Dos espasmos sexuais
aos engasgos mercadológicos.
Depois do trágico lançamento de “Cinquenta Tons de Cinza” em
2011, a leitura de livros no Brasil nunca mais foi a mesma, pelo menos entre as
mulheres. Em função do sucesso arrasador e estarrecedor de vendas, o teor lascivo
de seu conteúdo e a desolação de sua capa cinza passaram a nortear diversos
editores em busca de sucesso comercial. Assim, na época, várias editoras
apostaram na sacanagem para obter ou aumentar os lucros em detrimento da
cultura.
Nada contra os livros melados de doce amor, bebida, suor e
sexo de E. L. James e Sylvia Day. Antes da catástrofe, outros tons desse cinza literário
já vendiam muito, mas ainda não serviam de norte por serem mais discretos e por
terem capas coloridas. Escritores como Nicholas Sparks, Danielle Steel e
Nora Roberts, com todo o seu dramático melaço amoroso, sempre foram campeões.
Infelizmente, para a literatura como um todo e felizmente para a s editoras,
que assim conseguiram se manter para lançar – para sorte dos apreciadores de
leitura mais nobre - também livros mais dignos e com teor literário de qualidade.
No ano da tragédia, eu dava
consultoria e tinha uma pequena livraria, onde fazia questão de atender
pessoalmente meus clientes. Quem então procurava o “Cinza” – invariavelmente
mulheres – eu tentava induzir a levar também uma obra prima fortemente sensual de
D. H. Lawrence: “O Amante de Lady Chatterley”. Esta - uma obra de 1928 que foi
censurada e proibida no Reino Unido até 1966, quando foi liberada - tornou-se
um bom argumento de vendas para as sedentas ninfomaníacas e sodomitas.
Nesta sua maravilhosa obra
Lawrence descreve detalhadamente - e com uma forte carga de lirismo - as cenas
amorosas mais íntimas da Lady com o guarda-caça da propriedade, uma vez que seu
amado marido ficou paraplégico e impotente. Mas, jamais chega próximo às
descrições incendiárias e muitas vezes grotescas dos “Cinzas”.
O reinado britânico tem um rico histórico de ótimos livros censurados além deste. O brilhante “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde, por exemplo, também foi proibido por muitos anos, por abordar o homossexualismo. Em Portugal tivemos a proibição de “O Crime do Padre Amaro”, de Eça de Queirós, por revelar que o padre pulava a cerca da amante. “Lolita”, obra prima do russo Vladimir Nobokov, foi censurado em pleno século 20 na França e na Inglaterra. Todos pelo teor erótico, como se não tivesse existido o comportamento “ilícito” de “Madame Bovary”, criado pelo realista francês Gustave Flaubert.
Aqui pelo Brasil, no espírito da matéria, alguns diriam que o buraco é mais embaixo. Obras mais vulgares como “Eu e o Governador”, de Adelaide Carraro (1967), e “A Volúpia do Pecado”, de sua grande rival Cassandra Rios, foram a sensação das leituras às escondidas numa sociedade ainda falsa puritana e sob forte censura do regime militar. “Feliz Ano Novo”, de Rubem Fonseca, também chegou a ser proibido pelos militares em 1976, e até o grande Jorge Amado causou algum espanto nas hostes tradicionalistas.
Mas com o por terras tupiniquins culturalmente retrógradas por
absoluta falta de uma política cultural oficial, pela péssima qualidade escolar
e pela absoluta falta do hábito de leitura, vários desastres literários destacam-se
na paupérrima história literária recente do país. Apesar de as patrulhas
ideológicas terem tentado proibir em pleno século 21 o clássico de 86 anos
“Caçadas de Pedrinho”, do consagrado Monteiro Lobato, por conter “passagens
racistas” (sic), as obras literárias dos “imortais” ainda sobressaem-se no
mercado livreiro nacional.
No atual contexto brasileiro ironicamente
temos uma espécie de “censura invertida”, prejudicando as editoras e os
livreiros pelo recrudescimento
da crise econômica que levou o negócio livreiro nacional à situação que todos
sabemos. Num mercado em queda e em crise, os livros de sacanagem mantêm-se
firmes e os de autoajuda, juvenis, esoterismo e religiosidade sobressaem nas
vendas por razões óbvias diante de 13 milhões de desempregados. E o prejuízo,
mais uma vez, é da cultura literária.
Há meses não se tem livros de qualidade entre os mais
vendidos no país e o perfil dos consumidores começou a mudar com a presença
crescente dos jovens, principalmente mulheres nos grupos “literários” das redes
sociais, no Youtube, no streaming, nos
caixas das lojas físicas sobreviventes e nos e-commerces.
Vê-se claro e evidente o extraordinário esforço de
sobrevivência das editoras no país. Mas certamente não é o audiolivro que irá
salvá-las. Percebe-se aqui certo desespero nessa atitude, como, para mim, um
“tiro no pé”. Pois o mais lógico e inteligente, tendo-se fôlego financeiro ou
não, é investir no hábito de leitura e, portanto, na formação de novas gerações
de leitores, assim como o McDonald’s sempre investiu na formação de glutões.
As editoras, porém, não podem apostar só nos glutões
literários que venham a engordar seus cofres. Seu foco deve também – e
principalmente – incluir o desenvolvimento do hábito num padrão de futuro,
eletrônico, digital e customizado, que mantenha a leitura como base para o
consumo de seus produtos vindouros.
Nada contra o audiolivro para ajudar nas finanças. Mas não é
a salvação, como já vi apregoado por aí. Ouvir livro é coisa de preguiçoso. Ler
livro é atitude de desenvolvimento pessoal, com atributos culturais, educativos,
linguísticos, ortográficos, morfológicos, recreativos, relaxantes e de lazer,
entre outros.
Incentivar a leitura é manter as nobres artes de escrever,
editar, revisar, traduzir, ilustrar, publicar e comercializar, que abrangem uma
infinidade de empregos dignos. Incentivar a leitura é enxergar um futuro seguro
para o mercado livreiro. Cultivar a audição de livros é secar o mercado. É
aplicar a injeção letal que falta para o definhamento do mercado editorial
brasileiro.
Este, ironicamente, continuará nos tons de cinza.
Valdemir Martins, em 24/6/2019.
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