Brasil ou na Rússia, ou mesmo no México, a miséria, a ignorância e a corrupção estão impregnadas na sua história.

Mas que importância tem isso face ao desenvolvimento econômico e tecnológico de um país emergente como a Índia? A força e os interesses dos grupos dominantes mantêm o status quo indiano para aumentar ou manter seu poder. E é isto que o então estreante e desconhecido escritor Aravind Adiga denuncia neste romance único, diferenciado e cheio de humor negro, ironia e realismo cruel, abominável e inescrupuloso. Em O Tigre Branco (2008) a Índia de Adiga desencanta e brutaliza a imagem da exótica pátria dos sáris coloridos, da ioga e da elevação espiritual, por mais força e tradição que tenham seus gurus e líderes iluminados como Ghandhi. A corrupção, por exemplo, escorre entre as letras. 

Sua ficção é real – por mais incongruente que isto possa parecer - extraída da mais honesta realidade de um país dividido socialmente entre o norte da Escuridão, onde um povo quase animal nasce, vive e morre às margens do lodo do Ganges, e o sul da Luz, do desenvolvimento calcado na exploração da miséria e da ignorância. Com Adiga, desmitifica-se e desmistifica-se a Índia: o glamour sobre o brejo.

Numa história de forte ironia e repugnante sarcasmo, o protagonista Balram Halwai relata o trajeto bastante inusitado que percorreu para subir na vida e conseguir se tornar alguém importante no cenário nacional: assassinar e roubar seu patrão. Em cartas dirigidas ao primeiro-ministro chinês, Balram – ou Munna, como era chamado quando menino - revela uma visão crítica aguçada da sociedade indiana e do mundo contemporâneo, e justifica seu crime classificando-o como um ato de puro empreendedorismo. Com cinismo, ele desmonta o mecanismo da própria ascensão social.

O leitor vai se surpreender a cada passo do primoroso romance de estreia do jovem autor indiano Aravind Adiga, vencedor do Man Booker Prize 2008, um dos maiores prêmios mundiais do meio editorial. Não sem motivo, “O Tigre Branco” foi considerado pelos jurados um livro de imenso valor literário e extremamente original, por apresentar aspectos da Índia normalmente ignorados e personagens que revelam um lado humano desconcertante.

Realmente, nada a ver com a bazófia e a mesmice apresentadas no folhetim da Globo (Caminho das Índias) apresentado na época para a maioria inculta do povo brasileiro, onde a autora denota ter pesquisado somente as tradições “sócio-culturais-religiosas” da incrível, inesgotável e incomparável Índia. Ao se falar dela, não se pode pecar por ser breve, principalmente quando se usa o nome do país – apropriadamente - no plural.

O tigre branco é um animal típico do país, raro por nascer um a cada geração, como um albino. O protagonista Balram Halwai é assim designado por sua família e amigos por ser, desde pequeno, uma pessoa diferenciada em sua casta. E ele próprio descobre e assume sua identidade predadora ao visitar e conhecer a fera num zôo local. Como escreveu a revista Veja, “Aravind Adiga constrói um personagem sem caráter, que se torna símbolo extremo de um impulso selvagem de liberdade. Um alerta para os que vivem na luz.”

Segundo Florência Costa, então correspondente de O Globo em Nova Déli, “A Índia que Adiga mostra é feia, inescrupulosa, escura como os apagões diários de horas a fio que atormentam a vida dos indianos nas metrópoles. Muito distante do glamour sugerido na propaganda “a Índia que brilha”, que ganhou o mundo há treze anos.” Aravind Adiga nasceu em Madras, na Índia, em 1974 e, aos 34 anos, escreveu incontestavelmente sobre o que realmente conhece.

Valdemir Martins

23.01.2021

Fotos: 1. Capa do livro; 2. O norte, do lodo; 3. O sul, do progresso; 4. O tigre branco real; 5. o autor Aravind Adiga.

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17 de jan. de 2021

Caixa de Pássaros: a alternativa é enxergar na escuridão ***

Pelo ineditismo da história e pela dificuldade de imaginarmos a situação de nada ver, sem sermos cegos e sem a experiência e o aprendizado desse deficiente visual, o livro de estreia de Josh Malerman, Caixa de Pássaros, sem paradoxismo, tornou-se um best-seller da noite para o dia. Trata-se de um thriller psicológico tenso e quase aterrorizante, que explora a essência do medo. 

Um texto viciante que quando iniciamos não queremos parar, bem no âmago das mais tensas novelas de Stephen King. Apesar de acharmos inicialmente algumas situações um pouco forçadas, a partir do momento em que imergimos na leitura entendemos o porquê de as situações assim o serem. Não há alternativas. Andar e se virar na escuridão auto imposta ou morrer.

Numa narração alusiva, este thriller pós-apocalíptico não perdoa vidas. É massacrante. E não bastasse o terror imposto pelo surto inédito e avassalador, a protagonista e os principais personagens ainda têm que lidar com a falta de confiança um no outro, a insegurança das situações impostas e com os desconhecidos e imprevisíveis aspectos dos sons e movimentos do ar. Coração sempre na boca ou na mão; haja fôlego.

Para salvar a família vale tudo. Só que a protagonista não é desonesta e hostil como a maioria dos sobreviventes. Resta, então, usar a inteligência que terá que prevalecer sobre incidentes, imprevistos, traições, mistérios e desafetos.

Quatro anos depois, com quase todos mortos, surge uma nesga de esperança. Começa então uma nova aventura cheia de percalços, surpresas e terror. A esperança passa a ser o fio condutor.

A escrita de Malerman é literariamente pobre, mas as estruturas do texto e do enredo estão muito bem construídas, com uma linguagem objetiva, sem rodeios e descrições prolongadas. Uma obra dinâmica no melhor estilo de Jo Nesbo e James Patterson.

Não deixe de ver!




Valdemir Martins

16.04.2018

Fotos: 1. capa do livro; 2. violência para sobreviver; 3. procurando alternativas; 4. salvando a família; 5. Josh Malerman

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10 de jan. de 2021

Torto Arado: a revelação de um grande talento brasileiro. *****

Mudos ou não, o baiano Itamar Vieira Júnior faz seus pouco conhecidos personagens falarem em sua brilhante obra Torto Arado, recém-ganhadora do Prêmio Oceanos 2020, a mais importante láurea literária da Língua Portuguesa. Não bastasse a proeza, a obra de estreia de Vieira já havia triunfado em 2018 – ano de seu lançamento - ao arrebatar o Prêmio Leya. 

Não há diálogos grafados no texto, mas eles proliferam no enredo na medida em que o leitor vai se envolvendo – sim, pois neste livro você não apenas lê, mas envolve-se fortemente – na história da família do Seu Zeca Chapéu Grande e da comunidade local de Água Negra, na Chapada Diamantina, Bahia. 

A escrita extremamente simples e límpida de Vieira esconde uma história e um ambiente rural brasileiro complexos e pouco conhecidos. A humildade e a inocência do rico elenco de características únicas e comoventes vão transformando-se numa epítome de ótimas reflexões da vida, principalmente pelas irmãs que narram a maior parte desta história. 

Vieira consegue a proeza de escrever como mulher, uma vez que as contadoras dos dramas familiares são duas jovens e uma criatura encantada. Nas narrativas apresentam-se a tradicional estrutura rural do sertão brasileiro e seu legado ainda com alguns resquícios escravocratas. 

Por ter formação e doutorado em Estudos Étnicos e Africanos e por sua experiência em trabalhar com comunidades típicas e originais da região – claro, além do talento literário -, o autor alcança um nível autêntico de expressão, de denúncia e de protesto, sem a necessidade de mimicar, tornando claras as vozes de deficientes, afrodescendentes, indígenas, mulheres, os ainda semi-escravizados e os que vivem em servidão. Apesar do regionalismo do romance, a linguagem clara e sucinta de Vieira subentende um tesouro de universalidade somente encontrado em grandes mestres brasileiros nesse tipo de narrativa, como Graciliano, Rosa, Nassar, Lins do Rego e Rachel de Queiroz. 

Na saga desta família e de sua comunidade quilombola as injustiças crescem na proporção de suas proles. Os costumes simples e paupérrimos podem até chocar alguns, da mesma forma que revolta outros. A narrativa de Vieira sobre o definhamento e passamento de um dos personagens-chave, por exemplo, é arrebatadora e comovente, tanto quanto a descrição do velório que a segue, com seus sons, gestos, costumes. Emocionante. 

O lirismo nas descrições da natureza, das crenças, das pessoas, das tipicidades, somados à história dos povos do sertão com suas peculiaridades exíguas ditadas pela tradição e a violência dos coronéis, tornam a obra um testemunho fundamental para se entender importantes aspectos dos pouco conhecidos quilombolas.
 
Guarde este nome: Itamar Vieira Júnior. Estamos felizmente diante de mais um grande talento literário brasileiro. Um escritor de verdade, com estrutura, forma e conteúdos dignos de figurarem na ABL, ao contrário de alguns poucos que presentemente lá estão.

Vieira honra aqui o nome de seu genitor, sua formação e seu cargo público. Espero que assim continue, sem despencar para o polemismo e a militância. Precisamos dele no rol dos grandes escritores brasileiros. Seja bem-vindo! 

Valdemir Martins
10.01.2021

Fotos: 1. capa do livro; 2. quilombola típico; 3. tapera da comunidade rural; 4. cerrado baiano; Itamar Vieira Junior.

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