Tudo
que vemos só é real se fizer parte de nosso contexto de conhecimento. Nada será
diferente disso perante nossa experiência de vida. E é disso que trata o
primoroso romance do italiano Italo
Calvino em sua obra O Cavaleiro Inexistente. Calvino, merecedor de um Nobel de Literatura, preterido a inúmeros premiados, segundo
meus conceitos de qualidade literária. Sinta-se à vontade para discordar.
Nesta
sua obra, mais uma vez fantástica, ele nos assombra com nossa própria sombra:
aquilo que somos e que jamais mostramos ser. Para isso, vai até Carlos Magno,
na Idade Média, século VIII, para apresentar-nos uma extravagante história
sobre uma armadura viva, porém sem seu suposto cavaleiro, contada por uma penitente
freira.
Um livro que mostra
um cavaleiro que não existe, mas que traz algumas reflexões sobre a nossa
própria existência e insignificância. O protagonista é um paladino com tudo que
se esperaria de um cavaleiro medieval, ou melhor, de um ser humano em qualquer
época: caráter inabalável, incorruptível, fiel, nobre, honesto, imbuído de
honra, coragem e retidão. Isto é, uma figura principal que não existe, mas que
seria desejável na humanidade.
Dentre as diversas alegorias elaboradas por Calvino a
principal é o próprio protagonista. Além de ser o cara certinho, lógico,
irritantemente perfeccionista, que não entende as exceções, ele cumpre
cegamente todas as regras, normas e protocolos até as últimas consequências. Um
indivíduo representado por uma armadura de cavaleiro, de caráter inabalável,
voz metálica, incorruptível, devoto, nobre, fiel, imbuído de honra, coragem,
retidão e que por isso mesmo não existe.
Apesar das comparações de alguns críticos e analistas com os
homens modernos e tecnológicos, pecam por ignorar que este é um romance de
fantasia e crítica social escrito em 1959, época em que os computadores – ainda
rudimentares - acabavam de trocar as válvulas pelos transistores. Não se
sonhava sequer com a internet. Evidente que o autor visava demonstrar um ser
utópico que, por pretensamente ser poderoso apesar de humilde, é, por isso,
cortejado, invejado e orbitado por um idiota, uma mulher perfeitamente empoderada
e um ambicioso e tremendo invejoso que lhe pretende a proeminência, assim como
por um admirador jovem e inexperiente que num golpe de sorte se torna seu
herdeiro material.
Nesta poderosa e irônica crítica social, Calvino ridiculariza
a Sagrada Ordem dos Cavaleiros do Graal, historicamente aclamados como heróis,
mostrando seu treinamento como isolacionista e idiotizante, numa aparente
crítica ao fanatismo religioso. Apesar de uma história simples e curta, é cheia
de cenas que oscilam entre ridículas e até hilariantes.
Um belíssimo exercício literário rico em sátiras e metáforas
elaborado por um dos mais importantes escritores italianos do século XX.
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Valdemir Martins
16.06.03
Fotos: 1. Capa; 2. O cavaleiro branco; 3. A guerreira; 4. Carlos Magno; 5. O idiota; 6. Italo Calvino