Pesquisar este blog

18 de jul. de 2025

Cem Anos de Perdão: os mortos têm para sempre a mesma idade.

Um crime escandaliza uma comunidade e uma nação por sua violência. O que seria simplesmente um tópico policial, torna-se um assunto de profundo impacto num presídio. E, com esse enfoque, o brilhante romance Cem Anos de Perdão, do escritor e jornalista português João Tordo aborda e desenvolve seu argumento, diferenciando-o dos outros romances policialescos.
Independentemente do perdão de Deus, pela Justiça dos homens até os atos criminosos efetuados em nome d’Ele não merecem perdão. Seja praticado por um agnóstico ou por um fanático religioso. Como neste caso, numa remota e fictícia ilha britânica, em consonância com os preceitos de uma seita religiosa ancestral.

Como num excelente quebra-cabeças, Tordo apresenta-nos as peças e, de forma oportuna e aprazível, vai oferecendo-nos os encaixes possíveis, numa obra crescente, vagueando entre o mistério, o policial, o suspense e o religioso. E, claro, o psicológico. Enfim, um thriller psicológico intenso.
Num clima sufocante, claustrofóbico, seja numa igreja, na prisão, nos bares, na delegacia, num celeiro ou mesmo nos quartos, Tordo explora de forma mágica essa atmosfera, entremeando-o ao clima pesado de Primavera britânico, frio, escuro, chuvoso e nevoento. Os personagens vão aflorando no ritmo dos acontecimentos até ao ponto em que tudo se amontoa e parece que o mistério não terá solução, E até os dois protagonistas chegam assim a essa conclusão.
 
Entretanto é uma obra dinâmica e contundente. Leva-nos a refletir sobre culpa, perdão, injustiça, humildade e solidão. Trechos de narrativas de personagens e mesmo de reflexão dos protagonistas mexem com nossos sentimentos, levando-nos a ponderar sobre episódios similares de nossas próprias vidas. Suas lucubrações, em diversos momentos, colocam em pauta a credibilidade de diversas consagrações bíblicas.

E, com tudo isso, o enredo é muito envolvente, o que nos prende bastante à leitura. Narrado na terceira pessoa, em sua maior parte, o livro tem trechos como numa carta ou um diário, na primeira pessoa, aqui possibilitando-nos respirar e sair do sufoco do restante da narrativa. Os cães, como os seres mais fiéis e leais do contexto, auxiliam-nos a sair da falsidade e da hipocrisia provenientes dos seres humanos.

O talento de João Tordo possibilita-nos a reflexão sobre nossos valores nesta vida. Neste seu exuberante thriller apresenta personagens possíveis e reais, com seus sofrimentos, como todos nós, a partir de um enredo bastante complexo e profundo. Fica aqui a recomendação de uma leitura sensível, que não se consegue largar pela envolvente criatividade do autor.

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins
25.05.2025

Fotos: 1. Capa do livro; 2. A prisão de Brixton; 3.  Penhascos da ilha de St. Dismas; 4. Os fanáticos da seita religiosa; 5. Vista da cidade de Bridgwater; 6. A rua Alves Torgo, em Lisboa; 7. O autor português João Tordo.

11 de jun. de 2025

A Mais Recôndita Memória dos Homens.

Falar, ler e escrever sobre assuntos literários para mim é e será sempre um regozijo. E foi o que me proporcionou a leitura de A Mais Recôndita Memória dos Homens, obra mundialmente consagrada do premiado senegalês Mohamed Mbougar Sarr. O desejo de ser escritor – mesmo que não se reconheça a incapacidade por falta de talento - é sempre o fantasma que povoa sua formação. E esta é a prazerosa deambulação inicial deste livro.

Inspirado na história real do escritor malinês Yambo Ouologuem, primeiro negro a conquistar o prestigiado prêmio literário Renaudot, e que depois de quatro anos teve seu livro recolhido por acusação de plágio e sumiu sem deixar rastros, Sarr desenvolve seu enredo em homenagem a ele por considerá-lo injustiçado.

Com linguagem às vezes rebuscada, quase grandiloquente, mas sempre poética, o culto Sarr traça uma narrativa sobre um livro escrito por um senegalês, tido como uma obra prima universal, mas recolhido e esgotado e que não se encontra em parte alguma, como seu autor T. C. Elimane. A obra torna-se uma obsessão do protagonista, motivando-o a ser escritor, num provável álter ego de Sarr. Em busca de inspiração, tem um encontro com uma escritora consagrada – à qual chama de Aranha-mãe – e que altera completamente a orientação de sua vida.

Repleto de reflexões filosóficas, pretensas ou não, o relato do autor não sofre aqueles hiatos  terríveis que costumam tornar aborrecidas muitas obras. Contrariamente, enriquece as narrativas de situações e lhes proporciona importante qualidade literária. Tudo bem dosado com linguagem vulgar entremeada, concedendo à obra uma aura de um estilo peculiar raro na literatura consagrada. Consegue até fortes impactos  cometendo sacrilégios como um diálogo onírico com Jesus Cristo em paralelo a uma frenética atividade sexual de amigos.

Reflete, então, sobre a condição de escritor, à mercê de tudo e do nada, obrigatoriamente na solidão, enquanto em trabalho, como previsto pelo chileno Roberto Bolaño na epígrafe deste livro. E continua para uma profunda reflexão, algo prolixa, sobre a herança deixada pelos escritores africanos mais antigos que em nada contribuíram para o reconhecimento principalmente da literatura negra nativa.

Sem pretensões, sugere uma real (e polêmica) comparação entre os valores literários europeus dos séculos XIX e XX e a atual produção literária dos novos valores africanos. E não deixa de ter razão ao percebermos o crescente número de obras de boa ou excelente qualidade literária surgida neste século, representada principalmente pelo Nobel de 2021, o tanzaniano Abdulrazak Gurnah, pela ganesa Yaa Gyasi, pelo etíope
americano Abraham Verghese, pelo ugandense Mahmood Mamdani, pelo Chinua Achebe e mais Chimamanda Ngozi (Nigéria), Wole Soyinka (Nigéria), Nadine Gordimer (África do Sul) e José Eduardo Agualusa (Angola). Isto, sem considerar os já consagrados branquelos Mia Couto, Artur Pestana (Pepetela) e J. M. Coetzee (Nobel de 2003).

Em todo o livro Sarr efetua contraposições de épocas e de locais. O texto se desenrola em costuras atemporais, entremeadas por pontos romanceados interligados que compõem o enredo de fundo, confeitado forte e longamente por críticas ao mundo da literatura.

Acredito que nesta obra Sarr quebre inúmeras e intocáveis barreiras do mundo literário, principalmente aquele que repele a cultura africana e consagra quem já é consagrado. A história é pinçada com precisão para ilustrar sua avaliação crítica de obras literárias. O que, com certeza, lhe proporcionou a conquista da maior láurea francesa que é o Prêmio Goncourt, um indicador de tendências literárias.

Enfim, o livro transcorre, em linhas gerais, na procura pelo desaparecido autor T. C. Elimane e a obsessão do protagonista e demais personagens por sua única obra. Uma leitura difícil e que exige muita concentração, conhecimento e gosto pela literatura.

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins

05.05.2025

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Yambo Ouologuem, o escritor malinês injustiçado; 3. Capa do livro premiado de Ouologuem; 4. O bar dos encontros em Paris; 5. O diálogo ficcional com Cristo; 6. Uma das ilustrações da capa do livro; 7. O autor Mohamed Mbougar Sarr.


30 de mai. de 2025

1222: uma baixa altitude para o que se espera de um suspense.

Às vezes nos perguntamos como será a vida de um cadeirante. E um bom exemplo de resposta encontramos no livro 1222, um romance policial de suspense da premiada escritora norueguesa Anne Holt. E tudo tem início a partir de um acidente ferroviário a 1222 metros de altitude, ao lado de um hotel, entre Oslo e Bergen, e durante uma forte tempestade de neve; um furacão, segundo a autora.

Por aí, tem-se uma perspectiva do que poderá acontecer aos 269 passageiros do trem, dentre os quais vai destacar-se como protagonista a inspetora de polícia inválida e aposentada Hanne Wilhelmsen, cadeirante por acidente em ação.

Um texto que a princípio parece-nos confuso ou mal traduzido, auxilia na criação do clima desordenado que ambienta a reunião dos passageiros num antigo hotel próximo ao acidente. Mortes vêm tumultuar a convivência dos passageiros, presos no hotel em função de uma tempestade de vento e neve jamais vista na Noruega. E Hanne, não querendo envolver-se, não consegue segurar seu raciocínio lógico de policial e acaba por implicar-se.

A autora, que é homossexual, acaba defendendo o amor e o casamento lésbico e os muçulmanos, origem da companheira da protagonista. Transforma um acidente num thriller psicológico sem sustos ou surpresas, às vezes até monótono e repetitivo, patinando numa narrativa de busca entre o etéreo e o inócuo. Simplesmente sem emoção. E caminha para um final previsível diante de tantas pistas colocadas por Holt.

Queiramos ou não, a tempestade de neve torna-se uma segunda protagonista por força de sua influência nos rumos da história.

Mas, enfim, o livro não responde à pergunta inicial de como será a vida de um cadeirante, mas dá-nos a possibilidade de poder imaginá-la. Assim como passamos todo o tempo de sua leitura imaginando os tipos diferenciados que percorrem o enredo e seu eventual envolvimento com as mortes.

Um romance comum, sem o brilho esperado de um suspense policial.

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins

24.04.2025

Fotos: 1. Capa do livro; 2. O antigo hotel nas montanhas nevadas; 3. O trem quebrado próximo ao hotel; 4. A autora Anne Holt.

5 de mai. de 2025

Oliver Twist, um memorial da miséria humana.

Não se pode ler Oliver Twist sem conhecer a origem pobre e problemática de seu autor, o inglês Charles Dickens. Escrito em episódios publicados na revista literária britânica Bentley’s Miscellany durante dois anos - e nesse interregno como um livro  -, a obra é resultado de uma infância e adolescência problemática e curiosa que serviu de inspiração para a história de um órfão em Londres no século XVIII.
Rico em miséria, o livro tem um início tragicômico ao descrever as condições e diálogos do nascimento do pequeno Oliver e de seu primeiro livramento aos oito anos. A partir daí, o pequeno passa por todo o tipo de sofrimento, num texto espetacular de Dickens, impregnado de ironia e crítica dissimulada aos adultos que tudo decidem na vida de crianças órfãs naquela pequena cidade natal de Oliver, obscura, ignorante e violenta. A dramaticidade expressa pelo autor é superlativa.

O menino foge então para a parte também violenta e imunda de Londres e sua vida muda novamente. Dickens não perde a chance de despejar suas críticas sociais a cada nova situação. Chega até a criticar os filósofos que perdem tempo em reflexões e divagações muitas vezes fúteis e vazias, que nada de prático acrescentam à vida das pessoas. Atua como narrador e pondera com o leitor algumas situações do enredo, numa incrível empatia e intimidade.

Em sua crônica social, Dickens transporta-nos para aventuras nebulosas, obscuras e criminosas. O bem é algo raro e muitas vezes subliminar e ambíguo, mas incomum. Nas escassas cenas de felicidade do garoto, o autor capricha no tom poético. E, como um bom clássico, a obra tem diversas sequências prolixas, com narrativas minuciosas de criatividade poética e função estética, o que poderá resultar em enfadonhas para alguns leitores. Porém, necessárias na medida em que criam ambientações e trazem esclarecimentos sobre lugares e personagens. Além de abrilhantar literariamente a obra.

A partir de sua terceira parte, o livro explode em ação. E as revelações crescem aos borbotões, ao tempo em que um crime horroroso começa a dar o fecho à história. E a degradação física e psíquica de um condenado transforma o quase final da obra numa lição de como expressar em letras a angústia e o desespero, contagiando o leitor. E, a seguir, um final esperadamente feliz, por tratar-se da vida de um pobre e indefeso menino.

Aliás, Oliver, o pretenso protagonista, tem sua relevância diluída perante o protagonismo de outros fortes personagens, num jogo de participações marcantes desta muito bem elaborada trama urdida no talento de Dickens.

Neste que é um de seus primeiros trabalhos, Charles Dickens já demonstra seu enorme talento como o maior romancista e mais popular dos gerados na era vitoriana. Tornou-se, pelo conjunto de sua obra, o mais respeitado escritor do realismo britânico.

Uma obra para se conhecer antes de ler sua considerada obra prima David Copperfield, um dos mais importantes romances do século XIX. E também o mais autobiográfico de Dickens.

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins
08.04.2025

Fotos: 1. Capa do livro; 2. A revista literária britânica Bentley’s Miscellany; 3. O bedel do orfanato; 4. O Judeu meliante; 5. A perseguição; 6. O autor Charles Dickens.

10 de abr. de 2025

A profunda, delicada e perigosa Cruz de Cinza.

Em tempos de Inteligência Artificial, em pleno século XXI, e num país de maioria de iletrados e desinformados, parece ser impossível conhecer-se tanta miséria, privações e sofrimento descabido e ilógico na Europa, muitas vezes chamada de o berço da civilização e da cultura, principalmente nos séculos XIII e XIV. E é para esse ambiente que nos transporta o excelente livro Cruz de Cinza, de Antoine Sénanque,  pseudônimo de um neurologista e escritor francês já premiado em seu país.

O título da obra refere-se simbolicamente ao sacrifício de quem morreu nas fogueiras tenazes da Inquisição. E assim o autor conduz-nos aos primórdios dos franciscanos e dos dominicanos na Idade Média, veladamente inimigos quanto aos conceitos de suas religiosidades. Enquanto os franciscanos viviam na pobreza absoluta dedicando-se a auxiliar os necessitados (inclusive os animais), os dominicanos sobre eles tripudiavam para demonstrar sua sabedoria e força de doutrinação radical.

E é da severidade dos dominicanos que dois frades despontam, um deles como protagonista juntamente com seu prior. E numa primeira aparição da Inquisição a obra já sofre sua primeira reviravolta e mudança de clima. A eles junta-se o prior do convento, cujo protagonismo desponta a partir de suas narrativas para um livro. E assim, Sénanque coloca-nos na esteira de um bom aprendizado sobre os costumes monásticos da época e a medicina empírica medieval, trazendo-nos boas passagens da história teológica resultantes de suas pesquisas.

Esta é uma leitura que nos proporciona conhecimentos importantes da história oculta da igreja católica ao longo desses séculos obscuros. Ao mesmo tempo que histórico, este romance também sabe ser irônico, cético e escatológico, sempre que cabível. Aqui fica evidente que, ironicamente, a ciência medieval era ditada pela igreja, claro, sem nenhuma base científica.

A injustiça da ordem dominicana contra a beguinaria* também é denunciada, pois era atroz, uma vez que suas componentes só praticavam o bem e a ajuda aos pobres e doentes em nome de Deus, ao contrário das ordens dos conventos que abrigavam noviças e freiras, em sua maioria filhas excedentes ou bastardas de nobres, que não trabalhavam e nada lhes faltava.

Por outro lado, a bestialidade humana contra os judeus já grassava pelo incentivo da própria igreja católica, sob a falsa alegação de terem assassinado Cristo. Na realidade, queriam reduzir o número de bocas a alimentar diante da escassez de comida nos rigorosos invernos europeus.

Nos diálogos e convivência dos personagens, Sénanque promove uma intensa troca de reflexões sobre Deus e a convivência e a união com Ele; e apresenta a complexa e abstrata teoria do empobrecimento da alma para se aproximar do Criador. Mas a fome derruba suas teses a partir do momento que o povo prefere um emprego ou um pedaço de pão e não unir-se a Deus. Isto, por volta dos meados do livro, o qual sem dúvida, recomendo aos que se interessam por esse tipo de debate.

A obra oferece-nos uma espécie de ode ao sofrimento beirando a demência. É uma resumo da história de um grande e respeitado mestre dominicano, bem como da clausura de um frade da ordem,  e de um inquisidor fanático, que servem de fio condutor do texto.

Assim, Sénanque escancara para os leitores quanto o fanatismo, o poder e a preponderância religiosos cegaram as massas ignorantes durante séculos. Assim como nos dias atuais movimentos de radicalismo ideológico e de políticas identitárias influenciam grande número de pessoas, a igreja católica predominava nos sentimentos e nos pensamentos das pessoas nos tempos medievais, com o agravante das ameaças de tortura e morte, e do conluio com os estadistas da época. A igreja então, como o poder econômico hoje, dominava tudo: da medicina e o comércio às universidades, os exércitos e os governantes.

A obra propõe uma profunda reflexão a respeito das preponderâncias religiosas, em especial sobre as dezenas de diversificações do Cristianismo. Aqui, tendo como destaque e liame a forte atuação  e intrigas políticas de suas lideranças e ordens mendicantes (franciscana, dominicana, beneditina, etc.), a igreja católica, principalmente, exercia uma força exageradamente ditatorial sobre as massas crentes (e mesmo  leigas) que culminou, por cerca de dez séculos de escuridão, com a tirania da Inquisição do século XIII ao XVIII.

Ficam também como destaques, a influência e os fatos
da grande peste negra, bem como as torturas e execuções sádicas nas fogueiras, proporcionadas pela Inquisição, um tribunal da Igreja Católica que perseguiu, julgou e puniu pessoas acusadas de heresia, apostasia, blasfêmia, feitiçaria e costumes desviantes, além de, como o Nazismo, os judeus e os ciganos.

E Sénanque deixa para o fim uma deliciosa sequência de suspense.

Tentei descobrir o verdadeiro nome do autor deste Cruz de Cinza e não consegui. Deduzi, portanto, que assim como esta sua obra descreve a escrita de um livro a quatro mãos, ela mesma, por similaridade, tenha a motivação incrustada no próprio enredo, não sobrevivendo um autor. Mas, enfim, é uma bela obra literária, de difícil pesquisa e laboriosa escrita. Resta-nos prestigiar este esforço que transborda do livro para a realidade. Apenas lamento que não houve mais publicações deste excelente nom de plume em português.

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins

01.03.2025

·         * Comunidades de beguinas – mulheres religiosas que ao contrário das freiras não tinham uma ordem, nem votos e nem clausura. Eram livres, constituídas em sua maioria por viúvas sérias e com paixão espiritual.


IIIIlustrações: 1. Capa do livro; 2. Os franciscanos; 3. Os dominicanos; 4. As fogueiras da Inquisição; 5. O pergaminho; 6. As beguinas; 7. A Peste Negra e a medicina medieval; 8. O reencontro debaixo da terra; 9. O autor Antoine Sénanque.

14 de mar. de 2025

As simples emoções da Manhã e Noite.

Cometemos erros. E felizes são aqueles que os percebem e podem corrigi-los a tempo de salvar alguma coisa. Ao iniciar a leitura de “É a Ales”, um dos grandes sucessos de Jon Fosse, fiquei irritado (gratuitamente) com suas repetições da mesma frase que abandonei a leitura. E ao ler uma crítica em um site português ao seu recente lançamento, empolguei-me em ler este maravilhoso Manhã e Noite. Salvei, assim, uma ótima leitura que fez-me bem à sensibilidade e à alma.

Quem nunca leu – como eu - Jon Fosse, o escritor norueguês ganhador do Nobel de Literatura de 2023, vai inferir um trabalho diferenciado. Dinâmico, repetitivo como ênfase, e gerador de ansiedade e pleno suspense. É o que percebi ao iniciar a leitura de sua mais recente obra, Manhã e Noite. Um parto e as preocupações de um pai envolvem-nos imediatamente e passamos a fazer parte do texto.

Numa escrita solta, livre de regras e com ritmos difusos, Fosse pega o leitor pela mão e puxa-o para o texto para, juntos, participarem das emoções que ele está criando. Da ansiedade de um pai, salta para uma digressão sobre a dualidade do Bem e do Mal e a criação de um mundo que deveria ser bom. E numa avalanche de emoções entremeada de poesia e prosa, Fosse descreve os sentimentos da vivência do bebê ao nascer, uma experiência jamais narrada desta forma. Simplesmente envolvente e brilhante.

A seguir a leitura, o leitor provavelmente sentir-se-á incomodado com a escrita diferenciada do norueguês. Mas logo se acostumará e, tendo sensibilidade, perceberá a riqueza dessa forma de escrita. Não só nas repetições, como na narração do óbvio ou do detalhe desnecessário à primeira vista. Mas, o que ele está fazendo é demonstrar a cabeça do personagem; sua maneira de ser e pensar. E dessa forma magistral o leitor assimila o caráter do personagem.

Uma obra onde o místico Fosse, de forma poeticamente simples, traz-nos o significado da vida numa configuração de início e fim, utilizando magistralmente a realidade mágica mostrando como é maravilhoso viver. E insistir na vida e na convivência com pessoas que se ama.

Neste pequeno romance Fosse demonstra grandiosidade de maneira desconcertantemente simples. Um superlativo sobre como é o bom nascer e o bom morrer, como uma resplandecente manhã e uma magnífica noite.

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins
03.02.2025

Fotos: 1. Capa do livro; 2. O parto ansioso; 3. O recém nascido; 4. O barco de pesca; 5. Falecido em casa; 6. O autor Jon Fosse.

19 de fev. de 2025

A rápida passagem dos Cem Anos de Solidão.

Sempre ouvi o ditado “nem tudo que brilha é ouro”. E ao ler o aclamado Cem Anos de Solidão, do consagrado escritor colombiano Gabriel García Márquez, tive a exata sensação de estar no âmago da frase, pois apesar de todo o brilho do autor, sua obra máxima está além do ouro e resplandece como um grande diamante.

A solidão do título se impregna na maioria de seus personagens, seja um cigano, um padre, um ourives, uma múltipla mãe solteira, um líder revolucionário... E para contradizer todo esse conceito, seu protagonista é uma família. E seu hábitat, Macondo, uma fictícia cidade, esta sim, solitária e longe de tudo, no meio de um pantanal, que floresce e depois desaparece.

Gabo – como também é conhecido Márquez – arrasta-nos para um ambiente efervescente e tumultuoso como a própria história recente da América Latina. De repente o leitor está ingressando lenta e figurativamente nas entranhas de um continente que entrou em ebulição no século 19 e não parou até nossos dias, principalmente nas terras e pátrias de colonização espanhola.

Essas regiões permanentemente revolucionárias e seus anti-heróis são incrustadas por Gabo em seu romance de forma criativamente brilhante com base nas histórias contadas por seu avô sobre as guerras entre conservadores e liberais nas disputas por poder na Colômbia de quase dois séculos atrás. Junta-se a esse poderoso contexto personagens de gloriosa inspiração, ricos em características e personalidades típicas regionais, das mais ignorantes, simplórias e surreais às mais inteligentes, fortes e diferenciadas.

A universalidade é outra característica patente na obra. Gabo contextualiza a transcendência histórica e geográfica de diferentes culturas e épocas, fugindo assim do que poderia ser chamado de regionalismo barato. Sua linguagem exuberante e poética – às vezes até grotesca -  demonstra sua capacidade de entender e expor (e até subliminarmente criticar) as nuances da diversidade humana.

Os cem anos passam rapidamente numa leitura extremamente aprazível em suas cerca de 450  páginas, escritas em dezoito meses (1965 a 1967). E a solidão saltitante de personagem em personagem demonstra e registra sua presença tanto no poder como na labuta doméstica; tanto na ordem quanto nos desmandos e arbitrariedades, tanto nos inimigos como nas amizades.

O leitor, sem dúvida, toma um porre de Aurelianos e Arcadios, no incrível e fantástico nascer e renascer de personagens. Mas, ao integrar o fantástico ao cotidiano dos personagens, Gabo pontua cada geração de Aurelianos e Arcadios permitindo que não os confundamos como os gêmeos, da terceira ascendência, com esses mesmos nomes que resolveram trocar de identidade mutuamente. Uma tirada excepcional do autor.

Possivelmente, além de beber nas obras do mexicano Juan Rulfo – pai do Realismo Fantástico latino americano -, Gabo tenha sofrido influências dos textos do chamado “teatro do absurdo” produzidos pelo romeno Eugène Ionesco, pelo irlandês Samuel Beckett e pelo francês Jean Genet. Além da fantasia, cenas com tratamento inusitado de aspectos da vida dos personagens e da cidade são constantes nesta obra, transcendendo o tempo de forma magistral.

Um livro repleto de conteúdo; inteligente, criativo, cheio de histórias contadas por Gabo de forma envolvente trazendo-nos aventuras, romances, dramalhões, guerras e religiosidade como o fio condutor de uma família. Destacam-se, então, as ironias, as análises de caráter, o envelhecimento solitário, o valor das amizades e da família, bem como críticas aos costumes, à falsidade e à hipocrisia. E, apesar de tudo, fala de amor, de bondade e de liberdade. E, claro, de solidão.

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins

28.01.2025

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Um  dos prováveis mapas da fictícia Macondo; 3. A imortal matriarca; 4. O revolucionário patriarca; 5. A incrível árvore genealógica; 6. As borboletas de um dos delírios de personagens; 7. O autor colombiano Gabo, Gabriel García Márquez.

29 de jan. de 2025

Salvar o Fogo com lirismo e magia.

Felizmente, para a literatura brasileira e para nós, leitores, uma importante evolução literária de Itamar Vieira Junior pode ser constatada ao se iniciar a leitura de sua mais recente obra, Salvar o Fogo, ganhadora como Melhor Romance Literário  do Prêmio Jabuti de 2024. Fato que não me surpreendeu, uma vez que Itamar já havia conquistado com seu romance de estreia Torto Arado, nada menos que quatro premiações: o primeiro Jabuti de sua carreira  (2020), além dos internacionais Oceanos (20200,  Leya (2018) e Montluc Rèsistance et Liberté (2024).

Seu texto já antes claro e sucinto, traz-nos, a princípio, a história de um verdadeiro moleque – indesejado no rico preâmbulo que principia o livro – refutado por sua irmã tutora. Suas peripécias na infância e sua pureza bem retratam a instabilidade de muitas pessoas adultas.

A insegurança infantil em um lar desintegrado pela pobreza, pela educação capenga, pela falta de liderança paterna e pela interferência da religião é explorada por Vieira como definidor da vida e da personalidade dos personagens integrantes dessa família, nas quais, com certeza, muitos leitores irão se identificar. Fugir da “vidinha ordinária, rasteira, da penúria” é algo bastante comum, senão corriqueiro, por este Brasil afora.

Com uma excelente técnica narrativa, sua obra bem estruturada é muito bem escrita, criativa, com um enredo simples que dá muitas voltas sem sair do lugar, como num jogo de tabuleiro mudando apenas as peças de lugar e gerando encantamento. No entanto, o lirismo e a qualidade literária são excelsos e de uma beleza fluida. O diálogo quase ilógico, por exemplo, de duas senhoras, uma ex-prostituta e uma devota auto anulada, é de uma riqueza exuberante. Outro destaque fica por conta da narrativa, às vezes com viés de realidade mágica, o que enobrece sobremaneira sua qualidade literária.

Juntando os pedaços de uma família ao redor de um leito de um hospital humilde, Vieira constrói um mosaico de emoções dos personagens, poucas vezes encontrado em nossa literatura. Assim, introduziu na narrativa a terceira protagonista, nada menos que o liame ao seu primeiro livro, com uma incrível história.

A escancarada crítica à religião e suas regras retrógradas se faz permanente ao longo do texto. Personagens extremamente religiosos criticam – e põem em dúvida – atitudes dos monges, seus costumes, suas cobranças e seus sermões. Também não escapam de sua condenação os abusos dos poderosos sobre os humildes e necessitados, os preconceitos gratuitos e as superstições; igualmente os políticos ordinários são expostos. Tudo numa severa denúncia originária dos abusos colonialistas principalmente aos índios e aos escravos, entranhados inexoravelmente em nossa história.

Portanto, a injustiça social, para não falar na divina - uma vez que o caos, a corrupção e a violência são frutos do Homem, mesmo os sagrados-, faz-se presente com muita força, representando o protesto e a denúncia que marcam intencionalmente as obras do autor. E, segundo ele, este é o segundo livro de uma trilogia (iniciada com Torto Arado) sobre os que vivem da terra, sempre ligando seus personagens como Maria Cabocla e Bibiana, colocando, assim, ênfase e força nas figuras femininas.

Além das denúncias e protestos velados, cumprindo a saga da miséria na literatura nordestina brasileira, de Rachel a Amado, de Cabral a Suassuna, passando por Graciliano, o contemporâneo Vieira faz jus e honra até Castro Alves e Aluisio Azevedo com sua obra em contínua evolução. Bons ventos o trouxeram e outros tantos espalharão sua obra para que todos a conheçam. Que assim seja!

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins

14.12.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Moleque brincando no rio Paraguaçu (BA); 3. Lateral do mosteiro da vila; 4. O rio e a floresta; 5. A irmã tutora Luzia lavando no rio; 6. As ruinas do mosteiro; 7. Torto Arado, o primeiro livro da trilogia; 8. O autor Itamar Vieira Junior.