Como um bom vinho no primeiro
gole, ler Um Cavalheiro em Moscou, do novelista norte-americano Amor
Towles, pode enganosamente parecer-nos, em princípio, um pouco
adstringente. Seu primeiro quinto desenrola-se vagaroso e a seguir começa a
pegar o ponto, como se diria na culinária. Mas o vigoroso esplendor que se
segue num crescente marca esta obra como uma das mais importantes da literatura
deste começo do século XXI.
Towles escreve como um verdadeiro
cavalheiro literário, com elegância, idéias e colocações refinadas, farta
demonstração cultural, dramaticidade contida, fina ironia e riqueza de
situações e personagens marcantes e inesquecíveis. Mas, para se ler este romance
literário é importante que se tenha alguma noção da história do começo do
século passado, em especial na Rússia; de gastronomia e enologia clássicas, etiqueta
à mesa, moda, mobiliário, cinema, literatura e música da época.
Entrada e recepção do hotel |
Hotel Metropol Moscow |
O palco desta deslumbrante história
é o lendário Hotel Metropol, uma joia de
cinco andares da art-nouveau em
Moscou, local onde desfilaram as maiores celebridades e personalidades do século
20. Situado próximo à Praça Vermelha, em frente ao glamouroso Teatro Bolshoi,
foi construído por um industrial e mecenas na virada do século passado. Nele o
leitor passa a conviver com o protagonista, o incomparável Conde Aleksandr
Ilitch Rostov, condenado a lá viver em prisão domiciliar pelos burocratas do
então regime revolucionário comunista.
Lobby do hotel |
O flagrante abismo entre a cultura
aristocrática russa czariana e os rudes e rudimentares atos e costumes
bolcheviques é por ele explorado de forma a valorizar cada lado na sua forma
superlativa. A fascinante Moscou em transição mostra que seus monumentos e
cultos criados por gestores, artistas e agentes culturais refinados são tão
valorosos que nem a brutalidade camponesa e inculta de seus novos dominantes
consegue destruí-la.
Elevadores e escadaria |
A suite da Mme. Salgueiro |
Contracenam com o Conde, de modo
fluente e dinâmico, duas intrigantes e inteligentíssimas meninas, escritores, diplomatas,
músicos, jornalistas, os dedicados e fiéis funcionários do Metropol, atrizes e
bailarinas, camaradas do novo regime e
um gato zarolho.
Restaurante Piazza |
Num rico colóquio entre o
protagonista e um simples operário em cima de um telhado mereceria um quadro
emoldurado por nobre material, se numa página coubesse. Nele, sem duvida, consegue-se saborear um
delicioso pão preto com mel e café fresco. Nada escapa à intensa criatividade
de Towles, desde os nativos cães borzóis, às quarenta variedades de maçãs
soviéticas e a delicadeza das flores dos Lilases das praças moscovitas. Por
outro lado, não deixa de protestar, nas entrelinhas, contra o Prêmio Pulitzer
de Jornalismo atribuído ao americano Walter Duranty (NY Times), que relatava “apenas
rumores” de fome na URSS enquanto 32 milhões de pessoas morriam de inanição,
massacradas pelas ações de coletivização do campo por Stálin, na Grande Fome de 1932/33, principalmente na Ucrânia.
Hall do Restaurante Boyarskiy |
Towles atravessa o tempo
revelando o isolamento e a estagnação cultural, tecnológica básica e de
costumes da União Soviética, chegando a uma brilhante conversa de cama onde põe
em cheque também a evolução humana uma vez que o povo soviético, quase na
década de 1960, desconhece o aspirador de pó e a máquina de lavar roupas
enquanto seu governo apenas reinventa o comum, produz armas modernas e uma usina
atômica. Demonstra, ainda, que de nada serve uma vasta cultura pessoal se o
individuo não acompanha o novo, seja nas artes, na ciência, na vida ou na
política. Além de surpreendentemente nos ensinar o valor universal da companhia
de uma criança: “...lembre-se que ao contrário dos adultos, as crianças querem ser felizes. Por isso, ainda têm a
capacidade de tirar grande prazer das coisas mais simples.”
Como um autêntico romance
moderno, Um Cavalheiro em Moscou tem uma construção dinâmica, nem
parecendo um romance de formação, graças ao uso inteligente e agradável de flash backs muito bem encaixados que vão
intermitentemente, sem alterar o ritmo da obra, apresentando a vida do
protagonista. Diferentemente de livros tradicionais e até consagrados, Towles amarra-nos
à sua narrativa sem floreios ou volteios, fazendo com que a leitura evolua
prazerosamente, sem os aborrecimentos de descrições cansativas e detalhes
desnecessários ou sensacionalistas.
Amor Towles |
O bostoniano Towles torna-se,
assim, uma agradável surpresa literária contemporânea. Este seu livro ficou
mais de quarenta semanas como mais vendido nos EUA e foi consagrado o livro do
ano (2016) pela crítica ianque. Recomendo sua leitura, com persistência na
parte inicial como quem estivesse lendo a obra de um consagrado escritor russo.
Logo a seguir, o leitor terá que acompanhar o dinâmico texto e frenética
história de um protagonista russo escrito por um talentoso e promissor escritor
americano.
Valdemir Martins
09.04.2020
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