Ler Atlas de Nuvens do inglês David
Mitchell é como saborear um prato de deliciosos canapés variados, com
seis sabores, um melhor que o outro. Este é o sentido figurado sobre o prazer
de ler esta obra de vanguarda literária, de estrutura inovadora e
surpreendente. Utilizando a frase de um personagem do início do livro eu diria
que “só mesmo seres inanimados podem ter tanta vida”, considerando-se aqui os seres inanimados como cada uma das seis criativas
histórias que compõem a obra.
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O ex-escravo Autua e Adam Ewing |
Neste livro, considerado a obra-prima de Mitchell, ele judia
do leitor. Atormenta-nos com uma certa falta de apoteoses, com os gritos
calados. Ele joga com o excitamento e a seguida resignação ao mesmo tempo
em
que vai acumulando pontos de alusão para preparar-nos para algo maior. Arguto,
é um grande jogador literário, bulindo com quebra-cabeças muito inteligentes.
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Frobisher e o velho compositor |
Aliás, inteligência é o que não falta neste precioso enredo,
retalhado por diário de viagem, romance epistolar, novela policial, thriller,
drama e aventura distópicos, todos com diálogos inteligentes e arguciosos,
dramáticos e irônicos, coloquiais e sofisticados. Todos enredados num contexto
de esperança, não só pelo texto, como pela recorrência de referências dos textos coirmãos e uma
tatuagem em forma de cometa nos protagonistas que pode até sugerir possíveis
reencarnações.
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A jornalista Luisa Rey e o segurança |
Mitchell é tão competente que você acredita, ao passar de uma
história para outra, que está lendo o texto de um novo autor, tamanha a mudança
de estilo percebida na história seguinte. E para completar, os primeiros cinco
textos têm aproximadamente o mesmo volume, enquanto a sexta narrativa é
diferenciada. Trata-se de uma história ambientada num futuro pós-apocalíptico em que a civilização e a linguagem
humanas se deterioraram assustadoramente e voltam aos períodos que ironicamente
hoje denominaríamos de bárbaros, não fosse o excepcional e assustador
desenvolvimento tecnológico em questão.
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O atrapalhado editor Cavendish |
A quinta história é uma distopia pressaga, de linguagem claudicante
e inúmeros vocábulos inventados, a maioria de contrações de palavras normais, resultando
na perfeita compreensão do texto. Já na sexta narrativa, a linguagem é
inteiramente coloquial, informal e contracionada, porém bastante dinâmica e até
divertida de se ler, num texto contado na primeira pessoa e com muitos diálogos.
Enfim, recomendo que as seis histórias não devem ser percebidas individualmente, mas em sua totalidade,
como parte de uma grande história.
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A clone Sonmi-451 |
O livro, como um todo, torna-se uma charada filosófica onde Mitchell
afirma sua crença na bondade e na solidariedade humanas prevalecendo sobre o
egoísmo, o fanatismo cego, a maldade e a violência de pessoas ardilosas e
traiçoeiras que agem sós ou liderando comunidades rotuladas de governamentais,
grupais, empresariais ou religiosas.
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Zachry e a misteriosa Meronym |
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David Mitchell |
Enfim, Mitchell é sem dúvida um vanguardista literário. A
estrutura deste Atlas de Nuvens bem
atesta esta certeza, corroborada pela linguagem extremamente criativa,
multifacetada, à vezes poética e incrivelmente originais, em enredos
surpreendentes, cultos, com ricos aspectos de pesquisa, além de revolucionários
na forma e conteúdo. Obrigatório a quem gosta de inovações e qualidade
literária.
Como estes textos inanimados têm tanta vida!
Valdemir Martins
31.07.2020
Obs: as fotos referem-se a cenas do filme - com o título ridículo de "A Viagem" - de 2012 baseado no livro e com famosos no elenco.
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