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29 de out. de 2025

Quando O Mundo se Despedaça

O medo sempre leva-nos a transformações, às vezes superficiais ou até mais profundas, como registra em sua obra magistral O Mundo se Despedaça, o premiado romancista e poeta nigeriano Chinua Achebe, considerado um dos grandes romancistas do século XX. Aqui, o medo de ser fraco torna os homens fortes e o medo de despedaçar o nosso mundo, leva-nos à luta. 

Mais uma vez, a literatura africana surpreende-me além de Mia Couto e J. M. Coetzee. O que, então, para mim, deixa de ser novidade também após as leituras de A mais recôndita memória dos homens* do senegalês Mohamed Mbougar Sarr e Sobrevidas** do Nobel tanzaniano Abdulrazak Gurnah. 

Numa linguagem objetiva, sem deixar de ser poética "... à medida que a voz do pregoeiro ia sendo gradualmente engolida pela distância, o silêncio retornava ao mundo, um silêncio vibrante, que se fazia mais intenso com o trilo universal de milhões de insetos na floresta." Achebe conta-nos a história de um herói eventual, forjado na decadência do pai e na transformação pessoal em um homem forte, exatamente à sombra do fracasso, sempre.

Achebe leva-nos para o centro da vida tribal da etnia ibo. Na região de Ibolândia (terra dos Ibos), no sudeste da Nigéria, no início do século XX , predomina um sistema social baseado nos laços familiares, no clã e na linhagem, um sistema em que existe grande correspondência entre a proximidade do parentesco, a da moradia e a dos deveres coletivos. Nosso protagonista é um temido líder regional por seu rigor, honestidade, perseverança e por sua força de trabalho. 

Numa obra onde setenta por cento de seu texto fala dos costumes e personagens regionais - belíssimos ou grotescos - dos clãs da tribo Umuófia nigeriana - que por sua dinâmica prende-nos na leitura -, não surpreende a chegada do homem branco. E no formato de sempre, querendo impor sua religião sobre os cerimoniais e mitos tradicionais dos nativos e explorando seus sentimentos. Primeiro passo para apaziguamento e dominação, para em seguida introduzirem um governo e todo seu belicismo. 

E num diálogo comparativo sobre as duas religiões, Achebe escancara os malefícios e exacerbações de ambos os cultos. Principalmente quanto ao fato de que os deuses são sempre temidos, mas nunca adorados por sua bondade. Seria correto falar-se em Civilização Nigeriana? Infelizmente, diante da força opressora e do acovardamento de um povo, os homens que se forjaram fortes tendem a capitular diante de seu povo que fugiu à luta. E se despedaçou. A civilização intrusa organizada e gananciosa dos deuses civilizados venceu a civilização nigeriana, a qual nem seus próprios deuses a protegeram.

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Valdemir Martins

15.07.2025

*https://contracapaladob.blogspot.com/2025/06/a-mais-recondita-memoria-dos-homens.html

**https://contracapaladob.blogspot.com/2022/10/obra-imensamente-humana-descrevendo.html

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Localização da aldeia; 3. Núcleo familiar da aldeia; 4. As meninas da tribo; 5. O autor Chinua Achebe. 

7 de out. de 2025

O Deserto dos Tártaros e a imobilidade na vida.

Acredito que a maioria das pessoas têm um sonho que pretendem realizar um dia. Principalmente os jovens elucubrando o seu futuro. E é com esse enfoque que o clássico europeu O Deserto dos Tártaros, do jornalista e escritor italiano Dino Buzzati, aborda a vida das pessoas. Não no cotidiano, mas no projeto de vida.

Na pré adolescência parece que o tempo é infinito e tudo é informalidade, entusiasmo e ilusão; sem pressa, não há autocobrança e ninguém espera, como reflete o próprio autor ao analisar uma situação do protagonista. É o que acontece ao protagonista Giovanni Drogo, quando forma-se tenente e, desprendendo-se dos mimos domésticos e de sua mãe, apresenta-se a um quartel, algo que sempre sonhou.

E, na terra firme da vida, debuta sua frustração incipiente. Nada é o que deveria ser. Apesar de contrariado em suas ambições, aceita passivamente sua zona de conforto no quartel e lá se estabelece por anos. Seria esse realmente o seu sonho, como eu, indagariam os leitores.

Eis que duas mortes de companheiros em ações do quartel mexem com Drogo a ponto de procurar sua desincorporação antes que tenha o mesmo fim, morrendo sem razão. Indo à cidade tem um encontro com a antiga namorada e, apesar de ser um desejo mútuo ficarem juntos, por absoluta indecisão de ambos, continuam então separados. Apesar de estar em seu habitat original, sente que este não é mais o seu mundo, tamanha a influência do quartel.

Mesmo assim, indo atrás de seu intento, consegue uma entrevista com o comandante da divisão transformando-a numa comédia de equívocos. Embora estivesse prevista uma redução considerável do contingente, fato escondido por seus companheiros de quartel, o seu pedido não é satisfeito. Sentindo-se enganado pelos colegas, injustiçado pelo comando, Drogo mergulha na decepção. É obrigado a se reapresentar no quartel, onde vai continuar encontrando coisas frustradoras.

Mas nesta obra magistral, Buzzati provoca-nos a analisar e a avaliar exatamente isso. Se Drogo tem ou tinha um sonho, seria aceitável vivenciá-lo ad aeternum? Seu objetivo de vida seria simplesmente abandonar-se na rotina de um quartel insólito para o sempre enquanto a vida passa? Aqui fala-se da vida como ela realmente é, com suas ilusões, oportunidades, frustrações e, claro, suas perdas.
 
Assim, Buzzati chama-nos a atenção para o conformismo com o que nos acontece, deixando de tomar atitudes e preparar o futuro como simbolicamente na vivência do protagonista num forte supérfluo, sem qualquer perspectiva de ser utilizado para o fim de defesa, onde ele e os demais personagens vivem de esperanças e ilusões.

Nesta importante obra atemporal - um romance de desencanto -, sem referência histórica ou social, publicada em 1940, parece que o autor a escreveu para os dias de hoje. Nada mais adequado, uma vez que todas as mensagens - na mídia, nas redes sociais, na publicidade, nos escritórios - parecem dizer  "seja constante, disciplinado e trabalhador; adiante algo melhor e importante vai acontecer em sua vida".

Até que um dia descobrimos que escolhemos o caminho errado e não percebemos que tínhamos outras opções. No final das contas, sempre vamos encontrar algo importante no final da linha. Pode não ser o que esperávamos, mas provavelmente nos levará a um final talvez extraordinário. Talvez não o que ansiávamos quando jovens "e só nos resta aceitá-lo com dignidade e estoicismo, como um soldado. Será que a última chance de uma vida equivocada é uma morte digna? Será o que resta? A única saída?", como escreveu Ugo Georgetti, roteirista e diretor de cinema brasileiro.

Por esse forte conteúdo e seu magistral significado, o livro é considerado por alguns críticos, sem exagero, como uma das obras primas universais. Trata-se de um romance  mágico sobre a existência humana e sua relação com o tempo. Cabe, então, a cada um de nós, ficar atento às nossas escolhas e orientar nossos descendentes sobre o futuro e o perigo da imobilidade na vida.

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Valdemir Martins
11.06.2025

Fotos: !. Capa do livro; 2. O quartel; 3. Os soldados; 4. O deserto atrás do quartel; 5. As muralhas do quartel; 6. A volta para casa; 7. O autor Dino Buzzati. 

26 de ago. de 2025

Os cabelos que unem três mulheres em A Trança

A civilização ocidental pouco conhece – ou quase nada – de certas culturas orientais, sobretudo aquelas não cristãs, incultas, paupérrimas e que sobrevivem em castas. E a premiada e audaz escritora francesa Laetitia Colombani, como num rito de protesto em busca da liberdade, coloca as agruras de uma dalit hindu na abertura de sua consagrada obra A Trança.
Chocante. Quem não conhece a cultura – ou as culturas – da Índia vai ficar perplexo, seja com o trabalho de Smita, a primeira protagonista, seja no destino de boa parte das bebês meninas e dos dalits em geral. 

Numa linguagem concisa, fluente e objetiva, Colombani conta a história de três protagonistas fortes e guerreiras, seu ponto em comum. Vindo para o Ocidente, junta à Smita, a siciliana Giulia e a canadense Sarah. Porém, neste romance que não se consegue parar a leitura, pois flui com facilidade e ansiedade, o que é comum para uma torna-se comum para todas: um infortúnio vem esfacelar impiedosamente suas aparentes felicidades.

Nesta belíssima obra, Colombani nos conta três contos das diversidades e disparidades femininas. Como a própria civilização hindu, a autora retrata, pelo sofrimento de uma mãe, o sofrimento desse povo tão dividido, pobre e supersticiosamente religioso. Já na Sicília, prevalece o romantismo latino e, em Montreal, os turbilhões e estratégias da sobrevivência no capitalismo.

Com expressões às vezes até poéticas, criativas e muitas vezes irônicas, a autora arremata digressões importantes do enredo, penetrando no âmago traumático dessas mulheres que simbolizam três tipos femininos muito diferentes.
  
Diante de seus mais cruciais infortúnios elas fazem descobertas assombrosas sobre si mesmas. Todas guerreiras aguerridas, persistentes, abnegadas perante seus entes queridos e por eles entregam-se integralmente. E as soluções para suas tragédias são ainda mais dramáticas.

Como numa trança, Colombani vai enredando as principais características de personalidade das três protagonistas, exportando a fé de uma para as outras, bem como a força de vontade, o esforço e dedicação incomensuráveis e suas incansáveis e obstinadas atitudes de vida; a perseverança e até o sacrifício. Coloca, então, no arremate final de sua trança, a qualidade do otimismo e da visão de sucesso.

E no final, os cabelos, como matéria-prima das tranças, tornam-se o liame para as histórias das três mulheres destes contos, tornando-os unidos num romance e únicos como a trança. 

E uma certeza, você concluirá a leitura com um espontâneo e gostoso sorriso.

Raramente um livro me prendeu tanto a atenção e me fez meditar extraordinariamente sobre fatos e atitudes dos personagens como este. O que reflete a qualidade da obra e a grandiosa competência e talento intelectual e literário de Laetitia Colombani. Uma autora que precisa ser urgentemente mais difundida em nosso meio cultural e uma excelente indicação de leitura para análise em nossas escolas.

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04.06.2025

Fotos: 1. Capa do livro; 2. As tranças das mulheres dalits; 3. Palermo, na Sicília; 4. Moderna fábrica de perucas; 5. A executiva ocidental bem sucedida; 6. Careca e com a peruca; 7. A autora francesa Laetitia Colombani.

18 de jul. de 2025

Cem Anos de Perdão: os mortos têm para sempre a mesma idade.

Um crime escandaliza uma comunidade e uma nação por sua violência. O que seria simplesmente um tópico policial, torna-se um assunto de profundo impacto num presídio. E, com esse enfoque, o brilhante romance Cem Anos de Perdão, do escritor e jornalista português João Tordo aborda e desenvolve seu argumento, diferenciando-o dos outros romances policialescos.
Independentemente do perdão de Deus, pela justiça dos homens até os atos criminosos efetuados em nome d’Ele não merecem perdão. Seja praticado por um agnóstico ou por um fanático religioso. Como neste caso, numa remota e fictícia ilha britânica, em consonância com os preceitos de uma seita religiosa ancestral

Como num excelente quebra-cabeças, Tordo apresenta-nos as peças e, de forma oportuna e aprazível, vai oferecendo-nos os encaixes possíveis, numa obra crescente, vagueando entre o mistério, o policial, o suspense e o religioso. E, claro, o psicológico. Enfim, um thriller psicológicointenso.
Num clima sufocante, claustrofóbico, seja numa igreja, na prisão, nos bares, na delegacia, num celeiro ou mesmo nos quartos, Tordo explora de forma mágica essa atmosfera, entremeando-o ao clima pesado de Primavera britânico, frio, escuro, chuvoso e nevoento. Os personagens vão aflorando no ritmo dos acontecimentos até ao ponto em que tudo se amontoa e parece que o mistério não terá solução, E até os dois protagonistas chegam assim a essa conclusão.
 
Entretanto é uma obra dinâmica e contundente. Leva-nos a refletir sobre culpa, perdão, injustiça, humildade e solidão. Trechos de narrativas de personagens e mesmo de reflexão dos protagonistas mexem com nossos sentimentos, levando-nos a ponderar sobre episódios similares de nossas próprias vidas. Suas lucubrações, em diversos momentos, colocam em pauta a credibilidade de diversas consagrações bíblicas.

E, com tudo isso, o enredo é muito envolvente, o que nos prende bastante à leitura. Narrado na terceira pessoa, em sua maior parte, o livro tem trechos como numa carta ou um diário, na primeira pessoa, aqui possibilitando-nos respirar e sair do sufoco do restante da narrativa. Os cães, como os seres mais fiéis e leais do contexto, auxiliam-nos a sair da falsidade e da hipocrisia provenientes dos seres humanos.

O talento de João Tordo possibilita-nos a reflexão sobre nossos valores nesta vida. Neste seu exuberante thriller apresenta personagens possíveis e reais, com seus sofrimentos, como todos nós, a partir de um enredo bastante complexo e profundo. Fica aqui a recomendação de uma leitura sensível, que não se consegue largar pela envolvente criatividade do autor.

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Fotos: 1. Capa do livro; 2. A prisão de Brixton; 3.  Penhascos da ilha de St. Dismas; 4. Os fanáticos da seita religiosa; 5. Vista da cidade de Bridgwater; 6. A rua Alves Torgo, em Lisboa; 7. O autor português João Tordo.

11 de jun. de 2025

A Mais Recôndita Memória dos Homens.

Falar, ler e escrever sobre assuntos literários para mim é e será sempre um regozijo. E foi o que me proporcionou a leitura de A Mais Recôndita Memória dos Homens, obra mundialmente consagrada do premiado senegalês Mohamed Mbougar Sarr. O desejo de ser escritor – mesmo que não se reconheça a incapacidade por falta de talento - é sempre o fantasma que povoa sua formação. E esta é a prazerosa deambulação inicial deste livro.

Inspirado na história real do escritor malinês Yambo Ouologuem, primeiro negro a conquistar o prestigiado prêmio literário Renaudot, e que depois de quatro anos teve seu livro recolhido por acusação de plágio e sumiu sem deixar rastros, Sarr desenvolve seu enredo em homenagem a ele por considerá-lo injustiçado.

Com linguagem às vezes rebuscada, quase grandiloquente, mas sempre poética, o culto Sarr traça uma narrativa sobre um livro escrito por um senegalês, tido como uma obra prima universal, mas recolhido e esgotado e que não se encontra em parte alguma, como seu autor T. C. Elimane. A obra torna-se uma obsessão do protagonista, motivando-o a ser escritor, num provável álter ego de Sarr. Em busca de inspiração, tem um encontro com uma escritora consagrada – à qual chama de Aranha-mãe – e que altera completamente a orientação de sua vida.

Repleto de reflexões filosóficas, pretensas ou não, o relato do autor não sofre aqueles hiatos  terríveis que costumam tornar aborrecidas muitas obras. Contrariamente, enriquece as narrativas de situações e lhes proporciona importante qualidade literária. Tudo bem dosado com linguagem vulgar entremeada, concedendo à obra uma aura de um estilo peculiar raro na literatura consagrada. Consegue até fortes impactos  cometendo sacrilégios como um diálogo onírico com Jesus Cristo em paralelo a uma frenética atividade sexual de amigos.

Reflete, então, sobre a condição de escritor, à mercê de tudo e do nada, obrigatoriamente na solidão, enquanto em trabalho, como previsto pelo chileno Roberto Bolaño na epígrafe deste livro. E continua para uma profunda reflexão, algo prolixa, sobre a herança deixada pelos escritores africanos mais antigos que em nada contribuíram para o reconhecimento principalmente da literatura negra nativa.

Sem pretensões, sugere uma real (e polêmica) comparação entre os valores literários europeus dos séculos XIX e XX e a atual produção literária dos novos valores africanos. E não deixa de ter razão ao percebermos o crescente número de obras de boa ou excelente qualidade literária surgida neste século, representada principalmente pelo Nobel de 2021, o tanzaniano Abdulrazak Gurnah, pela ganesa Yaa Gyasi, pelo etíope
americano Abraham Verghese, pelo ugandense Mahmood Mamdani, pelo Chinua Achebe e mais Chimamanda Ngozi (Nigéria), Wole Soyinka (Nigéria), Nadine Gordimer (África do Sul) e José Eduardo Agualusa (Angola). Isto, sem considerar os já consagrados branquelos Mia Couto, Artur Pestana (Pepetela) e J. M. Coetzee (Nobel de 2003).

Em todo o livro Sarr efetua contraposições de épocas e de locais. O texto se desenrola em costuras atemporais, entremeadas por pontos romanceados interligados que compõem o enredo de fundo, confeitado forte e longamente por críticas ao mundo da literatura.

Acredito que nesta obra Sarr quebre inúmeras e intocáveis barreiras do mundo literário, principalmente aquele que repele a cultura africana e consagra quem já é consagrado. A história é pinçada com precisão para ilustrar sua avaliação crítica de obras literárias. O que, com certeza, lhe proporcionou a conquista da maior láurea francesa que é o Prêmio Goncourt, um indicador de tendências literárias.

Enfim, o livro transcorre, em linhas gerais, na procura pelo desaparecido autor T. C. Elimane e a obsessão do protagonista e demais personagens por sua única obra. Uma leitura difícil e que exige muita concentração, conhecimento e gosto pela literatura.

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Valdemir Martins

05.05.2025

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Yambo Ouologuem, o escritor malinês injustiçado; 3. Capa do livro premiado de Ouologuem; 4. O bar dos encontros em Paris; 5. O diálogo ficcional com Cristo; 6. Uma das ilustrações da capa do livro; 7. O autor Mohamed Mbougar Sarr.


30 de mai. de 2025

1222: uma baixa altitude para o que se espera de um suspense.

Às vezes nos perguntamos como será a vida de um cadeirante. E um bom exemplo de resposta encontramos no livro 1222, um romance policial de suspense da premiada escritora norueguesa Anne Holt. E tudo tem início a partir de um acidente ferroviário a 1222 metros de altitude, ao lado de um hotel, entre Oslo e Bergen, e durante uma forte tempestade de neve; um furacão, segundo a autora.

Por aí, tem-se uma perspectiva do que poderá acontecer aos 269 passageiros do trem, dentre os quais vai destacar-se como protagonista a inspetora de polícia inválida e aposentada Hanne Wilhelmsen, cadeirante por acidente em ação.

Um texto que a princípio parece-nos confuso ou mal traduzido, auxilia na criação do clima desordenado que ambienta a reunião dos passageiros num antigo hotel próximo ao acidente. Mortes vêm tumultuar a convivência dos passageiros, presos no hotel em função de uma tempestade de vento e neve jamais vista na Noruega. E Hanne, não querendo envolver-se, não consegue segurar seu raciocínio lógico de policial e acaba por implicar-se.

A autora, que é homossexual, acaba defendendo o amor e o casamento lésbico e os muçulmanos, origem da companheira da protagonista. Transforma um acidente num thriller psicológico sem sustos ou surpresas, às vezes até monótono e repetitivo, patinando numa narrativa de busca entre o etéreo e o inócuo. Simplesmente sem emoção. E caminha para um final previsível diante de tantas pistas colocadas por Holt.

Queiramos ou não, a tempestade de neve torna-se uma segunda protagonista por força de sua influência nos rumos da história.

Mas, enfim, o livro não responde à pergunta inicial de como será a vida de um cadeirante, mas dá-nos a possibilidade de poder imaginá-la. Assim como passamos todo o tempo de sua leitura imaginando os tipos diferenciados que percorrem o enredo e seu eventual envolvimento com as mortes.

Um romance comum, sem o brilho esperado de um suspense policial.

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Valdemir Martins

24.04.2025

Fotos: 1. Capa do livro; 2. O antigo hotel nas montanhas nevadas; 3. O trem quebrado próximo ao hotel; 4. A autora Anne Holt.

5 de mai. de 2025

Oliver Twist, um memorial da miséria humana.

Não se pode ler Oliver Twist sem conhecer a origem pobre e problemática de seu autor, o inglês Charles Dickens. Escrito em episódios publicados na revista literária britânica Bentley’s Miscellany durante dois anos - e nesse interregno como um livro  -, a obra é resultado de uma infância e adolescência problemática e curiosa que serviu de inspiração para a história de um órfão em Londres no século XVIII.
Rico em miséria, o livro tem um início tragicômico ao descrever as condições e diálogos do nascimento do pequeno Oliver e de seu primeiro livramento aos oito anos. A partir daí, o pequeno passa por todo o tipo de sofrimento, num texto espetacular de Dickens, impregnado de ironia e crítica dissimulada aos adultos que tudo decidem na vida de crianças órfãs naquela pequena cidade natal de Oliver, obscura, ignorante e violenta. A dramaticidade expressa pelo autor é superlativa.

O menino foge então para a parte também violenta e imunda de Londres e sua vida muda novamente. Dickens não perde a chance de despejar suas críticas sociais a cada nova situação. Chega até a criticar os filósofos que perdem tempo em reflexões e divagações muitas vezes fúteis e vazias, que nada de prático acrescentam à vida das pessoas. Atua como narrador e pondera com o leitor algumas situações do enredo, numa incrível empatia e intimidade.

Em sua crônica social, Dickens transporta-nos para aventuras nebulosas, obscuras e criminosas. O bem é algo raro e muitas vezes subliminar e ambíguo, mas incomum. Nas escassas cenas de felicidade do garoto, o autor capricha no tom poético. E, como um bom clássico, a obra tem diversas sequências prolixas, com narrativas minuciosas de criatividade poética e função estética, o que poderá resultar em enfadonhas para alguns leitores. Porém, necessárias na medida em que criam ambientações e trazem esclarecimentos sobre lugares e personagens. Além de abrilhantar literariamente a obra.

A partir de sua terceira parte, o livro explode em ação. E as revelações crescem aos borbotões, ao tempo em que um crime horroroso começa a dar o fecho à história. E a degradação física e psíquica de um condenado transforma o quase final da obra numa lição de como expressar em letras a angústia e o desespero, contagiando o leitor. E, a seguir, um final esperadamente feliz, por tratar-se da vida de um pobre e indefeso menino.

Aliás, Oliver, o pretenso protagonista, tem sua relevância diluída perante o protagonismo de outros fortes personagens, num jogo de participações marcantes desta muito bem elaborada trama urdida no talento de Dickens.

Neste que é um de seus primeiros trabalhos, Charles Dickens já demonstra seu enorme talento como o maior romancista e mais popular dos gerados na era vitoriana. Tornou-se, pelo conjunto de sua obra, o mais respeitado escritor do realismo britânico.

Uma obra para se conhecer antes de ler sua considerada obra prima David Copperfield, um dos mais importantes romances do século XIX. E também o mais autobiográfico de Dickens.

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Valdemir Martins
08.04.2025

Fotos: 1. Capa do livro; 2. A revista literária britânica Bentley’s Miscellany; 3. O bedel do orfanato; 4. O Judeu meliante; 5. A perseguição; 6. O autor Charles Dickens.

10 de abr. de 2025

A profunda, delicada e perigosa Cruz de Cinza.

Em tempos de Inteligência Artificial, em pleno século XXI, e num país de maioria de iletrados e desinformados, parece ser impossível conhecer-se tanta miséria, privações e sofrimento descabido e ilógico na Europa, muitas vezes chamada de o berço da civilização e da cultura, principalmente nos séculos XIII e XIV. E é para esse ambiente que nos transporta o excelente livro Cruz de Cinza, de Antoine Sénanque,  pseudônimo de um neurologista e escritor francês já premiado em seu país.

O título da obra refere-se simbolicamente ao sacrifício de quem morreu nas fogueiras tenazes da Inquisição. E assim o autor conduz-nos aos primórdios dos franciscanos e dos dominicanos na Idade Média, veladamente inimigos quanto aos conceitos de suas religiosidades. Enquanto os franciscanos viviam na pobreza absoluta dedicando-se a auxiliar os necessitados (inclusive os animais), os dominicanos sobre eles tripudiavam para demonstrar sua sabedoria e força de doutrinação radical.

E é da severidade dos dominicanos que dois frades despontam, um deles como protagonista juntamente com seu prior. E numa primeira aparição da Inquisição a obra já sofre sua primeira reviravolta e mudança de clima. A eles junta-se o prior do convento, cujo protagonismo desponta a partir de suas narrativas para um livro. E assim, Sénanque coloca-nos na esteira de um bom aprendizado sobre os costumes monásticos da época e a medicina empírica medieval, trazendo-nos boas passagens da história teológica resultantes de suas pesquisas.

Esta é uma leitura que nos proporciona conhecimentos importantes da história oculta da igreja católica ao longo desses séculos obscuros. Ao mesmo tempo que histórico, este romance também sabe ser irônico, cético e escatológico, sempre que cabível. Aqui fica evidente que, ironicamente, a ciência medieval era ditada pela igreja, claro, sem nenhuma base científica.

A injustiça da ordem dominicana contra a beguinaria* também é denunciada, pois era atroz, uma vez que suas componentes só praticavam o bem e a ajuda aos pobres e doentes em nome de Deus, ao contrário das ordens dos conventos que abrigavam noviças e freiras, em sua maioria filhas excedentes ou bastardas de nobres, que não trabalhavam e nada lhes faltava.

Por outro lado, a bestialidade humana contra os judeus já grassava pelo incentivo da própria igreja católica, sob a falsa alegação de terem assassinado Cristo. Na realidade, queriam reduzir o número de bocas a alimentar diante da escassez de comida nos rigorosos invernos europeus.

Nos diálogos e convivência dos personagens, Sénanque promove uma intensa troca de reflexões sobre Deus e a convivência e a união com Ele; e apresenta a complexa e abstrata teoria do empobrecimento da alma para se aproximar do Criador. Mas a fome derruba suas teses a partir do momento que o povo prefere um emprego ou um pedaço de pão e não unir-se a Deus. Isto, por volta dos meados do livro, o qual sem dúvida, recomendo aos que se interessam por esse tipo de debate.

A obra oferece-nos uma espécie de ode ao sofrimento beirando a demência. É uma resumo da história de um grande e respeitado mestre dominicano, bem como da clausura de um frade da ordem,  e de um inquisidor fanático, que servem de fio condutor do texto.

Assim, Sénanque escancara para os leitores quanto o fanatismo, o poder e a preponderância religiosos cegaram as massas ignorantes durante séculos. Assim como nos dias atuais movimentos de radicalismo ideológico e de políticas identitárias influenciam grande número de pessoas, a igreja católica predominava nos sentimentos e nos pensamentos das pessoas nos tempos medievais, com o agravante das ameaças de tortura e morte, e do conluio com os estadistas da época. A igreja então, como o poder econômico hoje, dominava tudo: da medicina e o comércio às universidades, os exércitos e os governantes.

A obra propõe uma profunda reflexão a respeito das preponderâncias religiosas, em especial sobre as dezenas de diversificações do Cristianismo. Aqui, tendo como destaque e liame a forte atuação  e intrigas políticas de suas lideranças e ordens mendicantes (franciscana, dominicana, beneditina, etc.), a igreja católica, principalmente, exercia uma força exageradamente ditatorial sobre as massas crentes (e mesmo  leigas) que culminou, por cerca de dez séculos de escuridão, com a tirania da Inquisição do século XIII ao XVIII.

Ficam também como destaques, a influência e os fatos
da grande peste negra, bem como as torturas e execuções sádicas nas fogueiras, proporcionadas pela Inquisição, um tribunal da Igreja Católica que perseguiu, julgou e puniu pessoas acusadas de heresia, apostasia, blasfêmia, feitiçaria e costumes desviantes, além de, como o Nazismo, os judeus e os ciganos.

E Sénanque deixa para o fim uma deliciosa sequência de suspense.

Tentei descobrir o verdadeiro nome do autor deste Cruz de Cinza e não consegui. Deduzi, portanto, que assim como esta sua obra descreve a escrita de um livro a quatro mãos, ela mesma, por similaridade, tenha a motivação incrustada no próprio enredo, não sobrevivendo um autor. Mas, enfim, é uma bela obra literária, de difícil pesquisa e laboriosa escrita. Resta-nos prestigiar este esforço que transborda do livro para a realidade. Apenas lamento que não houve mais publicações deste excelente nom de plume em português.

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Valdemir Martins

01.03.2025

·         * Comunidades de beguinas – mulheres religiosas que ao contrário das freiras não tinham uma ordem, nem votos e nem clausura. Eram livres, constituídas em sua maioria por viúvas sérias e com paixão espiritual.


IIIIlustrações: 1. Capa do livro; 2. Os franciscanos; 3. Os dominicanos; 4. As fogueiras da Inquisição; 5. O pergaminho; 6. As beguinas; 7. A Peste Negra e a medicina medieval; 8. O reencontro debaixo da terra; 9. O autor Antoine Sénanque.