Apesar de Ishiguro repudiar a
classificação desta sua brilhante obra “O Gigante Enterrado” (The Buried Giant)
como romance de fantasia, a mestra da fantasia e da ficção científica Ursula Le Guin a considerou uma fábula adulta (“Isso é
fantasia, e sua recusa em colocar o rótulo é evidência de que o autor se sente
superior a isso.”), com o que concordo. O atual Prêmio Nobel provavelmente está
ponderando todas as implicações subliminares do livro, desconsiderando seu
formato ou estilo. E ele, com certeza, como criador, está correto, pois somente
ele sabe exatamente a fórmula engendrada para transmitir suas mensagens e dar o
seu recado.
E deu. Comecemos com o fato de
que o gigante enterrado não existe, limitando-se a uma citação inicial de que
seria a causa de uma elevação no relevo; uma colina. E aí, as inúmeras
montanhas da obra, galgadas com enorme esforço pelos personagens, tomam conta
das paisagens, principalmente em seu terço final. Outra figura nessa simbologia
do gigante é a memória, enterrada por uma dominante névoa emanada pelo bafo de
uma dragoa – provavelmente simbolizando a religião – que causa a perda de
memória nas pessoas.
Não li ainda outras obras do britânico Kazuo Ishiguro. Acredito que meu première foi acertado nesta
magnífica obra onde são entrelaçados elementos históricos do século oito na Grã
Bretanha com suas lendas e mitologia grega. A crendice domina a obra e
predomina nos desígnios de vida dos seus protagonistas, dois simpáticos e
cativantes idosos que só transmitem amor e bondade. Mesmo nas piores circunstâncias
o casal tem sempre uma pergunta ou uma colocação que indica o lado bom das situações
ou mostram um novo caminho. Ajudam e são ajudados. É sempre o bem compensando o
bem.
Outra conjuntura simbólica é
frisada pela ideia fixa dos anciães Axl e Beatrice em visitar o filho em sua
aldeia que eles não veem há anos, tão saudoso quanto um defunto querido ou tão distante quanto a vela (ou a luz) que eles não podem ter. A não
admissão da perda de algo que muito se ama ou se necessita marca obsessivamente não só a
história, como também os principais personagens. O texto registra muitas
perdas: históricas, materiais, pessoais e de memória. E as compensações são
adquiridas de forma singela, quase natural, mostrando aqui o autor que não se
deve extrapolar nas tentativas ou na recuperação de perdas importantes. Existem
maneiras simples e leves de se apaziguar o coração e a alma.
Um velho guerreiro descendente do
rei Arthur – e seu garboso cavalo -, um jovem competente e impetuoso guerreiro –
e sua égua manca –, compreensivelmente antagonistas, convivem tolerantes por
solidariedade aos velhos. E um rapazote marcado fisicamente pelo mal e vítima
de perseguições, além de um bando de frades do bem e do mal completam as
principais figuras dramáticas desta magnífica história.
Como declarou o próprio Ishiguro,
esta não é sua principal obra – ele destaca sempre “Os Vestígios do Dia” -, mas
com certeza é sua mais profunda reflexão escrita sobre o esquecimento, o
respeito e o amor.
Por Valdemir Martins
Em 30 de janeiro de 2018.
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