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20 de set. de 2023

A agilidade do Homem Lento


Do nada, coisas impensáveis ocorrem na vida das pessoas. E um desses fatos é maravilhosamente explorado pelo Nobel sul-africano J. M. Coetzee em seu livro Homem Lento. Uma obra com a linguagem dramática típica de Coetzee trazendo o desespero e a solidão de um personagem inesquecível.

Os eventos que abrem o texto demonstram de imediato, a magistralidade do autor expondo fatos contundentes e avassaladores, iniciando o contexto de desespero que contamina o livro e o leitor de imediato. O desengano e a luta ante as dificuldades físicas, a enfermidade, a velhice, a inaceitável solidão e os sonhos que se desvanecem, erigem mais este impecável trabalho de Coetzee.

A mão salvadora parece ser o amor ou apenas uma paixão, algo que lhe foi inexistente nos seus 60 primeiros anos de vida. Sim, por que esta tem jeito de recomeçar-lhe agora, nesse ponto. Mas, sua paixão lhe traz também inúmeros problemas e o principal deles é uma pessoa absolutamente estranha que se entranha em sua vida. Aqui, Coetzee insere seu alter ego, uma personagem indesejável e que passa a perturbar nossa leitura como um verdadeiro incômodo. Mas, que é, na realidade, uma forma original de o autor abordar questões existencialistas e éticas no desenvolvimento da trama.

É aquela pessoa que de repente aparece e interfere insistentemente na vida das pessoas, sempre alertando para tudo que pode acontecer de mal na vida delas. Mas, também, sem deixar de escancarar as verdades. Um ser que será visto como maligno, inesgotável, indestrutível. Mais uma preciosidade nesta obra que nos faz refletir muito sobre valores e escolhas na vida. Necessidades desnecessárias: alternativas impensadas por absoluto deslumbramento e foco em situações, coisas e pessoas erradas. E uma autopunição inconsciente.

Nesta ficção arquitetada sobre a realidade e os sentimentos comuns das pessoas, fica a preleção de que, por pior que seja a situação, sempre há alternativas. Apenas depende de nós encontrá-las e utilizá-las ou não; com inteligência e sabedoria para não corrermos o risco da solidão voluntária, da viver-se fora do próprio tempo, como Marcel Proust, definhando no passado e sobrevivendo pelas memórias.

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Valdemir Martins

28.07.2023

Fotos: 1. Capa do livro; 2. O protagonista na bicicleta; 3. A massagista; 4. J. M. Coetzee.

14 de set. de 2023

Stella Maris: uma obra desconcertante.

Após a leitura de O Passageiro (vide comentário abaixo), do brilhante Cormac McCarthy, continuei a tortura psicológica no segundo livro de seu díptico, Stella Maris, cujo protagonista passa a ser a irmã do personagem análogo do primeiro livro. Já em seu início a mesma destrói diversos conceitos psicológicos e seus inúmeros testes, inclusive os de QI, em longa conversa com um terapeuta.

McCarthy, neste que é seu último livro, consegue escrever uma obra sem narrativas, composta só por seguidos diálogos, onde o leitor, em sua própria mente, vai construindo a narrativa. Uma técnica literária excepcional, muito pouco usada. Alicia, a adolescente protagonista, faz doutorado em Matemática e, ao discorrer sobre sua infância e pré-adolescência, faz um arrazoado entre filosofia e física. E quem lê, defronta-se com uma obra que põe em cheque conceitos sobre Deus, a verdade e a própria existência humana.

Num livro curto, mas extremamente profundo, apresenta-se uma obra que dignifica a literatura moderna com suas proposições viscerais em cima de um enredo breve, bastante complexo e essencialmente diverso. As críticas de uma jovem de apenas vinte anos – mas extremamente inteligente, vivida e sofrida – à sociedade que insiste em enxergar tudo sempre sob a mesma ótica, impressiona-nos pela contrastante lucidez de uma esquizofrênica, em diálogos contundentes sobre perda, saudade e loucura. Aqui, mais uma vez, McCarthy arrasa.

Como se previsse seu fim, McCarthy vem iluminar certos pontos escuros encontrados em O Passageiro e, talvez, em algumas obras anteriores. Consagra-se, sem dúvida, como um dos maiores escritores norte americanos em dois séculos.

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Valdemir Martins

15.07.2023

Fotos: 1. capa do livro; 2. Black River Falls, onde fica o instituto; 3. Einstein e Oppenheimer citados no livro; 4. Cormac McCarthy.