Pesquisar este blog

15 de dez. de 2019

O intimista e surpreendente Sobre os Ossos dos Mortos ****


Para nós brasileiros que praticamente não conhecíamos a escritora polonesa Olga Tokarczuk, recém-laureada com o Nobel de Literatura e o Man Booker International Prize, lê-la converte-se numa agradabilíssima surpresa. É uma brilhante contadora de histórias com simplicidade sofisticada.

Cartaz do filme holandês
Em 2014 foi editado no Brasil, em uma tiragem limitada pela Tinta Negra, seu romance fragmentário Os Vagantes, que se encontra esgotado. Agora, em função das premiações, a Editora Todavia lançou “Sobre os Ossos dos Mortos”, obra selecionada pelo jornal britânico The Guardian como um dos 100 melhores livros do século 21; foi adaptado para o cinema no filme holandês Rastros e levou o Urso de Prata no Festival de Berlim de 2017.

A obra, muito bem estruturada e com uma escrita moderna, inovadora, é um diferenciado suspense, não convencional, cuja história se passa na atualidade numa remota e gélida vila polonesa. Sua protagonista, Janina, uma ex-engenheira e professora de inglês aposentada, costuma se dedicar ao estudo da astrologia, à poesia do inglês William Blake, à manutenção de casas de veraneio e a sabotar armadilhas visando impedir a matança de animais silvestres.

Ela, em primeira pessoa, é a narradora do enredo, misturando thriller e humor, numa reflexão permanente sobre a condição humana e a natureza. O leitor (a) viaja com a cabeça de Janina, uma vez que ela descreve ricamente os fatos e simultaneamente faz reflexões filosóficas e divagações astrológicas sobre os fatos narrados, seus conviventes, suas moléstias e sua solidão: “A realidade envelheceu e ficou senil; está sujeita às mesmas leis que qualquer organismo vivo – envelhece. Assim como as células do corpo, seus componentes mais elementares – os sentidos – sucumbem à apoptose. A apoptose é a morte natural, provocada pelo cansaço e pelo esgotamento da matéria.”.

Janina é uma excêntrica senhora ateia que subverte o corriqueiro na vida das pessoas. Até suas convicções sobre a morte chegam a beirar a comicidade. Aliás, o cômico, é algo que espreita muitas das situações vividas por ela. Baseado em suas narrativas, o livro torna-se intimista, com devaneios sobre tudo, até sobre o que as pessoas pensam quando estão em silêncio na igreja.

Olga Tokarczuk
Perturbador, algo macabro, abordando temas como o mundo natural e a civilização, este livro é um romance instigante sobre temas como loucura, injustiça contra indivíduos marginalizados e direitos dos animais, causa da qual Olga é ativista.

O livro extrapola a história de crimes e investigações convencionais, sua espinha dorsal, para se tornar um belo suspense existencial. Com um final surpreendente, tem tudo para ser uma bela fantasia, mas é de um realismo irretorquível.

Valdemir Martins
em 14/12/2019.

*** Se você gostou deste comentário, siga-nos. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito do blog. Muito obrigado!


19 de nov. de 2019

O Instituto, de Stephen King: um prodígio em criatividade e talento no suspense. ****


O norte americano Stephen King é um monstro. Insuperável em seu campo literário na atualidade, assim como o foram Shakespeare, Dostoievski, Agatha Christie, Rimbaud, Faulkner e Saramago, entre outros, nos seus.

Sua mais recente obra publicada no Brasil, O Instituto, é o ápice dessa afirmativa. O mestre aqui é bastante parcimonioso na fantasia, mas prodigaliza criatividade e talento no suspense. A leitura desse livro torna-se um grude, sendo muito difícil interromper sua leitura e tirá-lo da memória enquanto fazemos outras coisas.

Aqui ele desenvolve um protagonista incrível no qual todos apostam suas fichas. E perdem. O jogo é brutal e outro protagonista e diversos personagens fortes começam a participar da trama e a proporcionar ondas de suspense, revolta e emoção nas 544 páginas da obra.
 
Este seu 61º livro envolve mais uma vez diversas crianças e, neste caso, com dotes sobrenaturais, raptadas de seus lares e levadas para um local onde serão estudadas por uma organização inescrupulosa e King mais uma vez transforma crianças em heróis da sua história. Com sua maestria, ele nos envolve num mundo de suspense, ansiedade e horror onde o bem às vezes é vencido pelo mal.

Alguns personagens vão marcar-nos com suas lições importantes como o valor da amizade, da sinceridade, da coragem e da não submissão às injustiças, enquanto a equipe dessa organização é sinistra e não tem limites aos maltratos, à falsidade, dando oportunidade excepcional para o autor explorar as mentes e comportamentos de líderes e comandados sociopatas.

King mais uma vez traz um alerta para seu trauma de catástrofes globais, sempre potencialmente comandadas por mentes humanas distrofiadas. A convivência aparentemente pacífica entre as distrofias, sociopatias e os defensores do bem estarão sempre se contrabalançando. Fica aí mais um clamor de alerta do genial Stephen King.

Valdemir Martins
01/11/2019.

23 de out. de 2019

Um inesperado e exótico romance glacial ****


Desde sempre os Homens aprenderam a sobreviver e acabaram por dominar a inóspita e cruel região do círculo polar ártico. Civilizações remotíssimas por lá estiveram a partir de 5 mil a.C., seguidas por vikings e mais recentemente, a partir do século XIX, com modernas embarcações e até balões, o Homem Branco frustra-se e não sobrevive às rigorosas intempéries e impensáveis condições de sobrevivência glacial. Foram inúmeras as expedições fracassadas, com muitas tragédias, enfrentadas por eles que, por mais que se organizassem, não tinham um mínimo de preparo e de conhecimento do que realmente é viver à média de 70 graus negativos no inverno e a dias e noites que duram até seis meses.

Cena do filme
Somente os Homens - como se intitulam os Esquimós - conseguiram essa proeza, lá vivendo desde tempos imemoriais e desenvolvendo uma cultura própria, inacreditável, inaceitável e rigorosamente difícil para a civilização moderna. A partir de fatos reais, o ítalo-americano Hans Ruesch escreveu um dos mais estranhos e fascinantes romances de nossos tempos: Sangue sobre a Neve (Top of the World), já imortalizado também em filme por Anthony Quinn e Peter O’Toole em 1960.

Primeiro contato com brancos
Traduzido para mais de vinte idiomas e com um grande número de edições, esta obra alcançou sucesso e popularidade. É um romance emocionante que não só tem o apelo e charme do exótico. Através de suas páginas, vivemos as aventuras e desventuras de uma pequena família de esquimós naquelas extensões intermináveis ​​de gelo e na longa noite glacial.

Os costumes, os mitos, a atmosfera íntima do iglu, as corridas vertiginosas nos trenós, a caça, enfim, toda a vida familiar dessas pessoas simples e cordiais está neste romance emocionante e doloroso.

Iglu típico da região polar
Esta realista história de Ernenek, a formação de sua família, as agruras por que passam, o difícil relacionamento com os brancos que invadem seus territórios e desrespeitam sua cultura, e suas tradições nada costumeiras para nós, torna-se uma dramática e reveladora novela. Numa linguagem objetiva, célere e contundente, Ruesch escancara a degradação de uma cultura pura, enraizada nas mais dramáticas e primitivas técnicas de sobrevivência, nas quais qualquer ser humano da atualidade jamais conseguiria viver.

Meio de transporte único
O povo esquimó, na época de ambientação do livro, tem características distintas do homem branco. Eram analfabetos, com valores, crendices, técnicas, conhecimentos, hábitos diferenciados das demais civilizações, com maneiras caracterizadas de se relacionarem com o mundo e com a sua comunidade. Por isso, a maioria das passagens da obra é surpreendente, trazendo muito suspense, escatologia, situações tristes e outras vezes cômicas, mas sempre mantendo aquilo que deveria ser um mantra na sociedade moderna: alegria, ingenuidade, honestidade e solidariedade.

Sabe-se que os esquimós enxergam mais de 30 tipos de branco (cor), ele não nasce com essa capacidade, ele a adquire, ele a aprende. Isto significa que não é necessário ser filho biológico de um Esquimó para conseguir enxergar os 30 tipos, basta que desde criança seja ensinado por um adulto.

Vila esquimós e brancos
Mas, como habitual, o Homem Branco chega para deteriorar tudo, com suas armas, suas bebidas, seus costumes e, nefandamente, com seu credo. Como acontece na atualidade, os pregadores religiosos confundem, aterrorizam, ameaçam e exploram os ignorantes, os puros e os ingênuos. “As regras do Homem Branco, que ao invés de trazer algo de útil, que sirva para alguma coisa, e que esteja em falta, como mulheres, os homens trouxeram suas leis, que para os Esquimós não servem para nada, apenas para gerar discórdia e conflito”, disse Ernenek. É o que retrata este dinâmico romance.

Hans Ruesch
Com certeza, por causa desses líderes religiosos e da ganância da civilização, hoje os esquimós estão praticamente extintos ou radicalmente modificados.

No entanto, este é um livro para ser guardado para o entretenimento, a cultura e principalmente como guia de sobrevivência do Homem Branco – ou quem o suceder – quando vier a nova Era Glacial insistentemente apregoada pelos cientistas do mau tempo e os catastrofistas de sempre. Guarde o seu exemplar. Vai que eles estão certos... Este livro lhe será muito útil.

Valdemir Martins
07.10.2019           

19 de set. de 2019

O espírito retrógrado das novas radionovelas


Quando criança escutava, por curiosidade ou acidentalmente por estar no recinto onde mãe, tia e avó ouviam o rádio, as populares radionovelas. Esses dramas radiofônicos tornaram-se um hábito brasileiro, principalmente para as mulheres acentuadamente a partir da década de 1940. E o grande sucesso veio em 1950 com a adaptação da cubana “O Direito de Nascer”.

Telenovela O Direito de Nascer
Nessa mesma década a televisão em preto e branco começava a proliferar nos lares brasileiros. Claro que o seu primeiro grande sucesso foi a adaptação dessa consagrada história radiofônica, tornando-se, assim, a telenovela um tremendo sucesso que domina os índices de audiência até a atualidade e ditam moda, fazendo a cabeça da população.

Dentre outros tantos fatores mais e menos graves, este representa o mais visível e descarado como causa da falta do hábito de leitura dos brasileiros. É muito mais cômodo por a bunda na poltrona e, como numa mágica, ver e ouvir as peripécias e artimanhas dos personagens, os cenários, as paisagens, as músicas envolventes, sem ter o trabalho de imaginá-las, criá-las.

Assim esse povo sofrido se descontrai e torce por seus heróis, assimilando os enredos de baixíssimo nível cultural e as mensagens subliminares de interesse das emissoras e de seus patrocinadores. Assistir televisão é um vício enraizado em gerações e tão maléfico quanto os smartphones. Seu conteúdo é predominantemente danoso ao bom senso e ao livre arbítrio desde que influencia os neurônios a admirar, respeitar e temer aquilo que a indústria televisiva patrocinada e politizada determina.

Onde não há consciência cultural, os interesses financeiros, claro, conduzem as trilhas das emoções para o campo dos próprios interesses econômicos. Só há concessões quando estes atuam também no meio cultural. E raríssimas vezes – como no atual folhetim Bom Sucesso, da Globo, conduz-se as atenções para os livros, mas ainda assim sem o puro intuito de se difundir o hábito de ler, sua importância e implicações.

Não bastasse a força da TV, dos gadgets, da internet; da falta de programas governamentais; da demolição cultural sofrida recentemente por nossas escolas e universidades usadas para moldar politicamente a cabeça de nossas crianças e jovens, surge um novo monstro na lagoa intitulado “audiolivro”. Sim, um “livro” que você ouve e não lê! Como nas radionovelas de nossas avós, porém em equipamentos e sistemas extremamente modernos.

Ouvir não é ler!
A menos que eu seja um néscio, tenho comigo que livro é algo produzido para se ler. Seja por prazer, para distração, para estudar, como entretenimento e enriquecimento cultural, a prática da leitura desenvolve e apura o vocabulário com grafia correta das palavras e sentenças, tornando fácil e aprimorando qualquer escrita. A leitura dinamiza o raciocínio, agiliza a memória e facilita a interpretação lógica e emocional. A leitura é um ato de grande importância para a aprendizagem do ser humano, a leitura, além de favorecer o aprendizado de conteúdos específicos, aprimora o raciocínio.

Nada contra os audiolivros, técnica naufragada há alguns anos e que agora é ressuscitada graças ao desenvolvimento tecnológico e que comparece ao mercado para auxiliar no faturamento das editoras. Mas a comunicação e o marketing de suporte a essa tecnologia não pode confundir o consumidor e ludibria-lo a ponto de afirmar e reforçar esse conceito absurdo de que ouvir é ler. Em recente entrevista ao Publishnews (24/7/2019) Camila Cabete, gerente sênior de relações com os editores da Kobo no Brasil, afirmou sobre audiolivro de sua empresa: “Num país onde a briga é por leitores, o áudio vem para nos ajudar nesta luta". Como assim, se a briga é por leitores e não por ouvintes? Que me desculpem os que compartilham desse conceito, mas ouvir não é ler, definitivamente.

Obvio que ouvir algum tipo de livro – técnico, de estudo, para reforço de memória, para entreter crianças que não lêem, para deficientes visuais, etc. - tem seus benefícios, mas absolutamente é coisa de preguiçoso se usado com fins literários. E esse é o grande perigo e minha demanda. Não se pode incentivar as pessoas a trocar a leitura de um Madame Bovari, um Crime e Castigo ou ainda um O Pintassilgo, em livro físico ou e-book, por ouvir essas obra primas como se fossem radionovelas. Duvido que alguém consiga “ouvir”, para citar um exemplo, a obra de intensa profundidade psicológica do consagrado norte americano Daniel Keyes intitulada Flores para Algernon (https://contracapaladob.blogspot.com/2019/05/a-vida-por-tras-de-uma-janela.html). É perder desastrosamente toda a riqueza literária da obra, por sua revolucionária grafia, e despejar seu valor no lixo.

Os maravilhosos livros infantis
E mais catastrófico ainda – e por que não dizer até pecaminoso – é colocar um audiolivro nas mãos de uma criança alfabetizada. Estes pequenos seres que se projetam como o futuro garantido do mercado livreiro e editorial se trabalhados adequadamente para formar novas gerações de leitores, sustentarão o futuro do livro. Audiolivro para crianças não alfabetizadas é muito interessante e revela-se um novo grande negócio, mas se dirigido para as que já leem, torna-se um tiro no pé para as editoras.

Assim, afirmo: definitivamente ouvir uma obra de importância literária não é o mesmo que lê-la. E ensinar uma criança a escutar um livro ao invés de incentivá-la a lê-lo é um crime contra a cultura, a indústria do livro e ao desenvolvimento intelectual do petiz. E, com isso, seguir essa tendência seria colocar em pauta novamente os atos nazistas e bolcheviques de queima de livros ou o enredo de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, destruindo-se livros agora não pelo fogo, mas pela tecnologia e o desespero de se recuperar um mercado que muitos não tiveram a competência de desenvolver adequadamente.

Valdemir Martins
12/9/2019.




14 de ago. de 2019

Um nome escrito em sangue, luz e sombra.


As obras literárias, usualmente, iniciam-se com um fato ou frase de referência, como a ponteira de um compasso que lhe possibilitará toda a abrangência do enredo. E, do mesmo modo, biografias iniciam-se nas origens ou nascimento do biografado.

Capa: Vocação de S. Mateus

Não é o caso da obra Caravaggio - Um Nome Escrito em Sangue, do talentoso escritor e jornalista galês Matt Rees. Uma excelente biografia romanceada, cujo texto faz um jogo de luz e sombra como a extraordinária obra do artista e como a sua própria existência.

 A vida Michelangelo de Merisi (da Caravaggio), assim conhecido por ter nascido nessa cidade italiana – é apresentada de forma bastante realista neste livro, resultado da formação jornalística de Rees. A obra nos faz vivenciar, entre os séculos 16 e 17, o princípio do movimento Barroco nas artes, retratando os conflitos vivenciais e espirituais de Caravaggio.

Morte da Virgem Maria
Suas origens e infância somente são apresentadas no meio da obra, entremeada por importantes dados históricos daquele momento em Roma e na alta cúpula da igreja católica, da qual Caravaggio chegou a ser um protegido.

Mas o fundamental deste livro são as descrições de como o pintor elaborava e produzia suas famosas telas; seus modelos, ambientes e motivações emocionais; assim como sua realidade de vida transferida para o âmago das telas. É recomendável, para maior proveito da leitura, que se observe na internet as obras citadas no texto para se obter um vislumbre mais exato do que é descrito, discutido pelos personagens e criticado pelos concorrentes.

Madona e o Menino
Caravaggio trabalhava a partir da natureza das coisas, das pessoas, das situações autênticas. Em suas obras, mostrava o que captava dessas ocorrências reais revelando assim o significado mais profundo de seus temas. A ansiedade, o sofrimento e a esperança eram transferidos das pessoas que convivia para as personagens que pintava. Segundo o próprio Rees, “Durante séculos os críticos menosprezaram Caravaggio. Mas sua influência na pintura é imensa. Rubens difundiu seu estilo pelo norte da Europa. Velazquez levou sua estética à Espanha. Ele é essencial ainda hoje para o estilo dos artistas, fotógrafos e diretores de cinema contemporâneos, como David Hockney e Martin Scorsese.”

David e a cabeça de Golias
Este livro não é uma grande obra literária, mas um brilhante escrito sobre o mais importante pintor do barroco; um revolucionário nas técnicas e no estilo. Um pintor que tirou os santos do céu e das nuvens para colocá-los onde viveram: na terra e no meio da pobreza e da sujeira. Até a sujidade das unhas dos retratados por Caravaggio foi copiada por importantes – ou não - pintores a partir de então.

Matt Rees
Apesar de sua obra ser dominada por temas bíblicos e por ter convivido com a alta cúpula da igreja católica, da Inquisição e dos Cavaleiros, Caravaggio sempre teve uma existência difícil e sofrida, e nunca abandonou sua vida mundana, violenta e nefanda.


Valdemir Martins
13/08/2019.


2 de jul. de 2019

Um Anjo Caído e Outro Morto


A justiça divina pode ser estranha ou cruel, dependendo do credo, conforme seus escritos beatificados. Mas, em termos religiosos, Justiça, via de regra, conota punição. O que dizer, então, da justiça dos homens? Tanto no Ocidente como no Oriente a Justiça pode, da mesma forma, ser exacerbadamente rigorosa e irracional ou branda demais e inexistente. Constatações estão aí no cotidiano e na História.

E quando, então, se trata de fazer justiça com crianças? Nada muda, a não ser os sentimentos dos adultos quanto ao assunto, encorpando o exagero ou fragilizando as lições, e raramente se culpando.

O livro O Culpado (The Guilty One), obra de estreia da escocesa Lisa Ballantyne (2012), arrasta-nos impiedosamente para o aterrador assassinato de um menininho de oito anos num parque e a suspeita de que seu amiguinho de onze anos seja seu algoz.

A narrativa é emocionante e envolvente. E num ping-pong com o pesado julgamento do menino Seb (Sebastian) e o passado turbulento de seu advogado Danny (David), a autora tem a competência criativa de apresentar, de forma sempre dissimulada na trama, seus principais personagens e os “crimes” por eles cometidos.

Todos temos deslises involuntários ou não em nossa existência. E Lisa sabe muito bem explorar esse fato no desempenho de um policial, um vizinho, um advogado, um jornalista, uma mãe, um pai ou quem quer que seja que participe da história. O enredo traga o leitor que, inconscientemente, vai avaliando e julgando as atitudes dos personagens e, sem perceber, comparando fatos de sua vida com a dos protagonistas.

Trata-se de uma obra profunda na análise psicológica dos personagens e de uma sociedade extremamente preocupada com aparências e julgamentos alheios. E isso é demonstrado com força principalmente na atuação maléfica da imprensa – o que não é novidade - considerando Seb, mesmo antes do julgamento, um monstro assassino de anjos, demonizando-o e moldando assim a opinião pública, colocando-a totalmente contra o garoto antes da sentença do tribunal.

Lisa Ballantyne
David é um reputado causídico com grande experiência em episódios de delinquência juvenil, mas perturba-se com este julgamento já que muitas vezes sua meninice invade seus pensamentos conforme os fatos vão progredindo. Sua infância catastrófica é maravilhosamente apresentada pela autora com detalhes que mexem na sensibilidade de qualquer leitor.


Essas passagens do passado são muito intensas – assim como o julgamento de Seb – de uma forma bastante realista e muitas vezes chocante. A cada passagem estaremos refletindo forçosamente sobre nossos próprios passos como pais, filhos, professores, vizinhos, colegas, cidadãos. Lisa escava e exuma nossas culpabilidades, pois se trata de uma obra sobre a culpa. A culpa de todos nós.



Valdemir Martins
30/6/2019.

*** Se você gostou deste comentário, siga-nos. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito do blog. Muito obrigado!

25 de jun. de 2019

O dilema não-lógico do mercado livreiro: ler ou ouvir?


Dos espasmos sexuais aos engasgos mercadológicos.


Depois do trágico lançamento de “Cinquenta Tons de Cinza” em 2011, a leitura de livros no Brasil nunca mais foi a mesma, pelo menos entre as mulheres. Em função do sucesso arrasador e estarrecedor de vendas, o teor lascivo de seu conteúdo e a desolação de sua capa cinza passaram a nortear diversos editores em busca de sucesso comercial. Assim, na época, várias editoras apostaram na sacanagem para obter ou aumentar os lucros em detrimento da cultura.

Nada contra os livros melados de doce amor, bebida, suor e sexo de E. L. James e Sylvia Day. Antes da catástrofe, outros tons desse cinza literário já vendiam muito, mas ainda não serviam de norte por serem mais discretos e por terem capas coloridas. Escritores como Nicholas Sparks, Danielle Steel e Nora Roberts, com todo o seu dramático melaço amoroso, sempre foram campeões. Infelizmente, para a literatura como um todo e felizmente para a s editoras, que assim conseguiram se manter para lançar – para sorte dos apreciadores de leitura mais nobre - também livros mais dignos e com teor literário de qualidade.


No ano da tragédia, eu dava consultoria e tinha uma pequena livraria, onde fazia questão de atender pessoalmente meus clientes. Quem então procurava o “Cinza” – invariavelmente mulheres – eu tentava induzir a levar também uma obra prima fortemente sensual de D. H. Lawrence: “O Amante de Lady Chatterley”. Esta - uma obra de 1928 que foi censurada e proibida no Reino Unido até 1966, quando foi liberada - tornou-se um bom argumento de vendas para as sedentas ninfomaníacas e sodomitas.

Nesta sua maravilhosa obra Lawrence descreve detalhadamente - e com uma forte carga de lirismo - as cenas amorosas mais íntimas da Lady com o guarda-caça da propriedade, uma vez que seu amado marido ficou paraplégico e impotente. Mas, jamais chega próximo às descrições incendiárias e muitas vezes grotescas dos “Cinzas”.


O reinado britânico tem um rico histórico de ótimos livros censurados além deste. O brilhante “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde, por exemplo, também foi proibido por muitos anos, por abordar o homossexualismo. Em Portugal tivemos a proibição de “O Crime do Padre Amaro”, de Eça de Queirós, por revelar que o padre pulava a cerca da amante. “Lolita”, obra prima do russo Vladimir Nobokov, foi censurado em pleno século 20 na França e na Inglaterra. Todos pelo teor erótico, como se não tivesse existido o comportamento “ilícito” de “Madame Bovary”, criado pelo realista francês Gustave Flaubert.


Aqui pelo Brasil, no espírito da matéria, alguns diriam que o buraco é mais embaixo. Obras mais vulgares como “Eu e o Governador”, de Adelaide Carraro (1967), e “A Volúpia do Pecado”, de sua grande rival Cassandra Rios, foram a sensação das leituras às escondidas numa sociedade ainda falsa puritana e sob forte censura do regime militar. “Feliz Ano Novo”, de Rubem Fonseca, também chegou a ser proibido pelos militares em 1976, e até o grande Jorge Amado causou algum espanto nas hostes tradicionalistas.

Mas como por terras tupiniquins culturalmente retrógradas por absoluta falta de uma política cultural oficial, pela péssima qualidade escolar e pela absoluta falta do hábito de leitura, vários desastres literários destacam-se na paupérrima história literária recente do país. Apesar de as patrulhas ideológicas terem tentado proibir em pleno século 21 o clássico de 86 anos “Caçadas de Pedrinho”, do consagrado Monteiro Lobato, por conter “passagens racistas” (sic), as obras literárias dos “imortais” ainda sobressaem-se no mercado livreiro nacional.

No atual contexto brasileiro ironicamente temos uma espécie de “censura invertida”, prejudicando as editoras e os livreiros pelo recrudescimento da crise econômica que levou o negócio livreiro nacional à situação que todos sabemos. Num mercado em queda e em crise, os livros de sacanagem mantêm-se firmes e os de autoajuda, juvenis, esoterismo e religiosidade sobressaem nas vendas por razões óbvias diante de 13 milhões de desempregados. E o prejuízo, mais uma vez, é da cultura literária.

Há meses não se tem livros de qualidade entre os mais vendidos no país e o perfil dos consumidores começou a mudar com a presença crescente dos jovens, principalmente mulheres nos grupos “literários” das redes sociais, no Youtube, no streaming, nos caixas das lojas físicas sobreviventes e nos e-commerces.

Vê-se claro e evidente o extraordinário esforço de sobrevivência das editoras no país. Mas certamente não é o audiolivro que irá salvá-las. Percebe-se aqui certo desespero nessa atitude, como, para mim, um “tiro no pé”. Pois o mais lógico e inteligente, tendo-se fôlego financeiro ou não, é investir no hábito de leitura e, portanto, na formação de novas gerações de leitores, assim como o McDonald’s sempre investiu na formação de glutões.

As editoras, porém, não podem apostar só nos glutões literários que venham a engordar seus cofres. Seu foco deve também – e principalmente – incluir o desenvolvimento do hábito num padrão de futuro, eletrônico, digital e customizado, que mantenha a leitura como base para o consumo de seus produtos vindouros.

Nada contra o audiolivro para ajudar nas finanças. Mas não é a salvação, como já vi apregoado por aí. Ouvir livro é coisa de preguiçoso. Ler livro é atitude de desenvolvimento pessoal, com atributos culturais, educativos, linguísticos, ortográficos, morfológicos, recreativos, relaxantes e de lazer, entre outros.

Incentivar a leitura é manter as nobres artes de escrever, editar, revisar, traduzir, ilustrar, publicar e comercializar, que abrangem uma infinidade de empregos dignos. Incentivar a leitura é enxergar um futuro seguro para o mercado livreiro. Cultivar a audição de livros é secar o mercado. É aplicar a injeção letal que falta para o definhamento do mercado editorial brasileiro.

Este, ironicamente, continuará nos tons de cinza.

Valdemir Martins, em 24/6/2019.