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13 de nov. de 2024

Baumgartner, um escritor descrito por um arquiteto.

Há dias que tudo começa conturbado. Algo dá errado, um esquecimento, um acidente e o inesperado, e você prefere não ter levantado da cama, pois não consegue realizar aquilo que precisa. E esse é o primeiro dia do protagonista-título Baumgartner, em mais uma grande obra – e último romance - do consagrado escritor americano Paul Auster.

Dir-se-ia que trata-se de um romance sobre o azar, tamanha a intensidade de coisas erradas sequenciais que recepcionam o leitor, não fosse uma narrativa tremendamente humana, peculiaridade forte nos textos de Auster. Com todo seu talento, ele inicia a obra, por conseguinte, traçando as características atrapalhadas de um viúvo de setenta anos enfrentando imprevistos logo pela manhã.

O texto carrega nas tintas do sofrimento, tudo para untar as páginas que vão receber o sentido luto pela esposa do protagonista. E isso começa pela leitura de um texto autobiográfico dela, que era escritora, como se ela estivesse ali relatando extremamente emocionada à viva-voz. Como ato contínuo, outra tragédia.

Auster descreve, com uma sensibilidade exacerbada, a tortura do luto para um ser extremamente apaixonado. Tudo é muito doído e belo. Emocionante, após quase vinte anos de casamento e dez de solidão. E esse luto é uma forma excepcionalmente criativa encontrada por Auster para celebrar a vida. Assim, escreve “Viver é sentir dor, disse para consigo, e viver com medo da dor é recusar viver.”. E assim, o protagonista desenvolve a teoria – em um livro em elaboração – de que um membro amputado é como a perda da pessoa amada (e vice-versa), pois “ambos estiveram intimamente ligados a um corpo vivo”. 

Então, surge a personagem que o fará afastar-se de seu luto, sem, contudo, cessá-lo: uma segunda companheira de vida, como emblematicamente profetizara a parceira original. Mas, claro, mais um desastre. E num texto magnífico, de simbologia profunda, Auster leva nosso protagonista a retornar a seus textos. Ali, reflexivamente, ele entende ser prisioneiro de si próprio. E que a solidão esfacela sua estrutura, sua condição humana; sua vida. E, com toda a virilidade de um jovem, sente-se velho. E decide, apesar de tudo, libertar-se.

Simultaneamente, tem a percepção de leves sinais de senilidade, ou como prefere encarar, “o princípio do fim”. Doces recordações da infância com a irmã e a adolescência com os amigos, as passagens marcantes em transportes e as recordações históricas com a família, como filmes, projetam-se em sua mente. Chega ao extremo de ir conhecer a terra natal do avô, em mais uma deliciosa representação de Auster, numa provável incursão familiar autobiográfica, dentre outras tantas passagens deste livro. Tudo isso, numa extraordinária análise criativa e expositiva do amadurecimento e da velhice.

Sua escrita é limpa, criativa, musicalmente absorvível, apesar da objetividade. Leve, apesar das inúmeras tragédias e contratempos. E sempre desejosamente romântica. Usa a simbologia de forma precisa, forçando o leitor a reflexões soberbas sobre o protagonista, mas enlaçando-nos e propiciando-nos a possibilidade de refletirmos sobre nós mesmos. Sobre o próprio luto, o amor e a memória. Dentre tantos outros trechos extraordinários, a descrição das deambulações de seu pai para escrever uma carta, bem como o conteúdo da missiva, é uma dos mais exuberantes textos da literatura norte-americana moderna.

Ao ler este Baumgartner de Paul Auster percebe-se claramente que não se trata de assimilar ou saborear apenas uma história, um enredo. A suprema qualidade literária que o autor imprime à obra fará felizes aqueles que apreciam a leitura de altíssima qualidade. Quem assim o faz, dar-se-á por privilegiado de ter um texto dessa magnitude em suas mãos. Um livro de despedida, digno de um arquiteto literário. Absolutamente, o imortal Paul Auster vai nos fazer permanente falta.

Paul Auster faleceu em abril deste ano, aos 77 anos, deixando um legado de mais de 30 livros, com traduções para 40 países. Boa parte da crítica considera-o injustiçado por nunca ter sido lembrado pela Academia Sueca do Prêmio Nobel de Literatura, apesar de sua consagrada obra. Dentre seus trabalhos mais importantes, destaco A trilogia de Nova York, integrada pela quixotesca Cidade de Vidro, em que personagens atravessam a escrita do autor; Fantasmas, no qual cores ditam nomes para os personagens e O Quarto fechado, narrando em torno de um artista que se apropria da criatividade alheia.

Escritor nova-iorquino típico, foi imensamente premiado na Europa – em especial na França -, o que lhe faltou absurdamente em seu próprio país.

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Valdemir Martins

22.09.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. A queda na escada; 3. Os sinais da senilidade; 4. O mundo dos livros; 5. A nova companheira; 6. A emocionante carta do pai; 7. Auster em sua biblioteca; 8. O autor Paul Auster.