Quando criança escutava, por curiosidade ou acidentalmente
por estar no recinto onde mãe, tia e avó ouviam o rádio, as populares
radionovelas. Esses dramas radiofônicos tornaram-se um hábito brasileiro, principalmente
para as mulheres acentuadamente a partir da década de 1940. E o grande sucesso
veio em 1950 com a adaptação da cubana “O Direito de Nascer”.
Telenovela O Direito de Nascer |
Dentre outros tantos fatores mais e menos graves, este
representa o mais visível e descarado como causa da falta do hábito de leitura
dos brasileiros. É muito mais cômodo por a bunda na poltrona e, como numa
mágica, ver e ouvir as peripécias e artimanhas dos personagens, os cenários, as
paisagens, as músicas envolventes, sem ter o trabalho de imaginá-las, criá-las.
Assim esse povo sofrido se descontrai e torce por seus
heróis, assimilando os enredos de baixíssimo nível cultural e as mensagens
subliminares de interesse das emissoras e de seus patrocinadores. Assistir
televisão é um vício enraizado em gerações e tão maléfico quanto os smartphones.
Seu conteúdo é predominantemente danoso ao bom senso e ao livre arbítrio desde
que influencia os neurônios a admirar, respeitar e temer aquilo que a indústria
televisiva patrocinada e politizada determina.
Onde não há consciência cultural, os interesses financeiros,
claro, conduzem as trilhas das emoções para o campo dos próprios interesses
econômicos. Só há concessões quando estes atuam também no meio cultural. E
raríssimas vezes – como no atual folhetim Bom
Sucesso, da Globo, conduz-se as atenções para os livros, mas ainda assim
sem o puro intuito de se difundir o hábito de ler, sua importância e implicações.
Não bastasse a força da TV, dos gadgets, da internet; da
falta de programas governamentais; da demolição cultural sofrida recentemente
por nossas escolas e universidades usadas para moldar politicamente a cabeça de
nossas crianças e jovens, surge um novo monstro na lagoa intitulado
“audiolivro”. Sim, um “livro” que você ouve e não lê! Como nas radionovelas de
nossas avós, porém em equipamentos e sistemas extremamente modernos.
Ouvir não é ler! |
Nada
contra os audiolivros, técnica naufragada há alguns anos e que agora é ressuscitada
graças ao desenvolvimento tecnológico e que comparece ao mercado para auxiliar no
faturamento das editoras. Mas a comunicação e o marketing de suporte a essa
tecnologia não pode confundir o consumidor e ludibria-lo a ponto de afirmar e
reforçar esse conceito absurdo de que
ouvir é ler. Em recente entrevista ao Publishnews (24/7/2019) Camila Cabete, gerente sênior de relações
com os editores da Kobo no Brasil, afirmou sobre audiolivro de sua empresa: “Num
país onde a briga é por leitores, o áudio vem para nos ajudar nesta luta".
Como assim, se a briga é por leitores e não por ouvintes? Que me desculpem os
que compartilham desse conceito, mas ouvir não é ler, definitivamente.
Obvio
que ouvir algum tipo de livro – técnico, de estudo, para reforço de memória,
para entreter crianças que não lêem, para deficientes visuais, etc. - tem seus benefícios, mas absolutamente é coisa
de preguiçoso se usado com fins literários. E esse é o grande perigo e minha
demanda. Não se pode incentivar as pessoas a trocar a leitura de um Madame Bovari,
um Crime e Castigo ou ainda um O Pintassilgo, em livro físico ou e-book, por ouvir essas obra primas como se fossem radionovelas. Duvido que
alguém consiga “ouvir”, para citar um exemplo, a obra de intensa profundidade psicológica do consagrado norte americano Daniel Keyes intitulada Flores
para Algernon (https://contracapaladob.blogspot.com/2019/05/a-vida-por-tras-de-uma-janela.html). É perder desastrosamente toda a riqueza literária
da obra, por sua revolucionária grafia, e despejar seu valor no lixo.
Os maravilhosos livros infantis |
Assim,
afirmo: definitivamente ouvir uma obra de importância literária não é o mesmo
que lê-la. E ensinar uma criança a escutar um livro ao invés de incentivá-la a
lê-lo é um crime contra a cultura, a indústria do livro e ao desenvolvimento
intelectual do petiz. E, com isso, seguir essa tendência seria colocar em pauta
novamente os atos nazistas e bolcheviques de queima de livros ou o enredo de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, destruindo-se livros agora não pelo fogo,
mas pela tecnologia e o desespero de se recuperar um mercado que muitos não
tiveram a competência de desenvolver adequadamente.
Valdemir
Martins
12/9/2019.
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