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16 de dez. de 2018

CONTRACAPA: As Mulheres do Deserto

CONTRACAPA: As Mulheres do Deserto: Muito além do Pentateuco (a Torá) e da Bíblia, a história do povo judeu é marcada pela dor, o sacrifício, as jornadas perenes, muita lut...

As Mulheres do Deserto


Muito além do Pentateuco (a Torá) e da Bíblia, a história do povo judeu é marcada pela dor, o sacrifício, as jornadas perenes, muita luta e, principalmente, pela fé e solidariedade. Uma eterna peleja pela liberdade e pela terra sagrada.

Uma passagem dessa história, sobretudo, é um grande símbolo da fé em Deus, num destino melhor e na solidariedade, com muita ação e sofrimento. Mas sempre com heroísmo. A destacada escritora nova-iorquina Alice Hoffman conta-nos esse episódio, homenageando a mulher judia e os mártires da fortaleza Masada em sua obra prima As Mulheres do Deserto.

Masada original
Neste romance histórico, místico e religioso, dividido em quatro partes, cada uma relatada por uma mulher forte e resoluta, a preservação da vida é o mote da própria sobrevivência. A força da família, o amor e a maternidade aliados ao misticismo e à fé irredutível em Deus são o liame a conduzir as quatro histórias que vão se entrelaçar formando um poderoso enredo que culmina no trágico cerco das legiões romanas à fortaleza no monte Masada, próximo ao Mar Cáspio, no ápice do deserto, em 73 D.C..

As vidas dessas mulheres complexas e impetuosamente independentes cruzam-se nos dias de desespero do assédio romano. Todas elas fugidas forçosamente de seus lares para escapar da escravidão e dos crimes dos perversos soldados romanos e forçadas a se submeter às condições tormentosas do deserto, onde a sobrevivência será sua principal missão.

O deserto cercando Masada
Yael - amaldiçoada pelo pai por causar a morte da mãe ao nascer - encontra na aridez do inabitado um amor proibido e renasce sempre em constantes desafios junto à natureza. Hoffman, com muito lirismo e crua realidade descreve as fantásticas aventuras dessa batalhadora dos cabelos cor de fogo que, magicamente, conversa com os animais. Após périplos pelos desertos da Judéia alcançou finalmente a fortaleza que fora o último abrigo de Herodes e, então, refúgio do remanescente exército dos Sicários, único local livre do domínio da arrasadora Décima Legião Romana. Lá, encontra seu adorado irmão como chefe das tropas de resistência e seu detestado pai, tido como o mais terrível matador.

Revka, a segunda mulher, sonhadora esposa de um padeiro, cercada por uma patrulha romana no deserto reage furiosamente ao estupro e brutal assassinato da filha; salva seus então traumatizados netos, tornados surdos. Chegada à fortaleza, consolida-se como o ponto de equilíbrio no relacionamento das quatro.

Já Aziza, a mais jovem, filha de um poderoso tirano, criada como um menino para não sofrer abusos e não ter o mesmo destino cruel da mãe, torna-se grande guerreira, arqueira infalível, e apaixonada por um soturno guerreiro, companheiro nas batalhas.

Shirah, a mais velha e experiente, fundamental no enredo por seus dotes medicinais e práticas mágicas, guarda em seu profundo sofrimento um grande e secreto amor.

A incrível rampa romana na lateral
O quarteto fica encarregado da guarda dos pombos que trazem a fertilidade à região; tornam-se confidentes, descobrem a importância da fraternidade e até o ilícito praticam por absoluta humanidade. Cerca de 960 pessoas – entre homens, mulheres e crianças - que viveram na montanha-fortaleza com elas passaram por todo o tipo de necessidades, desde a fome impiedosa às doenças cruéis. A apoteose da obra retrata com mais intensidade o poder bélico de Roma, a brutalidade sem fim usada contra os judeus e, após três meses de cerco inumano, os romanos atingem o seu desígnio.

Alice Hoffman
Esta obra de Alice Hoffman é uma rara narrativa feminista – outras podem ser encontradas no fabuloso “A Guerra não tem Rosto”, da  russa prêmio Nobel Svetlana Alexijevich – de episódios belicosos da História. Traz-nos um bocado do envolvente misticismo judaico em meio a histórias intensas e situações muito tensas, onde prevalece sempre a amizade, o amor e a solidariedade. E aqui evidencia como o local e a real história de Masada se tornaram posteriormente um símbolo de resistência e luta pela liberdade.

Valdemir Martins
16/12/2018.

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5 de dez. de 2018

CONTRACAPA: Vidas Secas: no título, a substância da obra.

CONTRACAPA: Vidas Secas: no título, a substância da obra.: Além do óbvio, pouquíssimos livros condensam em seu título o conteúdo da obra. A genialidade literária do escritor e jornalista alagoano Gr...

Vidas Secas: no título, a substância da obra.

Além do óbvio, pouquíssimos livros condensam em seu título o conteúdo da obra. A genialidade literária do escritor e jornalista alagoano Graciliano Ramos consegue esta proeza em sua obra máxima Vidas Secas.

Apesar de um modernista da linhagem documental, até pelo fato de ser efetivamente um jornalista, criou esta obra que o coloca dentre os mais expressionistas escritores a retratar o sertão como Rachel de Queiroz, João Cabral de Melo Neto e José Lins do Rêgo. Vidas Secas é um redemoinho da vida no pleno sertão nordestino brasileiro: não adianta tentar escapar da secura de tudo, pois a roda viva do destino conduz todos para a espreita da morte.

Cena do filme de Nelson Pereira dos Santos
A obra traz uma família de retirantes atravessando a caatinga ressequida no sertão nordestino em busca de onde morar. À frente o Menino mais Velho e o Menino mais Novo – como são designados em todo o texto – acompanhados da fiel cadela Baleia e seguidos pelos pais Fabiano e Sinhá Vitória. No entorno a imensidão da terra ressequida e rachada, o céu azul limpo e brilhante e aqui e ali a sombra esquelética de mandacarus e quixabeiras esturricadas. Avizinham-se então de uma casa abandonada quando suas forças já os abandonavam.

Chega finalmente a chuva e com ela o dono da casa que é também o titular do armazém da cidadezinha próxima. Fazem um acordo e a família passa a trabalhar para o novo patrão em troca de moradia. Em meio às brincadeiras dos meninos e da Baleia ocorrem as encrencas do pai na cidade, com jogo, bebedeiras, prisão e quermesse. E, entrementes, Fabiano descobre que está sendo fraudado pelo patrão. Depara-se também, admirado, com a inteligência da sofrida mulher. Demitido por reclamar da extorsão, voltam à jornada retirante pelo sertão à procura de nova oportunidade.

Baleia e o Menino mais Novo
A obra caracteriza-se pela belíssima linguagem regional e pelo prodigioso poder de síntese de Graciliano, expressando com exíguas palavras e belíssimas construções as situações da narrativa. No seu neorrealismo regional consegue colocar-nos dentro de uma cena narrando local, emoções e ações de uma só penada. Há pouquíssimo diálogo entre os protagonistas, todavia um profundo amor os une apesar da vivência isolada de cada um.

Dos doze capítulos, Graciliano dedica cinco à família; um capítulo a cada membro. Provavelmente a mais emocionante passagem seja o capítulo inteiro dedicado à morte da cadela Baleia. E o remorso que marca o restante do livro. Na realidade, cada capítulo da obra pode até ser lido separadamente, pois Graciliano os escreveu como se fossem contos – a assim publicou alguns deles no “O Jornal” carioca, dando origem ao livro.

Graciliano Ramos e sua obra máxima
 Não deixa de ser posto pelo autor o aspecto político, entremeando à história o problema social nordestino confrontado com o poder econômico e a força do Estado. Concomitantemente à tragédia física de uma vida animalesca, Graciliano explora também o drama psicológico de uma esposa inconformada com aquele tipo de vida, do marido angustiado por se sentir inferior - pois além de não saber ler ou calcular, não era dotado de racionalidade -, e por não poder proporcionar vida melhor, principalmente aos filhos que se divertem e crescem como animais brincando na lama com a terceira irmã Baleia. Ambos, Fabiano e Sinhá Vitória, sonham em ter o aconchego do vizinho da antiga fazenda, seu Tomás da Bolandeira, letrado e com vida de conforto, para se livrar de suas vidas secas.

Valdemir Martins
30/11/2018

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PS: A Editora Record acaba de lançar uma belíssima edição comemorativa dos 80 anos da obra, em capa dura, além do texto integral e um fac-símile do manuscrito original com as emendas e correções de próprio punho do autor.

27 de nov. de 2018

O Homem que Amava os Cachorros: o comunismo morreu no berço


O caudaloso e vigoroso romance histórico O Homem que Amava os Cachorros não conta as peripécias de um eventual dono de um cão Marley, mas de um apaixonado dono de galgos russos borzóis. E de outros personagens que também amavam os cães. E não se trata aqui de uma estória de cachorros. São histórias entrelaçadas que se completam e têm um único final, abordando vidas de protagonistas reais que tiveram uma terrível “vida de cachorro” ou que viveram enganados como um cachorro raivoso e destruidor.

Em meio à escuridão das maldades humanas e de eventos negativos da natureza ele está sempre acendendo uma luz, numa poderosa linguagem criativa e fluente. Assim é a escrita do cubano Leonardo Padura nesta obra. Narrando a incrível vida desterrada do bolchevique puro-sangue Liev Davidovitch Trotski na pós-revolução russa, de forma romanceada e em três planos narrativos. Padura incrementa o enredo com as vidas paralelas do homem mais marcante na biografia de Trotski depois do arrivista e poderoso Stálin: o espanhol Ramón Mercader, seu algoz, levando a reboque a existência de um medíocre, honesto e batalhador jornalista cubano que também amava os cachorros e que se torna responsável pela obra, revelando-nos a miserável e inacreditável vida dos cubanos pós-revolução.

Leon Trotsky
Com um texto impecável e vibrante, conduzindo os fatos de modo magistral, Padura não nos deixa largar a leitura enredando-nos em histórias da guerra civil espanhola, dos meandros políticos da segunda guerra mundial, da revolução bolchevique e do fantástico golpe engendrado por Stálin atribuindo a Trotsky a responsabilidade de uma eventual traição aos desígnios da revolução proletária soviética. Como se não bastasse – mas faz parte da história real – temos ainda como protagonistas os artistas mexicanos Frida Khalo e seu marido Diego Rivera e do escritor francês e teórico fundamentalista do surrealismo André Breton (a quem o degredado russo declarou: “Para a arte, a liberdade é sagrada, é a sua única salvação. Para a arte, tudo tem de ser tudo.”). Além de passagens pelo gélido inverno ucraniano, pelos encantos mediterrâneos da Turquia, os fiordes noruegueses, Barcelona, Paris e a estranha e congelante Moscou. E, principalmente, o tórrido distrito de Coyoacán na Cidade do México.

Frida Khalo eTrotsky
Conhecido no mundo como o grande companheiro de Lenin, Trotski foi o colíder da Revolução Comunista de Outubro de 1917 na Rússia dos czares; o comissário russo vitorioso da I Guerra e o criador do Exército Vermelho. Um comunista - lá no fundo um detestável pequeno burguês - que gostava de vida em sociedade, boa bebida, boa comida e almejava sempre o conforto proporcionado pela renda de seus escritos. Apesar de, ele e seu carrasco, terem um comportamento estoico na vida e na desgraça.

Trata-se de um livro bastante realista – onde escorre vodca, sangue e medo por suas entrelinhas -, mas absolutamente verdadeiro em meio a um romance histórico e noir. Retrata-nos o esplendor da falseta governista do temido ditador Stalin; expõe os meandros de seus serviços secretos, a monstruosidade da manipulação das pessoas através da mentira e a crueldade de mais alto grau no tratamento dado à população faminta, suja, doente, enregelada e maltrapilha. Nada além de um governo genocida, característica, a partir de então, de outras “revoluções comunistas” como a cubana, a chinesa e a cambojana, na sequência.

E Padura coloca-nos então a questão política chave do livro: onde termina o ideal socialista e inicia-se um processo totalitário? A obra faz-nos refletir se não seria necessário admitir que a concepção marxista de sociedade e do socialismo estava errada. O próprio autor considera que “a classe operária tinha demonstrado com a experiência russa sua incapacidade de governar a si própria”. O autor, assim, traça um retrato histórico das consequências da mentira ideológica e do seu poder destrutivo sobre a utopia mais importante do século XX.

Ramón Mercader preso no México
Segundo o próprio Trotsky concluiu, “a União Soviética não fora mais que a precursora de um novo sistema de exploração e que a sua estrutura política tinha inevitavelmente de gerar uma nova ditadura, maquiada, quando muito, com outra retórica...”. Era obrigado a reconhecer que o stalinismo não tinha suas raízes no atraso da Rússia nem no ambiente imperialista hostil dos czares, mas na incapacidade do proletariado de se transformar em classe governante.

O golpe do montanhês georgiano Stalin na nascente revolução soviética, após a morte de Lenin (supostamente envenenado por ordem do próprio Stalin), decretando o purista Trotsky como traidor da revolução e o doloroso expurgo e assassinato de milhões de indivíduos (a maioria inocente), instituindo o império da mentira, leva-nos, sem dúvida, a concluir que a revolução comunista legítima e original morreu no berço. Como disse o próprio proscrito Trotsky em 1937: “sinto pena de mim mesmo e de todos os que, enganados e usados, acreditamos alguma vez na validade da utopia fundada no já então desaparecido país dos sovietes...”.

Leonardo Padura
Assim, o modelo tido hoje como comunista ou socialista nada mais é que o conceito stalinista de governar, haja vista os países que na atualidade são considerados comunistas – todos eles ditaduras totalitaristas sangrentas como a de Stalin – entre os quais Cuba, Venezuela, Síria, Coréia do Norte, China e, dissimuladamente, ainda a Rússia, dentre as 49 ditaduras ainda existentes no mundo. O socialismo nesses países e a moderna história russa demonstrada por Leonardo Padura vêm confirmar surpreendentemente que o comunismo nasceu morto e que este livro O Homem que Amava os Cachorros é seu epitáfio.

Valdemir Martins
Novembro de 2018.

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19 de nov. de 2018

O que o Sapiens não conhece da sua própria história


A pessoa que se propõe a ler Sapiens – Uma Breve História da Humanidade (Companhia das Letras), do professor e historiador israelense Yuval Noah Harari, com certeza é instruída. Uma obra monumental escrita de forma fluente, de fácil leitura e assimilação, Sapiens é uma deliciosa proposta de completar seus conhecimentos e surpreende o leitor ao mostrar quanto ele não sabe. Claro, a não ser que ele seja também um expert como Harari.


A leitura é aderente e não se consegue largá-la com facilidade. Tem-se a sensação de estar lendo algo sempre relativamente familiar no geral, mas os liames científicos, históricos, culturais e religiosos são permanentemente surpreendentes e muito esclarecedores. E uma das qualidades da obra é alertar leitores despreparados para entender e aceitar rompimentos de tabus culturais e religiosos, principalmente estes que via de regra estão fortemente inoculados na mente e na tradição – ou na cultura, como se refere Harari – da maioria das pessoas.


Queiram ou não Adão e Eva, a vida principia-se há cerca de 3,8 bilhões de anos, a partir de simples moléculas e depois micro-organismos aquáticos que se tornaram hoje complexos seres cheios de crenças e conhecimento e não sabem muito bem distinguir o que é um e outro. Quem respira as crenças impele a cultura e a história para trás. Quem evolui com o conhecimento, está mais para destruidor inconsciente (ou não) da cultura, das crenças e da vida como a conhecemos.


O autor é convincente o suficiente para nos mostrar que o dinheiro não existe. Está apenas na mente das pessoas que, assim, com essa crença, sustentam os mercados, os bancos, os governos e as nações. Aqui se entenderá também o porquê de as civilizações ameríndias permutarem ouro por bugigangas, certas e conscientes de que faziam trocas vantajosas. Entenda por que os poderosos impérios ruíram em batalhas na antiguidade e na paz na história recente (como o inglês e o francês). O macaco é realmente nosso ancestral? E qual o papel do Neandertal nessa transmutação?

Perceba e assimile a destruição gradativa de nossa naturalidade com a evolução tecnológica que tende a nos escravizar em sua dependência quase que total. Ou você vive hoje sem um smartphone, um satélite, um automóvel, um medicamento, um computador ou um chip? Ou não vai depender da evolução das tenebrosas pesquisas genéticas? Já parou para ponderar que o remédio para a cura do Alzheimer pode trazer consigo a fantástica e perigosa evolução e aperfeiçoamento da mente humana que pode vir a subjugar seus semelhantes. Imagine um instrumento da inteligência artificial, no futuro, fazendo o backup do seu cérebro e rodá-lo num PC para qualquer outro fim.


Assustado? Já deu para perceber que o livro é muito sério, não é mesmo? E tudo é tratado com embasamento histórico e científico. O máximo que o autor se aproxima da ficção está em suas considerações e projeções das consequências das evoluções da tecnologia. Para sua própria reflexão, considere que o título do epílogo do livro é: “O animal que se tornou um deus”.


Harari é considerado hoje um dos grandes pensadores do século 21. E trata o leitor não como um ignorante das coisas, mas considera que você sabe e entende muito, mas talvez não perceba e não sopese o contexto e o conjunto dos fatos que conhece. Daí seu empenho de certa forma didático em analisar a história da humanidade de forma simples e objetiva, o que torna o livro um prazer de leitura. É um daqueles raros livros que você fecha no final com satisfação e sabendo que mais cedo ou tarde voltará a folheá-lo.

Valdemir Martins
20/10/2018

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25 de jul. de 2018

O mundo que (ainda) não terminou (3).


Eternidade por um Fio
Com a Europa dividida em Oriental e Ocidental, ou capitalista e comunista, como resultado do espólio político da Segunda Guerra Mundial, iniciam-se as aventuras de mais uma geração das cinco famílias que deram início a esta saga na trilogia O Século, do competente Ken Follett. Desta vez, em Eternidade por um Fio, terceiro livro da série, esses protagonistas vão contracenar com alguns ícones históricos da segunda metade do século XX, como John e Bobby Kennedy, Martin Luther King, Lyndon Johnson, Brejnev, Kruchev, Gorbachev, McCarthy, Reagan, Nixon, Carter, Bush, Lech Walesa, Dubcek, Jaruselsky, Willy Brandt, entre outros, também astros em uma nova peleja, denominada Guerra Fria, iniciada logo após a Segunda Guerra. Aqui apenas os Estados Unidos e a URSS - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas disputam a hegemonia política, econômica, tecnológica e militar no planeta, embate que durou de 1945 a 1991 com as duas potências tentando implantar em outros países os seus sistemas políticos e econômicos.
Encerrando a II Guerra em maio de 1945, os russos invadiram Berlim, a capital da Alemanha nazista, um átimo antes dos aliados ocidentais capitaneados pelos EUA. Acabaram conquistando também nações satélites como Polônia, Checoslováquia, Hungria, Romênia e Bulgária tornando-as igualmente comunistas. A Alemanha e consequentemente Berlim – como uma ilha – foram divididas com os norte-americanos, que liberaram sua parte para que se tornassem independentes e democratas, ao contrário do que ocorreu com o lado soviético.
A URSS, composta por 15 repúblicas, ocupando um território de cerca de 22 milhões de km² e 290 milhões de habitantes se tornou, então, a segunda maior potência econômica e militar do mundo. Destacou-se também na corrida espacial e na produção de armas nucleares, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, principal adversário e líder do modelo capitalista. Com governos centralizadores, ditatoriais, conservadores e retrógrados, os países do bloco socialista, incluindo a própria União Soviética, abiscoitaram uma grave crise econômica na década de 1980. A falta de concorrência, os baixos salários e a falta de produtos causaram um flagelo econômico e social jamais pensado pela sobrepujada população. A falta de democracia também gerava uma grande insatisfação popular. Em 1985 o então presidente da União Soviética, o renovador Mikhail Gorbachev, começou a implementar a Glasnost (reformas políticas priorizando a liberdade) e a Perestroica (reestruturação econômica). Estavam assim preparando-se para deixar o socialismo, rumo à economia de mercado capitalista, com mais abertura política e democrática. Na sequência, os países satélites e algumas repúblicas soviéticas foram retomando sua independência política. A queda do afamado Muro de Berlim em novembro de 1989 pôs fim à Guerra Fria e, em 1991, foi dissolvida oficialmente a URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Imaginem os bastidores dessa história vivida pelos personagens da obra. O gênio literário de Ken Follett transforma toda a tensão dos desdobramentos históricos dessa época em episódios de suspense e expectativa de forma brilhante. De pronto, com narrativas intensas tanto em Washington como em Moscou, ele nos coloca em meio às provocações e negociações da crise dos mísseis em Cuba, um dos eventos mais emblemáticos do livro e o que mais se aproximou de um real fim do mundo pelo risco de uma guerra nuclear como nunca houve até a atualidade. Segue-se a construção do Muro de Berlim e seus dramas principalmente locais com episódios inerentes de fugas e da separação comovente de famílias.  Os inúmeros fatos ocorridos durante a luta pelos Direitos Civis nos EUA enredam-nos com os protagonistas em linchamentos de negros por radicais brancos sulistas e pelo Ku Klux Klan, em diálogos e passagens brilhantes com Martin Luther King, John Kennedy e seu irmão Bobby e, posteriormente, nos similares e previsíveis assassinatos dos três líderes por ativistas brancos radicais.
Destaque para a banda musical criada por um medíocre estudante inglês que se torna sucesso mundial – padrão The Beatles e Rolling Stones, “seus contemporâneos” - e em cujas aventuras podemos vivenciar os dramas das drogas, novidade na época dos hippies; a explosão maior do rock’n roll; a liberação feminina; o sexo livre; a Guerra do Vietnã e, posteriormente, até a queda do muro. Outros personagens de relevo na obra revelam-nos o perfil de trabalho da imprensa à época, quando então eclodiu o escândalo do Watergate e o consequente impeachment do incompetente presidente Nixon; e o papel da TASS - agência oficial de notícias soviética. Do lado de lá, um jovem russo consegue tornar-se assessor e braço direito dos principais dirigentes soviéticos influenciando, para o bem ou para o mal, suas decisões. Sua irmã gêmea consegue enviar para o Ocidente livros de sucesso mundial escritos por um dissidente prisioneiro na Sibéria (não citado, mas certamente uma referência a Alexander Soljenítsin, autor de Arquipélago Gulag). Além de passagens pela Primavera de Praga, pelo forte movimento sindicalista Solidariedade na Polônia, pelos movimentos políticos de massa, pelas terríveis polícias políticas Stasi e KGB da Alemanha Oriental e da URSS respectivamente.
Neste encerramento da trilogia Follett não comete ousadias formais. A leitura é extremamente envolvente, principalmente para quem já superou os cinquenta anos de idade e, portanto, foi de alguma forma testemunha dos fatos históricos do livro. Por outro lado, além do entretenimento, aos mais jovens a obra pode transformar-se também numa animada aula de história como jamais se pode aprender numa sala de aula, dada a dinâmica e a seriedade das profundas pesquisas, forte marca nas obras de Ken Follett.
Esta é uma obra literária da compaixão por todas as vítimas inocentes do século vinte, sejam as milhões, sejam as efêmeras, pois a elas o autor dedicou textos e talento com a profundidade da verdade e do sentimento; sem lamúrias, mas com pesar. Pois só aqueles que conhecem ou vivenciaram a história podem ter a comiseração pelos que deram suas vidas, voluntária ou involuntariamente, pelo bem comum de um companheiro (a), da família, da pátria e da humanidade.
Valdemir Martins
20/07/2018.
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18 de jul. de 2018

O mundo que (ainda) não terminou (2).


Inverno do Mundo
Com o título extremamente adequado ao contexto do segundo livro da trilogia, Ken Follett mantém o ritmo de sua narrativa colocando em cena os descendentes das cinco famílias como principais protagonistas, ao lado de personagens históricas como Stalin, Churchill, Hitler, Roosevelt, Patton, De Gaule e Mussolini entre outros.
Como consequência do Tratado de Versalhes que sacramentou o fim da Primeira Guerra Mundial, a Alemanha – sucedida pela República de Weimar – foi colocada como a grande perdedora e principal responsável por todos os delitos cometidos no conflito e suas consequências sociais, políticas e econômicas. A caracterização da nação dos kaisers como grande vilã nesse drástico tratado de paz despertou tamanho ódio no ex-soldado nacionalista e antissemita Adolf Hitler que o levou a fundar o partido nazista, ascendendo ao poder na então nova Alemanha, como o Terceiro Reich, e a apenas vinte anos da assinatura daquele tratado eclodiu a Segunda Guerra Mundial. Agora envolvidos, além dos países do primeiro conflito armado, a Espanha, a Itália e o Japão.
Todos os bastidores dessa tragédia maior da humanidade estão ricamente detalhados por Follett em mais esta espetacular obra que entremeia a ficção à história, como também os ícones históricos aos personagens ficcionais. Fatos surpreendentes e pouco conhecidos como a atuação dos camisas negras britânicos, leva-nos a reconhecer neles os radicais camisas pardas do nazismo. É um livro em grande parte chocante – como o foi a própria realidade –, com muitos trechos de tensão e suspense, abrandados pelas belíssimas passagens e dramas de amor, de paixão e de comiseração. Os bondosos fictícios e reais felizmente são maioria, contrastando com a grande quantidade de carrascos, como é sobejamente conhecido por todos, os quais geram no livro, com frequência, sentimentos de revolta e indignação nos leitores.
Follett não foge à sua talentosa escrita de espionagem e a linha descritiva elegida por ele nos proporciona, a partir de 1933 até 1945, conhecer detalhes sórdidos das tropas, milícias e polícias ideológicas, com especial destaque para os requintes sádicos principalmente dos espanhóis, alemães e russos nos diversos momentos de seus domínios em terras alheias e junto às populações inocentes e indefesas, não importando a idade. Os dramas não marcaram presença somente nos campos de batalha, mas igualmente nas cidades, com grande profundidade e extensão. O Estado policialesco, coercitivo e repressor era o proprietário de tudo.
Por outro lado, o autor bem demonstra a franca recuperação dos Estados Unidos à depressão de 1929; o início da discreta aceitação do homossexualismo; o desenvolvimento tecnológico alemão e americano – sempre invejado pelos retrógrados bolcheviques soviéticos -; e a alegria das produções cinematográficas dos judeus de Hollywood (E o vento levou... e os musicais, por exemplo) e das performances das brilhantes orquestras, como a do major da aeronáutica Glenn Miller.
Assim, deste devastador embate restou-nos a estimativa de cerca de 47 milhões de pessoas mortas. Os soviéticos foram os que mais tiveram baixas com cerca de 26 milhões de mortos. O Holocausto é o tenebroso título para o extermínio étnico gratuito de seis milhões de indefesos civis judeus europeus de todas as idades e sexo nas cidades e campos de concentração, número somente superado pelo governo bolchevique de Stálin que consegui aniquilar onze milhões de camponeses ucranianos em nome da mentirosa reforma agrária para sustentar a elite dominante do comunismo russo.
A segunda guerra foi onde mais pessoas morreram em toda história da humanidade. Restou, então, um mundo dividido em Ocidente dominado pelos americanos e Oriente com predominância soviética, dando início à chamada Guerra Fria que marcou o restante do século XX.
Valdemir Martins
18/07/2018.

Veja o comentário sobre o tervceiro volume em https://contracapaladob.blogspot.com/2018/07/o-mundo-que-ainda-nao-terminou-3.html

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12 de jul. de 2018

O mundo que (ainda) não terminou (1).


O Homem demorou milhões e milhões de anos para surgir e se desenvolver até o inadmissível estágio atual de inacreditavelmente começar a se autodestruir, arrastando consigo o generoso habitat que o gerou e o criou. Excetuando-se as civilizações mais unidas e argutas - como a japonesa, a americana, a canadense e algumas europeias -, o restante das civilizações do mundo, conscientemente ou não, está em plena degeneração.

Não causa estranhamento que precursores dessa previsível hecatombe, cujo processo teve o início de sua intensificação no século passado com as guerras e revoluções que exterminaram dezenas de milhões de pessoas em todo o mundo, tenham hoje papel fundamental em defesa da salvação ou preservação do planeta. Assim demonstram, enquanto civilizações, que aprenderam alguma importante lição com seus ambiciosos desvarios políticos do passado.

E esses desatinos estão muito bem retratados de forma, apesar de romanceada, veridicamente históricas na trilogia literária do escritor britânico Ken Follett intitulada O Século, composta pelos livros Queda de Gigantes, Inverno do Mundo e Eternidade por um Fio.

A trilogia acompanha o destino de cinco famílias de nacionalidades britânica (uma inglesa e uma galesa), alemã, russa e americana, ao longo do século XX, durante seus principais fatos e com seus mais espetaculares protagonistas históricos. O toque de genialidade de Follett está em conseguir estabelecer diálogos e convivências entre personagens reais e fictícios de forma extremamente natural e sem constrangimentos. Daí a necessidade de o leitor jamais se posicionar como lendo uma obra de História, apesar da pesquisa seriíssima do autor para expor os fatos históricos entremeados ao seu enredo. Seus relatos envolvem também uma expressiva riqueza de descrições sobre costumes, moda, mobiliário, transportes, movimentos sociais, músicas, economia, política, locais e personalidades prevalentes à época dos momentos da obra.

Reflexos da Revolução Industrial que invadiram o início do Século XX acirraram disputas territoriais e políticas na Europa, despertaram a defesa dos direitos femininos e indispuseram a força trabalhadora contra a sua exploração pela aristocracia.

No primeiro livro, corretamente intitulado Queda de Gigantes, as cinco famílias são convenientemente posicionadas nos principais países protagonistas da Primeira Guerra Mundial: Reino Unido, Alemanha, Rússia e Estados Unidos. Seus membros, oriundos de diversificadas classes sociais e culturais e diferentes correntes ideológicas, convivem e circulam num contexto pré-guerra e pré- revolucionário proporcionando-nos um conhecimento apropriado da conjuntura social, política e econômica da época. Nessa atmosfera histórica, com narrativa que cobre de 1911 até 1924, o autor consegue envolver-nos de forma rica e precisa na complexidade de acontecimentos que geraram esses conflitos armados. E leva-nos à indignação de constatar que a Primeira Guerra foi efetivada por absoluta intransigência pessoal, indecisão e acovardamento de líderes políticos - principalmente da Inglaterra - que trataram divergências de opinião de forma irresponsável, quando o conflito poderia ter sido evitado apenas nas negociações.

Além da admirável luta pela implementação do voto feminino na Grã Bretanha, da guerra em si, do Tratado de Versalhes, da Liga das Nações, das descrições de personalidades como Lênin e Trotsky, do desenvolvimento de tecnologia bélica primária e do uso desumano de lança-chamas e gazes mortais, Follett arrasta-nos à também sanguinária revolução bolchevique na Rússia, revelando com espetacular crueza as barbaridades com a população antes e depois da derrubada do regime czarista. O Império Austro-húngaro e o Império Otomano, as principais batalhas ocorridas, as tentativas de paz, os avanços e recuos nos atrozes combates de trincheira, a frágil participação da França – como vítima – e a decisiva participação dos Estados Unidos ao entrar na conflagração, constroem um monumental romance onde, como sempre, fica assinalado que nas guerras não existem vencedores. Não só a narrativa vibrante, cheia de surpresas, perigos, paixões e sensualidade prende-nos à leitura, mas também a capacidade que o autor tem de envolver-nos na torcida por alguns personagens em especial.

Com uma linguagem ágil e direta Ken Follett nos proporciona entender esta passagem histórica complexa, principalmente aqui no Brasil onde esse sórdido episódio é muito mal estudado nas escolas. Mas o principal, além do entretenimento e da preciosa aula de história, é que ele nos faz entender de forma definitiva que a violência, o radicalismo, o preconceito e a intolerância somente causam-nos perdas irrecuperáveis.


Veja o comentário do segundo volume em https://contracapaladob.blogspot.com/2018/07/o-mundo-que-ainda-nao-terminou-2.html

Valdemir Martins
12/07/2018.
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12 de mar. de 2018

Do nada brotou o Geovani, menó.




O alarido difundido pela Companhia com o livro O Sol na Cabeça, do novato e morador carioca Geovani Martins, abarcou até seis páginas de Jeronimo Teixeira na Veja, rasgando o verbo pra elogiar o garoto. Botaram até frases do Moreira Salles e do Chico Buarque como se um deus tivesse nascido, papo reto. Resolvi comprar o bagulho e o li, inteiro, num só tranco, neste domingo.

Assim como Rachel, Graciliano e João Cabral nos desvendaram os sertões nordestinos, Geovani escancara-nos os morros do Rio de Janeiro, despejando através de sua impiedosa e surpreendente escrita, o ambiente, a realidade e a vida da molecada, dos adolescentes e de suas famílias nas favelas. E de forma magnífica, revela as realidades acobertadas nas frequentes matérias da imprensa e jamais registradas pelo público leitor, ouvinte ou telespectador. Nada lhe escapa – o narcotráfico, os nóias, a polícia corrupta, a macumbeira, os evangélicos, a inocência, a violência, o amor, as drogas (todas), a linda borboleta, a família, as novinhas, a amizade, a penúria, o trabalho, a escola – pois ele é fruto desse reino.

O livro, enfim, apesar de suave, é impactante e marca o nascimento de potencial grande escritor caso venha a se preparar culturalmente para isso. Nesta obra de estreia ele usa da oralidade popular com a coragem de criar contos inteiros no linguajar dos “moradores”, como ele designa quem reside na favela – em nenhum momento fala em “comunidade” como a imprensa hipócrita costuma usar -, fazendo-nos vivenciar o real, o autêntico diálogo e dialeto local. Conto seguinte, volta ele ao português convencional, porém com muito estilo.

De origem humilde, Geovani tem o talento e soube aproveitá-lo na composição desta obra superlativa. Seu texto vai de uma situação para outra, mesmo no conto curto, como numa montanha-russa. Sai do suspense para a violência e pá, está no lirismo. Nesta obra claramente autobiográfica, ele consegue narrar cenas atrozes presenciadas e situações de pressão e terror sem qualquer ranço de revanche ou vingança, o que bem demonstra a maturidade do autor apesar de sua pouca idade. Ou seja, é habilidade nata.

Geovani está longe ainda de Machado, Graciliano, Rachel e Cabral, mas tem tudo para ser mais um grande escritor brasileiro: talento, sensibilidade; conta com o apoio de uma excelente editora e, agora, o ambiente carioca em ebulição envolvendo integral e diretamente os morros cariocas, palco e manancial dos dramas e das histórias para novos trabalhos do autor.

Sob a influência da escrita do autor desatei a escrever este artigo. E assim, mano, acabei usando expressões por ele ditas pro bonde.

Valdemir Martins
12/03/2018.

27 de fev. de 2018

Donna Tartt sempre surpreende quem gosta de trama densa.


Fico muito cansado lendo Donna Tartt. Esgotado. Porém muito, muito feliz. Ela consegue enlaçar-nos em seu texto através de liames antecipados de situações, criando ansiedade e suspense. Num texto intensamente bem construído, ainda nos contempla oportunamente com uma boa história além de referências históricas ou técnicas do que está envolvido na trama. E nada melhor, pelo menos para mim, que o intenso prazer de uma boa leitura. Arrefece qualquer cansaço.

Longe de ser uma romancista de formação, como um Thomas Mann, a controversa Donna Tartt aproxima-se dele num viés moderno e contemporâneo, versão bem norte-americana. Nada de importante e crucial – seja em detalhe ou não - escapa à sua construção de escrita exuberante. Com uma dinâmica narrativa extremamente funcional, arquiteta romances monumentais como é o caso também do seu aclamado “O Pintassilgo” (The Goldfinch), de 2013, ganhador do Prêmio Pulitzer de Ficção em 2014 ( veja comentário  no blog Contracapa/LadoB http://contracapaladob.blogspot.com.br/2017/03/uma-monumental-montanha-russa.html ). E, não por acaso, muito críticos comparam seu estilo ao de Charles Dickens.

Neste “A História Secreta”, seu romance de estreia em 1992, o que poderia ser uma aborrecida história de um grupo de estudantes de grego numa gélida universidade em Vermont, no interior norte-americano, transforma-se numa maratona de situações não tão acadêmicas. Apesar de um pouco pesado no início, o romance segue num crescendo ritmado, com graves e agudos, passando por uma inusitada bacanal dionisíaca e um dramático complô assassino e subsequentes situações de suspense e desespero, como numa tragédia grega. A construção competente de personagens leva-nos até os complexos perfis psicológicos praticamente de todos os participantes da trama em primeiro e segundo níveis. E Tartt lida muito bem com seus egos, proporcionando que o leitor participe das situações exatamente por conhecer como pensam e agem suas principais criaturas. E para eles, simplórios ou sofisticados, não há limites para o consumo de álcool e até de drogas, exalando forte espírito de uísque por suas páginas.

Não sou editor, mas – como se já o fosse – eliminaria alguns trechos de discussões do grupo de alunos e de seu distinto professor sobre construção de textos em grego, Platão, Homero, Dionísio, a Ilíada e a Odisseia e por aí afora. Não que deixe de ser importante, mas inadequado e dispensável no seu excesso. Os leitores não são hermeneutas e Tartt poderia ser um pouco parcimoniosa na transmissão de seus conhecimentos da língua e da cultura grega antiga. Mas a construção da obra no todo é de grande qualidade literária e leva-nos, por exemplo, em determinado capítulo, a quase congelar no rigoroso inverno de Vermont ao lado de um dos protagonistas. Põe em ação, progressivamente, um perfeito personagem sádico arrivista, promotor de recorrentes diatribes, que incomoda propositalmente o leitor, fazendo-o vivenciar com intensidade e participar, assim, involuntariamente, da absorvente trama. A própria autora assim o descreve no texto: “Era pior quando ele escolhia para vítima uma pessoa específica. Sua sobrenatural perspicácia lhe dizia em qual nervo tocar, e em que momento exato, para ferir e provocar o máximo de indignação”.

E a obra termina como o derretimento da neve que tanto a caracteriza. Lenta e gradualmente, trazendo consigo, em seus gélidos resíduos, a obsessão de manter um segredo, vigiada pelo permanente fantasma da marcante personalidade do membro dominante da turma.

Valdemir Martins, em 26/02/2018.

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