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29 de jun. de 2021

O Desassossego da Noite invade também os dias.

Familiarizar-se com a família conservadora e extremamente devota. Esta é a primeira tarefa na leitura de O Desassossego da Noite, brilhante livro de estreia da já premiada jovem holandesa Marieke Lucas Rijneveld (29 anos), de texto extremamente elaborado com rico teor literário. Um drama estonteante que quase nos faz chegar às lágrimas e nos arranja ansiedade e profunda tristeza já no primeiro capítulo.

Vencedor do International Booker Prize* de 2020, esta obra moderna, de forte linguagem poética, atravessa-nos emocionalmente, mesmo estando tão distantes dos costumes da área rural dos Países Baixos. É lá que se passa este romance contemporâneo de evocação terna e visceral de uma infância presa entre a vergonha e a salvação.

A partir de um fato assaz marcante, a vida da família altera-se peremptoriamente. E um fantasma passa a pesar e a marcá-la constantemente. Os pais, com seus afazeres e suas crenças, profundamente conservadores e carolas, preocupam-se com quem se foi e deixam de dar atenção aos seus filhos. Estes, por sua vez, se vão afastando lentamente da família para encontrar, no abandono a que foram deixados, estratégias que lhes permitam lidar com a tragédia e sobreviver ao luto, mesmo que isso implique muitas vezes violência e desassossego.

Rijneveld, através de sua protagonista - uma menina de doze anos -, alfineta crítica e sistematicamente, às vezes até com sarcasmo, as considerações religiosas, cobrando sempre resultados dos costumes e mesmices dos crentes, entre eles seus pais e o próprio pastor. Usa com inteligência a argumentação infantil para expressar suas convicções, críticas e pontos de vista sobre os costumes e a sociedade, como o relato de uma criança na voz de um adulto.

Carregado de metáforas e “pensamentos sábios”, como reflete a protagonista, o livro leva-nos a conjecturar sobre as situações cotidianas que vivenciamos. Bule com nosso passado infantil, como uma colher a mexer numa panela, fazendo-o também com nossas crenças, manias e preferências. “As pessoas precisam de problemas pequenos para se sentirem maiores” é um dos exemplos que nos leva à reflexão.

Uma obra para quem aprecia um bom texto e não apenas uma boa história. Um texto muito bem estruturado, que leva à reflexão, às vezes poético, às vezes sarcástico e até necessariamente vulgar, mas com excelência de qualidade literária. Parte de estereótipos infantis para mostrar a importância de se valorizar e apoiar as pessoas e suas fraquezas, as quais, por vezes, levam-nos a atos extremos. Um livro que parte do dramático, passa até pelo cômico e deixa o leitor surpreso, indignado, enojado e muito ansioso.

Este O Desassossego da Noite não tem ainda, até esta data, uma edição brasileira. Li-o numa publicação portuguesa, cujo e-book adquiri pela internet, por recomendação do excelente site literário lusitano Wook. Mas, de qualquer forma, fica aqui minha forte recomendação de leitura.

Valdemir Martins

29.06.21

O International Booker Prize é um laurel que homenageia (e premia com 50 mil Libras) autores e tradutores por uma mesma obra de ficção traduzida para o inglês e publicada no Reino Unido e Irlanda. Neste caso, a tradutora premiada foi a também holandesa Michele Hutchison.

** Se alguém quiser o arquivo do livro em PDF, basta clicar em "Seguir" este blog e solicitar em Contato, no pé desta página.

Fotos: 1. Capa edição portuguesa; 2. Salvamento tardio; 3. Vacas leiteiras; 4. Gado sacrificado devido a aftosa ; 5. Rãs da protagonista ; 6. Marieke Lucas Rijneveld.

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16 de jun. de 2021

As Memórias do Livro são vários livros.

A premiada escritora australiana Geraldine Brooks consegue a façanha de, com uma série de “contos”, formar um grande romance. Em As Memórias do Livro ela engenhosamente narra a história quase verídica – pois é baseada em pesquisas de inúmeros fatos reais – de uma Hagada (narrativa), obra única em sua essência, pois reconta a história do êxodo e relata a sequência de rituais que devem ser feitos na noite do Pessach, a Páscoa dos judeus.

No entanto, trata-se de uma obra sacrílega, pois viola seriamente as leis religiosas ao conter iluminuras, características de livros cristãos. Por ser um trabalho artístico maravilhoso e um opúsculo sagrado medieval, é considerada uma raridade. E o que é mais intrigante, sobreviveu à Inquisição Espanhola, ao regime nazista, à guerra civil na Bósnia e, enfim, a séculos de antissemitismo na Europa. Por último, foi salva, estranhamente, por um muçulmano em Sarajevo. Além de conter um enigma: por que e por quem foi elaborado?

Uma competente conservadora de documentos australiana, com sérios problemas de relacionamento com a mãe – uma respeitada neurologista que sonhava com a carreira médica para a filha – recebe a incumbência da ONU de recuperar o livro. Em seu trabalho acaba envolvendo-se amorosamente com um bibliotecário bósnio e emocionalmente com o filho dele, em estado vegetativo em decorrência da guerra local.

Brooks leva-nos a uma fascinante viagem no tempo para acompanhar a vida dos personagens responsáveis pela história da Hagada em diversas épocas. São histórias independentes, como contos, que basicamente se sustentam e mantêm um liame que no final vai amarrar todo o romance. Impossível parar de ler, pois se aprende muito – e de maneira breve – sobre o judaísmo, a conservação de documentos, culinárias típicas, a censura da Inquisição e sobre os tratamentos médicos no século XVIII.

Brooks comentou em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, por ocasião do lançamento do livro (2008), que trabalhou como se fosse repórter para descobrir detalhes saborosos de épocas passadas, como o sabor do vinho, o cheiro do sal e a cor dos cabelos das mulheres. A pesquisa de campo incluiu ainda traçar o perfil da sociedade Bósnia contemporânea, uma vez que Sarajevo é o centro da história.

O resultado, sem dúvida, é este excelente livro que demonstra o talento de Brook para narrativas ricas, envolventes e misteriosas que, apesar de densas, estimulam a leitura contínua também por sua qualidade literária.

Valdemir Martins

16.6.2021

Fotos: 1. capa 1ª edição; 2. o haganá; 3. Conservação de livros; 4. Sarajevo durante a guerra; 5. Geraldine Brooks.

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2 de jun. de 2021

Matéria Escura: nossas escolhas irreversíveis

Tudo começa muito ameno. A tradicional e feliz família norte-americana; o drink no bar com o velho amigo e, de repente, o terror. Assim começa a intrincada ficção científica contemporânea da obra Matéria Escura, do roteirista e escritor americano Blake Crouch, festejado pela crítica principalmente por sua trilogia Wayward Pines, que foi adaptada para a série de televisão pela Fox em 2015.

Uma obra breve, dinâmica, com fatos se sucedendo velozmente. Quando terminar o primeiro quarto do livro Crouch conseguirá deixá-lo tão confuso e atordoado quanto estará o protagonista. Mas aí será tarde. O livro o terá engolido e você não conseguirá se livrar dele. Estará lendo compulsivamente, sem vontade de largar, uma trama brilhante.

Neste momento em que é lançado o computador quântico, celeríssimo, que vai tornar os atuais PCs obsoletos, pois usa a base teórica da mecânica quântica - um território da ciência habitado por partículas subatômicas -, nada mais oportuno que ler esta obra. Este thriller, também célere e de muitas reviravoltas, exige do leitor algum conhecimento científico. Trechos falam de física quântica e multiespaço e não devemos nos intimidar se não entendermos o que estamos lendo por que, a seguir, aos poucos o próprio enredo vai esclarecendo todas as nossas dúvidas. E o livro volta à sua dinâmica.  E, assim, o espaço-tempo passa a dirigir a história, surpreendendo-nos a cada espaço de tempo. 

Uma obra que nos faz refletir sobre os valores da vida, conforme a personalidade de cada leitor. Cada indivíduo atribui valores diferentes de outros às mesmas coisas, aos mesmos objetos e às mesmas situações e circunstâncias. E são valores individualmente incontestáveis, dado que cada um tem sua individualidade; sua forma de ver, interpretar e sentir. E assim, cada um tem sua realidade, seu padrão, suas escolhas. Seu mundo.

A trama, de forma crescente, fica mais complicada para o protagonista, tendo, permanentemente, de fazer escolhas. E aí, começam a prevalecer seus valores morais e seu amor pela família, o que vai ajudá-lo em suas grandes dificuldades. E aqui a obra nos revela forçosamente que reflitamos sobre a importância de nossas escolhas, sempre. E sobre as escolhas que fizemos: “Não posso deixar de pensar que somos mais do que a soma total de nossas escolhas e que todos os caminhos que poderíamos ter trilhado influem de algum modo na matemática de nossa identidade”, proclama o protagonista.

Claro que o livro não é uma maravilha literária, pois sobram pontas soltas ou ausentes. Mas cumpre sua função de fornecer conhecimentos e entretenimento, e de nos fazer pensar e refletir. E, assim, encontrei o encantador mundo da reflexão sobre minhas próprias escolhas. Seriam histórias tão fascinantes e incríveis que eu poderia escrever um livro. O que talvez eu faça.

Valdemir Martins

01.06.2021

Fotos: 1. capa; 2. Drink antes do terror; 3. Injetar para viajar; 4. Um ponto de chegada; 5. O autor Blake Crouch.

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