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6 de mai. de 2020

Como um bom vinho no primeiro gole *****


Como um bom vinho no primeiro gole, ler Um Cavalheiro em Moscou, do novelista norte-americano Amor Towles, pode enganosamente parecer-nos, em princípio, um pouco adstringente. Seu primeiro quinto desenrola-se vagaroso e a seguir começa a pegar o ponto, como se diria na culinária. Mas o vigoroso esplendor que se segue num crescente marca esta obra como uma das mais importantes da literatura deste começo do século XXI.


Towles escreve como um verdadeiro cavalheiro literário, com elegância, idéias e colocações refinadas, farta demonstração cultural, dramaticidade contida, fina ironia e riqueza de situações e personagens marcantes e inesquecíveis. Mas, para se ler este romance literário é importante que se tenha alguma noção da história do começo do século passado, em especial na Rússia; de gastronomia e enologia clássicas, etiqueta à mesa, moda, mobiliário, cinema, literatura e música da época.

Entrada e recepção do hotel
Hotel Metropol Moscow
O palco desta deslumbrante história é o lendário Hotel Metropol, uma joia de cinco andares da art-nouveau em Moscou, local onde desfilaram as maiores celebridades e personalidades do século 20. Situado próximo à Praça Vermelha, em frente ao glamouroso Teatro Bolshoi, foi construído por um industrial e mecenas na virada do século passado. Nele o leitor passa a conviver com o protagonista, o incomparável Conde Aleksandr Ilitch Rostov, condenado a lá viver em prisão domiciliar pelos burocratas do então regime revolucionário comunista.

Lobby do hotel
O flagrante abismo entre a cultura aristocrática russa czariana e os rudes e rudimentares atos e costumes bolcheviques é por ele explorado de forma a valorizar cada lado na sua forma superlativa. A fascinante Moscou em transição mostra que seus monumentos e cultos criados por gestores, artistas e agentes culturais refinados são tão valorosos que nem a brutalidade camponesa e inculta de seus novos dominantes consegue destruí-la.

Elevadores e escadaria
A suite da Mme. Salgueiro
Contracenam com o Conde, de modo fluente e dinâmico, duas intrigantes e inteligentíssimas meninas, escritores, diplomatas, músicos, jornalistas, os dedicados e fiéis funcionários do Metropol, atrizes e bailarinas, camaradas do novo regime e um gato zarolho.

Restaurante Piazza
Num rico colóquio entre o protagonista e um simples operário em cima de um telhado mereceria um quadro emoldurado por nobre material, se numa página coubesse.  Nele, sem duvida, consegue-se saborear um delicioso pão preto com mel e café fresco. Nada escapa à intensa criatividade de Towles, desde os nativos cães borzóis, às quarenta variedades de maçãs soviéticas e a delicadeza das flores dos Lilases das praças moscovitas. Por outro lado, não deixa de protestar, nas entrelinhas, contra o Prêmio Pulitzer de Jornalismo atribuído ao americano Walter Duranty (NY Times), que relatava “apenas rumores” de fome na URSS enquanto 32 milhões de pessoas morriam de inanição, massacradas pelas ações de coletivização do campo por Stálin, na Grande Fome de 1932/33, principalmente na Ucrânia.

Hall do Restaurante Boyarskiy
Towles atravessa o tempo revelando o isolamento e a estagnação cultural, tecnológica básica e de costumes da União Soviética, chegando a uma brilhante conversa de cama onde põe em cheque também a evolução humana uma vez que o povo soviético, quase na década de 1960, desconhece o aspirador de pó e a máquina de lavar roupas enquanto seu governo apenas reinventa o comum, produz armas modernas e uma usina atômica. Demonstra, ainda, que de nada serve uma vasta cultura pessoal se o individuo não acompanha o novo, seja nas artes, na ciência, na vida ou na política. Além de surpreendentemente nos ensinar o valor universal da companhia de uma criança: “...lembre-se que ao contrário dos adultos, as crianças querem ser felizes. Por isso, ainda têm a capacidade de tirar grande prazer das coisas mais simples.”

Como um autêntico romance moderno, Um Cavalheiro em Moscou tem uma construção dinâmica, nem parecendo um romance de formação, graças ao uso inteligente e agradável de flash backs muito bem encaixados que vão intermitentemente, sem alterar o ritmo da obra, apresentando a vida do protagonista. Diferentemente de livros tradicionais e até consagrados, Towles amarra-nos à sua narrativa sem floreios ou volteios, fazendo com que a leitura evolua prazerosamente, sem os aborrecimentos de descrições cansativas e detalhes desnecessários ou sensacionalistas.

Amor Towles
O bostoniano Towles torna-se, assim, uma agradável surpresa literária contemporânea. Este seu livro ficou mais de quarenta semanas como mais vendido nos EUA e foi consagrado o livro do ano (2016) pela crítica ianque. Recomendo sua leitura, com persistência na parte inicial como quem estivesse lendo a obra de um consagrado escritor russo. Logo a seguir, o leitor terá que acompanhar o dinâmico texto e frenética história de um protagonista russo escrito por um talentoso e promissor escritor americano.

Valdemir Martins
09.04.2020

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