Ler “Flores para Algernon” incomoda. Desde
o início, onde parece que estamos lendo com areia nos olhos. A escrita com
grafia errada e encoberta propositalmente pelo norte-americano Daniel Keyes para reforçar a condição
de retardado mental do protagonista Charlie, por quarenta páginas iniciais, é o
que dá início ao incômodo. Mesmo assim, o leitor não desgruda do livro.
Então, a ansiedade de Charlie torna-se contagiante e atinge
quem está lendo sua luta para ficar inteligente, seja na padaria onde trabalha,
no laboratório experimental ou nas consultas médicas. Seja nas disputas com
Algernon. E, aos poucos, o texto começa a mudar e o personagem começa a desabrochar,
como uma flor cercada de espinhos.
Charlie após cirurgia |
Começa então a ficar clara a proposta de Keyes de ir
desmontando, gradualmente, as imagens que se constrói das pessoas, sejam elas
doutores, estudantes, genitores ou simples trabalhadores braçais. Não só no
texto, mas em reflexões sobre a vida real ao que o leitor é instigado pela
força extraordinária da obra. Com intensa profundidade psicológica, o livro
leva-nos a constatar - mais uma vez em ponderações – o quanto as mensagens que
nos foram passadas durante a infância e a juventude influenciaram a formação de
nosso caráter. E depois da leitura muita coisa pode mudar nos conceitos dos próprios
leitores.
Labirinto montado por Chalie |
As mensagens bruxas, que nos são transmitidas através das
falas e das atitudes de terceiros durante nosso período de desenvolvimento
intelectual, desde uma surra, puxões de orelha ou punições durante a infância
até aqueles comentários inconsequentes – tipo “você é um inútil” ou “nunca
vai ser ninguém na vida” ou ainda “Deus
vai te castigar...” -, podem, inconscientemente, levar algumas pessoas a
ser covardes, tímidas, agressivas ou pior, até psicopatas. Cada um acumula ou
desenvolve de forma diferente, de acordo com a atmosfera em que cresce: seu
ambiente familiar, suas amizades, sua educação, seus costumes. Agora,
consciente de seus antecedentes pessoais, imagine se acontecesse com uma mente
retardada.
Assim é com o protagonista, cuja evolução leva-o a enxergar
com absoluta clareza os fatos, pessoas, locais e mensagens que lhe foram
infligidas. Ele aprende tudo extraordinariamente rápido, mas não consegue evoluir
emocionalmente e lidar com seus sentimentos.
Charlie e sua paixão |
Apesar de fortemente densa, a obra flui com leveza, num
romance de ficção científica extremamente interessante e de leitura cativante,
claro, agora não mais com areia nos olhos. Do meio para o fim, a história sofre
uma reviravolta com alterações no protagonista e em seu coadjuvante. E, de
surpresa em surpresa, a obra consolida-se como um debate profundo sobre a
bondade, o relacionamento humano e a solidão. Por uma das personagens
principais, causadora de problemas e crises importantes na história, Keyes
demonstra o perigo de se ter aquela preocupação “do que os outros vão pensar”
e, assim, tornar-se uma pessoa egoísta em prejuízo inconsciente de quem se ama
de verdade.
Daniel Keyes |
O livro é um clássico da literatura norte-americana e adotado
lá como leitura básica em muitas escolas de segundo grau. Consideram-na importante na formação dos jovens por
despertá-los para o fato de que professores, chefes, líderes religiosos,
atletas e até mesmo nossos desafetos ou amados são pessoas como nós. Têm
sentimentos variáveis, dores na alma, problemas de alguma ordem, defeitos de
personalidade, doenças invisíveis, frustrações diversas e também seus próprios desafetos.
Keyes, nesta obra, apresenta-nos a vida que temos – o
cotidiano - por trás de uma janela. A janela da própria vida. Com muita
simbologia, constrói uma obra pungente, extremamente dolorida, apesar de
fascinante e assaz emocionante. Como já disse, ler esta obra incomoda. Ninguém
sai incólume à leitura de Flores para Algernon.
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Sobre o livro:
Entre
os temas mais recorrentes da ficção científica, a percepção de múltiplas
realidades já abriu margem para narrativas clássicas e questões tão profundas
quanto um buraco negro. Afinal, o mundo que sempre percebemos a nossa volta
realmente existe? Mas para além dos portais interdimensionais, o autor
norte-americano Daniel Keyes manteve os pés no chão dentro do universo scifi e
apresentou uma história que explora o conceito, ao mesmo tempo que impacta por
sua delicadeza. Publicado originalmente em 1966, Flores para Algernon foi o
grande expoente da carreira do escritor, ganhador do prêmio Nebula e inspiração
para o filme Os Dois Mundos de Charly (1968) – que garantiu a Cliff Robertson o
Oscar de Melhor Ator. E com mais de cinco milhões de exemplares vendidos é
referência dentro das escolas dos Estados Unidos. (Editora Aleph)
Sinopse
(com spoiler):
A obra
surgiu sobre as palavras de um homem de 32 anos e 68 de QI: Charlie Gordon. Com
excesso de erros no início do romance, os relatos de Charlie revelam sua
condição limitada, consequência de uma grave deficiência intelectual, que ao
menos o mantém protegido dentro de um “mundo” particular – indiferente às
gozações dos colegas de trabalho e intocado por tragédias familiares. Porém, ao
participar de uma cirurgia revolucionária que aumenta o seu QI, ele não apenas
se torna mais inteligente que os próprios médicos que o operaram, como também
vira testemunha de uma nova realidade: ácida, crua e problemática. Se o
conhecimento é uma benção, Daniel Keyes constrói um personagem complexo e
intrigante, que questiona essa sorte e reflete sobre suas relações sociais e a
própria existência. E tudo isso ao lado de
Algernon, seu rato de estimação e a primeira cobaia bem-sucedida no processo
cirúrgico. (Editora Aleph)
Preço
médio R$ 48,00. Em algumas lojas Saraiva e no site Amazon R$ 30,90. E-book
Kindle R$ 23,48.
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Que resenha excelente! Salvei seu blog nos favoritos para continuar acompanhando suas leituras.
ResponderExcluirObrigado Joyce! Caso tenha interesse em seguir o blog, clique no link superior direito do mesmo. Obrigado!
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