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19 de set. de 2019

O espírito retrógrado das novas radionovelas


Quando criança escutava, por curiosidade ou acidentalmente por estar no recinto onde mãe, tia e avó ouviam o rádio, as populares radionovelas. Esses dramas radiofônicos tornaram-se um hábito brasileiro, principalmente para as mulheres acentuadamente a partir da década de 1940. E o grande sucesso veio em 1950 com a adaptação da cubana “O Direito de Nascer”.

Telenovela O Direito de Nascer
Nessa mesma década a televisão em preto e branco começava a proliferar nos lares brasileiros. Claro que o seu primeiro grande sucesso foi a adaptação dessa consagrada história radiofônica, tornando-se, assim, a telenovela um tremendo sucesso que domina os índices de audiência até a atualidade e ditam moda, fazendo a cabeça da população.

Dentre outros tantos fatores mais e menos graves, este representa o mais visível e descarado como causa da falta do hábito de leitura dos brasileiros. É muito mais cômodo por a bunda na poltrona e, como numa mágica, ver e ouvir as peripécias e artimanhas dos personagens, os cenários, as paisagens, as músicas envolventes, sem ter o trabalho de imaginá-las, criá-las.

Assim esse povo sofrido se descontrai e torce por seus heróis, assimilando os enredos de baixíssimo nível cultural e as mensagens subliminares de interesse das emissoras e de seus patrocinadores. Assistir televisão é um vício enraizado em gerações e tão maléfico quanto os smartphones. Seu conteúdo é predominantemente danoso ao bom senso e ao livre arbítrio desde que influencia os neurônios a admirar, respeitar e temer aquilo que a indústria televisiva patrocinada e politizada determina.

Onde não há consciência cultural, os interesses financeiros, claro, conduzem as trilhas das emoções para o campo dos próprios interesses econômicos. Só há concessões quando estes atuam também no meio cultural. E raríssimas vezes – como no atual folhetim Bom Sucesso, da Globo, conduz-se as atenções para os livros, mas ainda assim sem o puro intuito de se difundir o hábito de ler, sua importância e implicações.

Não bastasse a força da TV, dos gadgets, da internet; da falta de programas governamentais; da demolição cultural sofrida recentemente por nossas escolas e universidades usadas para moldar politicamente a cabeça de nossas crianças e jovens, surge um novo monstro na lagoa intitulado “audiolivro”. Sim, um “livro” que você ouve e não lê! Como nas radionovelas de nossas avós, porém em equipamentos e sistemas extremamente modernos.

Ouvir não é ler!
A menos que eu seja um néscio, tenho comigo que livro é algo produzido para se ler. Seja por prazer, para distração, para estudar, como entretenimento e enriquecimento cultural, a prática da leitura desenvolve e apura o vocabulário com grafia correta das palavras e sentenças, tornando fácil e aprimorando qualquer escrita. A leitura dinamiza o raciocínio, agiliza a memória e facilita a interpretação lógica e emocional. A leitura é um ato de grande importância para a aprendizagem do ser humano, a leitura, além de favorecer o aprendizado de conteúdos específicos, aprimora o raciocínio.

Nada contra os audiolivros, técnica naufragada há alguns anos e que agora é ressuscitada graças ao desenvolvimento tecnológico e que comparece ao mercado para auxiliar no faturamento das editoras. Mas a comunicação e o marketing de suporte a essa tecnologia não pode confundir o consumidor e ludibria-lo a ponto de afirmar e reforçar esse conceito absurdo de que ouvir é ler. Em recente entrevista ao Publishnews (24/7/2019) Camila Cabete, gerente sênior de relações com os editores da Kobo no Brasil, afirmou sobre audiolivro de sua empresa: “Num país onde a briga é por leitores, o áudio vem para nos ajudar nesta luta". Como assim, se a briga é por leitores e não por ouvintes? Que me desculpem os que compartilham desse conceito, mas ouvir não é ler, definitivamente.

Obvio que ouvir algum tipo de livro – técnico, de estudo, para reforço de memória, para entreter crianças que não lêem, para deficientes visuais, etc. - tem seus benefícios, mas absolutamente é coisa de preguiçoso se usado com fins literários. E esse é o grande perigo e minha demanda. Não se pode incentivar as pessoas a trocar a leitura de um Madame Bovari, um Crime e Castigo ou ainda um O Pintassilgo, em livro físico ou e-book, por ouvir essas obra primas como se fossem radionovelas. Duvido que alguém consiga “ouvir”, para citar um exemplo, a obra de intensa profundidade psicológica do consagrado norte americano Daniel Keyes intitulada Flores para Algernon (https://contracapaladob.blogspot.com/2019/05/a-vida-por-tras-de-uma-janela.html). É perder desastrosamente toda a riqueza literária da obra, por sua revolucionária grafia, e despejar seu valor no lixo.

Os maravilhosos livros infantis
E mais catastrófico ainda – e por que não dizer até pecaminoso – é colocar um audiolivro nas mãos de uma criança alfabetizada. Estes pequenos seres que se projetam como o futuro garantido do mercado livreiro e editorial se trabalhados adequadamente para formar novas gerações de leitores, sustentarão o futuro do livro. Audiolivro para crianças não alfabetizadas é muito interessante e revela-se um novo grande negócio, mas se dirigido para as que já leem, torna-se um tiro no pé para as editoras.

Assim, afirmo: definitivamente ouvir uma obra de importância literária não é o mesmo que lê-la. E ensinar uma criança a escutar um livro ao invés de incentivá-la a lê-lo é um crime contra a cultura, a indústria do livro e ao desenvolvimento intelectual do petiz. E, com isso, seguir essa tendência seria colocar em pauta novamente os atos nazistas e bolcheviques de queima de livros ou o enredo de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, destruindo-se livros agora não pelo fogo, mas pela tecnologia e o desespero de se recuperar um mercado que muitos não tiveram a competência de desenvolver adequadamente.

Valdemir Martins
12/9/2019.




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