O best-seller O Conto da Aia, minha primeira leitura de Margaret Atwood, revelou-se extremamente vagaroso em seu início. Quase desisti, pois além de lento, o desenvolvimento da obra é frequentemente mesclado com descrições similares às de um romance de formação, como a de um consultório médico que, se omitido, não seria notado, mas, enfim, tem seu valor literário:
“Quando sou chamada passo por uma porta de entrada que dá para uma sala
interna. É branca, sem traços distintivos, como a sala externa, exceto por um
biombo dobrável, de tecido vermelho esticado sobre uma estrutura de madeira, um
olho dourado pintado na superfície, com uma espada virada para cima com duas
serpentes entrelaçadas abaixo dele, como uma espécie de punho. As cobras e a
espada são fragmentos, cacos de simbolismo quebrado que restaram do tempo de
antes.”
O muro dos enforcados |
Porém,
evoluindo a leitura, fui constatando que não se tratava de um texto fraco,
ruim. Afinal, é um Atwood (diriam). Apesar de uma história pouco vibrante, morosa, a estrutura do texto é fascinante, dinâmica. Trata-se, pois, de um
romance surrealista e não uma ficção científica como muitos insistem afirmar. A
própria autora assume que é um romance de ficção especulativa de algo possível
de acontecer. No caso deste romance especificamente, nota-se que o talento de
Atwood tem a preocupação de explorar o inconsciente; prospectar sistematicamente os
sonhos, as coincidências, e os fenômenos do acaso; e injetar magia, humor negro
e inquéritos sobre a sexualidade e o amor. Tudo, sem exceção, requisitos
básicos para se classificar o texto na doutrina de André Breton.
A
protagonista ocupa-se amiúde de ponderações e reflexões sobre o “tempo de
antes” e de possibilidades presentes e, às vezes, futuras. Seus pensamentos
constantemente voam, flutuam em possibilidades. A cena de quatro mulheres numa
ambulância é icônica nesse sentido, beirando o non-sense.
O
fio condutor da obra é a história da Aia Offred (of Fred, pertencente a Fred), sobrevivente numa catástrofe distópica;
uma guerra conduzida por fanáticos fundamentalistas religiosos cristãos que,
além de alterarem até a Bíblia, mudam todo o conceito evolutivo do dia-a-dia do
homo sapiens. Uma doutrina retrógrada
dominante; uma teocracia onde a mulher é simplesmente objeto: fantasia que
corrobora a caracterização de ficção surrealista.
Margaret Atwood |
A
narrativa de Atwood incomoda. Claro, não pelo texto, mas pelas situações
permanentemente descritas – e pormenorizadamente descritas. Ela faz questão de
chocar o leitor e de despertá-lo para situações drásticas que podem ser
eminentes. É sua forma de alertar sobre os perigos que nos rondam via
radicalismos presentes em todo lugar e nas mais diversas situações sociais,
políticas, tecnológicas, religiosas e militares no mundo atual.
A
obra é uma transgressão ao regular. Transfigura-se numa antologia de digressões
e Atwood, por ser também poetiza, despenca invariavelmente em lirismos em meio
à narração de fatos, como se estivesse divagando. Mas isto é intrínseco às
obras surrealistas e aí se destacam as qualidades literárias da autora, pois o
enredo em si configura-se numa história comum, apenas criativa. Somente a
partir do capítulo trinta e dois a obra toma um ritmo mais célere e dinâmico
rumo à sua apoteose de suposições. No gênero, o livro não alcança a força de A Revolução dos Bichos, de Fahrenheit 451 e de A Laranja Mecânica, por exemplo.
Lançado
em 1985, o livro - um ícone feminista - voltou a ter evidência recentemente
pelas feministas americanas em razão da eleição de “machista” Donald Trump. Para
os homens pode ser uma leitura aborrecida, mas é um triunfo entre as mulheres.
No
Brasil, O Conto da Aia foi publicado
pela editora Rocco (R$ 44,50, 368 páginas); no eBook Kindle (R$ 18,85) e a
série The Handmaid's Tale é exibida
pelo canal Paramount.
Margaret Atwood promete a continuação da obra para breve. O novo livro, intitulado The Testaments (Os
Testamentos ou As Provas, em tradução livre), se passará quinze anos após os
acontecimentos de O Conto da Aia e narrará a
história a partir da perspectiva de três mulheres. Será lançado em 10 de setembro.
Valdemir Martins
26.02.2019
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