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23 de mai. de 2019

Este livro não tem rosto de romance.


Pode-se até ler Svetlana Aleksievitch como se fosse um romance, tamanha a dramaticidade dos escritos da premiada escritora e jornalista bielorrussa, incluindo o Nobel de Literatura de 2015.

No seu primeiro livro A Guerra não tem Rosto de Mulher, de 1986, a hoje setuagenária inicia a obra num prólogo já emocionante, estarrecedor e dramático. E, numa relevante e construtiva postura feminista, esclarece e inicia sua inédita e importante inversão das narrativas sobre as guerras:

Trabaladora, pegue em arma!
“Não sabíamos como era o mundo sem guerra, o mundo da guerra era o único que conhecíamos, e as pessoas da guerra eram as únicas que conhecíamos. Até agora não conheço outro mundo, outras pessoas. Por acaso existiram em algum momento? A vila de minha infância depois da guerra era feminina. Das mulheres. Não me lembro de vozes masculinas. Tanto que isso ficou comigo: quem conta a guerra são as mulheres. Choram. Cantam enquanto choram.”

Menina na guerra
Por essa conclusão lógica, constatou então que tudo o que se falava, escrevia e consagrava sobre as guerras era através da voz masculina. E, depois de inúmeras pesquisas e entrevistas com mulheres que viveram a guerra, concluiu que os relatos femininos são distintos e falam de outras coisas: “A guerra ‘feminina’ tem suas próprias cores, cheiros; sua iluminação e seu espaço sentimental. Suas próprias palavras. Nela, não há heróis nem façanhas incríveis, há apenas pessoas ocupadas com uma tarefa desumanamente humana. E ali não sofrem apenas elas (as pessoas!), mas também a terra, os pássaros, as árvores”. E completa: “Um mundo inteiro foi escondido de nós. A guerra delas permaneceu desconhecida… Quero escrever a história dessa guerra. A história das mulheres”, esclarece Svetlana.

Sapadoras no cerco de Moscou
Assim surge a monumental crônica feminina sobre a Segunda Guerra Mundial, mais especificamente nos confrontos entre nazistas e Exército Vermelho soviético, com passagens pela Revolução Bolchevique sob a tutela do carniceiro ditador Stálin. Trata-se, sobretudo, de um livro para pessoas sensíveis e corajosas, tanto homens como mulheres, interessados na verdade nunca contada - nem imaginada - sobre os reais bastidores das guerras, com mais de um milhão de mulheres tanto na retaguarda como na linha de frente dessas batalhas.

Batalhão de fuzileiras
A Academia Sueca atribuiu valor e poder a uma obra e estilo inéditos. Em séculos de literatura nada nesse gênero havia sido escrito. Svetlana criou, assim, um novo gênero literário classificado como novela coletiva. Ou seja, com seus textos a meio caminho entre a literatura e o jornalismo, ela usa a técnica de “colagem”, justapondo testemunhos individuais com o que consegue aproximar-se mais da substância humana dos fatos. 

As temidas aviadoras soviéticas
Não se consegue encontrar algo no estilo aproximadamente similar nem nas obras dos norte-americanos Truman Capote, Gay Talese, Tom Wolfe e Norman Mailer, precursores do jornalismo literário. Não se trata de escrever ensaio ou crônica sobre um único fato individual ou familiar, mas sim de uma tragédia coletiva de uma época longa baseado em dezenas de testemunhos explícitos de inúmeras mulheres, arrancados de suas almas. 

Mulher em luta corporal
A sofrida e feroz vitória soviética sobre os nazistas custou mais de 20 milhões de vidas humanas em quatro anos e só foi conseguida graças à imensa participação das mulheres soldados com idades entre catorze e mais de cinquenta anos. Sim, isso mesmo: de crianças a idosas.

Em nome da Revolução Bolchevique, o inescrupuloso e homicida Stálin, já em 1937, três anos antes de se enfiar na guerra contra os alemães com seu Exército Vermelho, começou a eliminar dessa hoste milhares de soldados e principalmente comandantes “não confiáveis” para se garantir no poder, consolidando sua ditadura sanguinária. E, assim, como não havia homens suficientes na União Soviética, as mulheres tiveram que se sacrificar heroicamente na defesa da pátria.

Órfãos soviéticos
Antes da metade do livro você se convence que pouco conhece de guerra. Tudo o que sabe é o básico, histórico, técnico, de heroísmo barato, com muito pouco sentimento. Pois Svetlana é implacável em sua apresentação crua, real, detalhada e humana da guerra. Sim, você vai ponderar: no meio de algo tão animalesco a guerra é humana. Em meio a algo tão “desumano” são as atitudes femininas, das soldados lá engajadas para vencer e sobreviver, que se destacam os atos heroicos e extremamente humanos, dilacerando a alma, a mente e a vida dessas guerreiras chamadas então de “irmãzinhas” por seus companheiros de batalhas, fugas, fome, frio, destruição e atrocidades. Enfim, de verdadeira carnificina.

Svetlana Aleksievitch
Neste livro, dezenas de depoimentos emocionantes, brilhantemente arrematados e organizados por Svetlana ao longo de anos, traduzem o ineditismo do massacre que foram os embates entre soviéticos comunistas e alemães fascistas (como são tratados pela autora), moldados pelos inacreditáveis destinos de patrióticos soldados soviéticos tratados como traidores pelo totalitarismo gélido e sangrento do alto comando stalinista.

Depois deste livro você vai encarar novas narrativas de guerras com outra visão. E vai concluir que tudo que já leu sobre os conflitos bélicos não tem realmente rosto de mulher.

Valdemir Martins
Em 22/05/2019.

Outros livros da autora publicados no Brasil pela Companhia das Letras: O Fim do Homem Soviético, Vozes de Chernobil, As Últimas Testemunhas e Rapazes de Zinco.

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