Falar, ler e escrever sobre assuntos
literários para mim é e será sempre um regozijo. E foi o que me proporcionou a
leitura de A Mais Recôndita Memória dos Homens, obra mundialmente
consagrada do premiado senegalês Mohamed
Mbougar Sarr. O desejo de ser escritor – mesmo que não se reconheça a incapacidade por
falta de talento - é sempre o fantasma que povoa sua formação. E esta é a
prazerosa deambulação inicial deste livro.
Inspirado na história real do escritor malinês Yambo
Ouologuem, primeiro negro a conquistar o prestigiado prêmio literário Renaudot,
e que depois de quatro anos teve seu livro recolhido por acusação de plágio e
sumiu sem deixar rastros, Sarr desenvolve seu enredo em homenagem a ele por
considerá-lo injustiçado.
Com linguagem às vezes rebuscada, quase
grandiloquente, mas sempre poética, o culto Sarr traça uma narrativa sobre um
livro escrito por um senegalês, tido como uma obra prima universal, mas recolhido
e esgotado e que não se encontra em parte alguma, como seu autor T. C. Elimane.
A obra torna-se uma obsessão do protagonista, motivando-o a ser escritor, num
provável álter ego de Sarr. Em busca de inspiração, tem um encontro com uma
escritora consagrada – à qual chama de Aranha-mãe
– e que altera completamente a orientação de sua vida.

Repleto de reflexões filosóficas, pretensas ou não,
o relato do autor não sofre aqueles hiatos
terríveis que costumam tornar aborrecidas muitas obras. Contrariamente,
enriquece as narrativas de situações e lhes proporciona importante qualidade
literária. Tudo bem dosado com linguagem vulgar entremeada, concedendo à obra
uma aura de um estilo peculiar raro na literatura consagrada. Consegue até
fortes impactos cometendo sacrilégios
como um diálogo onírico com Jesus Cristo em paralelo a uma frenética atividade
sexual de amigos.
Reflete, então, sobre a condição de escritor, à mercê
de tudo e do nada, obrigatoriamente na solidão, enquanto em trabalho, como
previsto pelo chileno Roberto Bolaño na epígrafe deste livro. E continua para
uma profunda reflexão, algo prolixa, sobre a herança deixada pelos escritores
africanos mais antigos que em nada contribuíram para o reconhecimento
principalmente da literatura negra nativa.

Sem pretensões, sugere uma real (e polêmica) comparação
entre os valores literários europeus dos séculos XIX e XX e a atual produção
literária dos novos valores africanos. E não deixa de ter razão ao percebermos
o crescente número de obras de boa ou excelente qualidade literária surgida
neste século, representada principalmente pelo Nobel de 2021, o tanzaniano
Abdulrazak Gurnah, pela ganesa Yaa Gyasi, pelo etíope
americano Abraham
Verghese, pelo ugandense Mahmood Mamdani, pelo Chinua Achebe e mais Chimamanda
Ngozi (Nigéria), Wole Soyinka (Nigéria), Nadine Gordimer (África do Sul) e José
Eduardo Agualusa (Angola). Isto, sem considerar os já consagrados branquelos Mia
Couto, Artur Pestana (Pepetela) e J. M. Coetzee (Nobel de 2003).
Em todo o livro Sarr efetua contraposições de épocas
e de locais. O texto se desenrola em costuras atemporais, entremeadas por
pontos romanceados interligados que compõem o enredo de fundo, confeitado forte
e longamente por críticas ao mundo da literatura.
Acredito que nesta obra Sarr quebre inúmeras e
intocáveis barreiras do mundo literário, principalmente aquele que repele a
cultura africana e consagra quem já é consagrado. A história é pinçada com
precisão para ilustrar sua avaliação crítica de obras literárias. O que, com
certeza, lhe proporcionou a conquista da maior láurea francesa que é o Prêmio
Goncourt, um indicador de tendências literárias.
Enfim, o livro transcorre, em linhas gerais, na
procura pelo desaparecido autor T. C. Elimane e a obsessão do protagonista e
demais personagens por sua única obra. Uma leitura difícil e que exige muita
concentração, conhecimento e gosto pela literatura.
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Valdemir Martins
05.05.2025
Fotos: 1. Capa do livro; 2. Yambo Ouologuem, o escritor malinês injustiçado; 3. Capa do livro premiado de Ouologuem; 4. O bar dos encontros em Paris; 5. O diálogo ficcional com Cristo; 6. Uma das ilustrações da capa do livro; 7. O autor Mohamed Mbougar Sarr.