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10 de abr. de 2025

A profunda, delicada e perigosa Cruz de Cinza.

Em tempos de Inteligência Artificial, em pleno século XXI, e num país de maioria de iletrados e desinformados, parece ser impossível conhecer-se tanta miséria, privações e sofrimento descabido e ilógico na Europa, muitas vezes chamada de o berço da civilização e da cultura, principalmente nos séculos XIII e XIV. E é para esse ambiente que nos transporta o excelente livro Cruz de Cinza, de Antoine Sénanque,  pseudônimo de um neurologista e escritor francês já premiado em seu país.

O título da obra refere-se simbolicamente ao sacrifício de quem morreu nas fogueiras tenazes da Inquisição. E assim o autor conduz-nos aos primórdios dos franciscanos e dos dominicanos na Idade Média, veladamente inimigos quanto aos conceitos de suas religiosidades. Enquanto os franciscanos viviam na pobreza absoluta dedicando-se a auxiliar os necessitados (inclusive os animais), os dominicanos sobre eles tripudiavam para demonstrar sua sabedoria e força de doutrinação radical.

E é da severidade dos dominicanos que dois frades despontam, um deles como protagonista juntamente com seu prior. E numa primeira aparição da Inquisição a obra já sofre sua primeira reviravolta e mudança de clima. A eles junta-se o prior do convento, cujo protagonismo desponta a partir de suas narrativas para um livro. E assim, Sénanque coloca-nos na esteira de um bom aprendizado sobre os costumes monásticos da época e a medicina empírica medieval, trazendo-nos boas passagens da história teológica resultantes de suas pesquisas.

Esta é uma leitura que nos proporciona conhecimentos importantes da história oculta da igreja católica ao longo desses séculos obscuros. Ao mesmo tempo que histórico, este romance também sabe ser irônico, cético e escatológico, sempre que cabível. Aqui fica evidente que, ironicamente, a ciência medieval era ditada pela igreja, claro, sem nenhuma base científica.

A injustiça da ordem dominicana contra a beguinaria* também é denunciada, pois era atroz, uma vez que suas componentes só praticavam o bem e a ajuda aos pobres e doentes em nome de Deus, ao contrário das ordens dos conventos que abrigavam noviças e freiras, em sua maioria filhas excedentes ou bastardas de nobres, que não trabalhavam e nada lhes faltava.

Por outro lado, a bestialidade humana contra os judeus já grassava pelo incentivo da própria igreja católica, sob a falsa alegação de terem assassinado Cristo. Na realidade, queriam reduzir o número de bocas a alimentar diante da escassez de comida nos rigorosos invernos europeus.

Nos diálogos e convivência dos personagens, Sénanque promove uma intensa troca de reflexões sobre Deus e a convivência e a união com Ele; e apresenta a complexa e abstrata teoria do empobrecimento da alma para se aproximar do Criador. Mas a fome derruba suas teses a partir do momento que o povo prefere um emprego ou um pedaço de pão e não unir-se a Deus. Isto, por volta dos meados do livro, o qual sem dúvida, recomendo aos que se interessam por esse tipo de debate.

A obra oferece-nos uma espécie de ode ao sofrimento beirando a demência. É uma resumo da história de um grande e respeitado mestre dominicano, bem como da clausura de um frade da ordem,  e de um inquisidor fanático, que servem de fio condutor do texto.

Assim, Sénanque escancara para os leitores quanto o fanatismo, o poder e a preponderância religiosos cegaram as massas ignorantes durante séculos. Assim como nos dias atuais movimentos de radicalismo ideológico e de políticas identitárias influenciam grande número de pessoas, a igreja católica predominava nos sentimentos e nos pensamentos das pessoas nos tempos medievais, com o agravante das ameaças de tortura e morte, e do conluio com os estadistas da época. A igreja então, como o poder econômico hoje, dominava tudo: da medicina e o comércio às universidades, os exércitos e os governantes.

A obra propõe uma profunda reflexão a respeito das preponderâncias religiosas, em especial sobre as dezenas de diversificações do Cristianismo. Aqui, tendo como destaque e liame a forte atuação  e intrigas políticas de suas lideranças e ordens mendicantes (franciscana, dominicana, beneditina, etc.), a igreja católica, principalmente, exercia uma força exageradamente ditatorial sobre as massas crentes (e mesmo  leigas) que culminou, por cerca de dez séculos de escuridão, com a tirania da Inquisição do século XIII ao XVIII.

Ficam também como destaques, a influência e os fatos
da grande peste negra, bem como as torturas e execuções sádicas nas fogueiras, proporcionadas pela Inquisição, um tribunal da Igreja Católica que perseguiu, julgou e puniu pessoas acusadas de heresia, apostasia, blasfêmia, feitiçaria e costumes desviantes, além de, como o Nazismo, os judeus e os ciganos.

E Sénanque deixa para o fim uma deliciosa sequência de suspense.

Tentei descobrir o verdadeiro nome do autor deste Cruz de Cinza e não consegui. Deduzi, portanto, que assim como esta sua obra descreve a escrita de um livro a quatro mãos, ela mesma, por similaridade, tenha a motivação incrustada no próprio enredo, não sobrevivendo um autor. Mas, enfim, é uma bela obra literária, de difícil pesquisa e laboriosa escrita. Resta-nos prestigiar este esforço que transborda do livro para a realidade. Apenas lamento que não houve mais publicações deste excelente nom de plume em português.

Valdemir Martins

01.03.2025

·         * Comunidades de beguinas – mulheres religiosas que ao contrário das freiras não tinham uma ordem, nem votos e nem clausura. Eram livres, constituídas em sua maioria por viúvas sérias e com paixão espiritual.


IIIIlustrações: 1. Capa do livro; 2. Os franciscanos; 3. Os dominicanos; 4. As fogueiras da Inquisição; 5. O pergaminho; 6. As beguinas; 7. A Peste Negra e a medicina medieval; 8. O reencontro debaixo da terra; 9. O autor Antoine Sénanque.