Pesquisar este blog

14 de mar. de 2025

As simples emoções da Manhã e Noite.

Cometemos erros. E felizes são aqueles que os percebem e podem corrigi-los a tempo de salvar alguma coisa. Ao iniciar a leitura de “É a Ales”, um dos grandes sucessos de Jon Fosse, fiquei irritado (gratuitamente) com suas repetições da mesma frase que abandonei a leitura. E ao ler uma crítica em um site português ao seu recente lançamento, empolguei-me em ler este maravilhoso Manhã e Noite. Salvei, assim, uma ótima leitura que fez-me bem à sensibilidade e à alma.

Quem nunca leu – como eu - Jon Fosse, o escritor norueguês ganhador do Nobel de Literatura de 2023, vai inferir um trabalho diferenciado. Dinâmico, repetitivo como ênfase, e gerador de ansiedade e pleno suspense. É o que percebi ao iniciar a leitura de sua mais recente obra, Manhã e Noite. Um parto e as preocupações de um pai envolvem-nos imediatamente e passamos a fazer parte do texto.

Numa escrita solta, livre de regras e com ritmos difusos, Fosse pega o leitor pela mão e puxa-o para o texto para, juntos, participarem das emoções que ele está criando. Da ansiedade de um pai, salta para uma digressão sobre a dualidade do Bem e do Mal e a criação de um mundo que deveria ser bom. E numa avalanche de emoções entremeada de poesia e prosa, Fosse descreve os sentimentos da vivência do bebê ao nascer, uma experiência jamais narrada desta forma. Simplesmente envolvente e brilhante.

A seguir a leitura, o leitor provavelmente sentir-se-á incomodado com a escrita diferenciada do norueguês. Mas logo se acostumará e, tendo sensibilidade, perceberá a riqueza dessa forma de escrita. Não só nas repetições, como na narração do óbvio ou do detalhe desnecessário à primeira vista. Mas, o que ele está fazendo é demonstrar a cabeça do personagem; sua maneira de ser e pensar. E dessa forma magistral o leitor assimila o caráter do personagem.

Uma obra onde o místico Fosse, de forma poeticamente simples, traz-nos o significado da vida numa configuração de início e fim, utilizando magistralmente a realidade mágica mostrando como é maravilhoso viver. E insistir na vida e na convivência com pessoas que se ama.

Neste pequeno romance Fosse demonstra grandiosidade de maneira desconcertantemente simples. Um superlativo sobre como é o bom nascer e o bom morrer, como uma resplandecente manhã e uma magnífica noite.

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins
03.02.2025

Fotos: 1. Capa do livro; 2. O parto ansioso; 3. O recém nascido; 4. O barco de pesca; 5. Falecido em casa; 6. O autor Jon Fosse.

19 de fev. de 2025

A rápida passagem dos Cem Anos de Solidão.

Sempre ouvi o ditado “nem tudo que brilha é ouro”. E ao ler o aclamado Cem Anos de Solidão, do consagrado escritor colombiano Gabriel García Márquez, tive a exata sensação de estar no âmago da frase, pois apesar de todo o brilho do autor, sua obra máxima está além do ouro e resplandece como um grande diamante.

A solidão do título se impregna na maioria de seus personagens, seja um cigano, um padre, um ourives, uma múltipla mãe solteira, um líder revolucionário... E para contradizer todo esse conceito, seu protagonista é uma família. E seu hábitat, Macondo, uma fictícia cidade, esta sim, solitária e longe de tudo, no meio de um pantanal, que floresce e depois desaparece.

Gabo – como também é conhecido Márquez – arrasta-nos para um ambiente efervescente e tumultuoso como a própria história recente da América Latina. De repente o leitor está ingressando lenta e figurativamente nas entranhas de um continente que entrou em ebulição no século 19 e não parou até nossos dias, principalmente nas terras e pátrias de colonização espanhola.

Essas regiões permanentemente revolucionárias e seus anti-heróis são incrustadas por Gabo em seu romance de forma criativamente brilhante com base nas histórias contadas por seu avô sobre as guerras entre conservadores e liberais nas disputas por poder na Colômbia de quase dois séculos atrás. Junta-se a esse poderoso contexto personagens de gloriosa inspiração, ricos em características e personalidades típicas regionais, das mais ignorantes, simplórias e surreais às mais inteligentes, fortes e diferenciadas.

A universalidade é outra característica patente na obra. Gabo contextualiza a transcendência histórica e geográfica de diferentes culturas e épocas, fugindo assim do que poderia ser chamado de regionalismo barato. Sua linguagem exuberante e poética – às vezes até grotesca -  demonstra sua capacidade de entender e expor (e até subliminarmente criticar) as nuances da diversidade humana.

Os cem anos passam rapidamente numa leitura extremamente aprazível em suas cerca de 450  páginas, escritas em dezoito meses (1965 a 1967). E a solidão saltitante de personagem em personagem demonstra e registra sua presença tanto no poder como na labuta doméstica; tanto na ordem quanto nos desmandos e arbitrariedades, tanto nos inimigos como nas amizades.

O leitor, sem dúvida, toma um porre de Aurelianos e Arcadios, no incrível e fantástico nascer e renascer de personagens. Mas, ao integrar o fantástico ao cotidiano dos personagens, Gabo pontua cada geração de Aurelianos e Arcadios permitindo que não os confundamos como os gêmeos, da terceira ascendência, com esses mesmos nomes que resolveram trocar de identidade mutuamente. Uma tirada excepcional do autor.

Possivelmente, além de beber nas obras do mexicano Juan Rulfo – pai do Realismo Fantástico latino americano -, Gabo tenha sofrido influências dos textos do chamado “teatro do absurdo” produzidos pelo romeno Eugène Ionesco, pelo irlandês Samuel Beckett e pelo francês Jean Genet. Além da fantasia, cenas com tratamento inusitado de aspectos da vida dos personagens e da cidade são constantes nesta obra, transcendendo o tempo de forma magistral.

Um livro repleto de conteúdo; inteligente, criativo, cheio de histórias contadas por Gabo de forma envolvente trazendo-nos aventuras, romances, dramalhões, guerras e religiosidade como o fio condutor de uma família. Destacam-se, então, as ironias, as análises de caráter, o envelhecimento solitário, o valor das amizades e da família, bem como críticas aos costumes, à falsidade e à hipocrisia. E, apesar de tudo, fala de amor, de bondade e de liberdade. E, claro, de solidão.

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins

28.01.2025

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Um  dos prováveis mapas da fictícia Macondo; 3. A imortal matriarca; 4. O revolucionário patriarca; 5. A incrível árvore genealógica; 6. As borboletas de um dos delírios de personagens; 7. O autor colombiano Gabo, Gabriel García Márquez.

29 de jan. de 2025

Salvar o Fogo com lirismo e magia.

Felizmente, para a literatura brasileira e para nós, leitores, uma importante evolução literária de Itamar Vieira Junior pode ser constatada ao se iniciar a leitura de sua mais recente obra, Salvar o Fogo, ganhadora como Melhor Romance Literário  do Prêmio Jabuti de 2024. Fato que não me surpreendeu, uma vez que Itamar já havia conquistado com seu romance de estreia Torto Arado, nada menos que quatro premiações: o primeiro Jabuti de sua carreira  (2020), além dos internacionais Oceanos (20200,  Leya (2018) e Montluc Rèsistance et Liberté (2024).

Seu texto já antes claro e sucinto, traz-nos, a princípio, a história de um verdadeiro moleque – indesejado no rico preâmbulo que principia o livro – refutado por sua irmã tutora. Suas peripécias na infância e sua pureza bem retratam a instabilidade de muitas pessoas adultas.

A insegurança infantil em um lar desintegrado pela pobreza, pela educação capenga, pela falta de liderança paterna e pela interferência da religião é explorada por Vieira como definidor da vida e da personalidade dos personagens integrantes dessa família, nas quais, com certeza, muitos leitores irão se identificar. Fugir da “vidinha ordinária, rasteira, da penúria” é algo bastante comum, senão corriqueiro, por este Brasil afora.

Com uma excelente técnica narrativa, sua obra bem estruturada é muito bem escrita, criativa, com um enredo simples que dá muitas voltas sem sair do lugar, como num jogo de tabuleiro mudando apenas as peças de lugar e gerando encantamento. No entanto, o lirismo e a qualidade literária são excelsos e de uma beleza fluida. O diálogo quase ilógico, por exemplo, de duas senhoras, uma ex-prostituta e uma devota auto anulada, é de uma riqueza exuberante. Outro destaque fica por conta da narrativa, às vezes com viés de realidade mágica, o que enobrece sobremaneira sua qualidade literária.

Juntando os pedaços de uma família ao redor de um leito de um hospital humilde, Vieira constrói um mosaico de emoções dos personagens, poucas vezes encontrado em nossa literatura. Assim, introduziu na narrativa a terceira protagonista, nada menos que o liame ao seu primeiro livro, com uma incrível história.

A escancarada crítica à religião e suas regras retrógradas se faz permanente ao longo do texto. Personagens extremamente religiosos criticam – e põem em dúvida – atitudes dos monges, seus costumes, suas cobranças e seus sermões. Também não escapam de sua condenação os abusos dos poderosos sobre os humildes e necessitados, os preconceitos gratuitos e as superstições; igualmente os políticos ordinários são expostos. Tudo numa severa denúncia originária dos abusos colonialistas principalmente aos índios e aos escravos, entranhados inexoravelmente em nossa história.

Portanto, a injustiça social, para não falar na divina - uma vez que o caos, a corrupção e a violência são frutos do Homem, mesmo os sagrados-, faz-se presente com muita força, representando o protesto e a denúncia que marcam intencionalmente as obras do autor. E, segundo ele, este é o segundo livro de uma trilogia (iniciada com Torto Arado) sobre os que vivem da terra, sempre ligando seus personagens como Maria Cabocla e Bibiana, colocando, assim, ênfase e força nas figuras femininas.

Além das denúncias e protestos velados, cumprindo a saga da miséria na literatura nordestina brasileira, de Rachel a Amado, de Cabral a Suassuna, passando por Graciliano, o contemporâneo Vieira faz jus e honra até Castro Alves e Aluisio Azevedo com sua obra em contínua evolução. Bons ventos o trouxeram e outros tantos espalharão sua obra para que todos a conheçam. Que assim seja!

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins

14.12.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Moleque brincando no rio Paraguaçu (BA); 3. Lateral do mosteiro da vila; 4. O rio e a floresta; 5. A irmã tutora Luzia lavando no rio; 6. As ruinas do mosteiro; 7. Torto Arado, o primeiro livro da trilogia; 8. O autor Itamar Vieira Junior.

6 de jan. de 2025

A eterna vida do falecido e incomparável Pedro Páramo.

Para quem “começou a escrever para combater a solidão” – como insistia em dizer -, o mexicano Juan Rulfo galgou estágios de sucesso literário jamais por ele imaginado, tornando-se um dos mais importantes escritores latino americanos de todos os tempos. Sua obra prima Pedro Páramo rodou o mundo e foi traduzida para trinta e dois idiomas. E, como afirmam os historiadores literários, serviu de cartilha para grandes escritores contemporâneos.

Dele nasceu o Realismo Mágico latino americano, onde beberam Gabriel García Márquez, Jorge Luís Borges, Julio Cortázar, Juan Carlos Onetti e  Carlos Fuentes, entre outros. E a obsessão de Rulfo pelas releituras e cortes levou suas obras a uma concisão e objetividade tão marcantes como as de Graciliano Ramos no Brasil. É contido no uso de adjetivos e cortou cerca de cem páginas deste trabalho antes de editá-lo. Mas, infelizmente, Rulfo deixou-nos apenas dois livros, este romance Pedro Páramo e a coletânea de contos Chão em Chamas. Duas obras suficientes para enriquecer a literatura tão fortemente que poucos autores contemporâneos o conseguiram igualar, segundo os estudiosos.

O protagonista desta obra é um órfão e chama-se Juan – assim como o autor – em busca de um pai e, a pedido da mãe, sai em busca de suas origens. E o que ele encontra é fantástico, literalmente. E logo de início extasiamo-nos com um texto deslumbrante, onde a leitura prazerosa corre solta em surpresas constantes. Múltiplos personagens inconfundíveis invadem nossa leitura. Um mais rico e surpreendente que o outro, passando como fantasmas.

Seu texto lírico e profundo envolve-nos como num sonho: “Ouvia de vez em quando o som das palavras, e notava a diferença. Porque as palavras que havia ouvido até então, e só então fiquei sabendo, não tinham nenhum som, não soavam; sentiam-se; mas sem som, como as que se ouve durante os sonhos.”

Estamos no mundo dos mortos, embaixo da terra onde eles conversam e reclamam. Outros estão em cima e contam suas histórias. E Rulfo no embalo conta tudo sobre a vida e a morte deles. E nada lúgubre ou fantasmagórico. Apenas um romance em cidade pequena, um povoado, que apesar de morto mantém viva suas memórias. Uma riqueza literária desse estirpe como ainda não havia lido.

Usando das mais primorosas técnicas literárias, Rulfo enleva-nos em sua explosão literária, fugindo dos enredos solenes e lineares, e colocando-nos frente a um palavreado lúdico que obriga-nos a construir com ele o que quisermos para, inescapavelmente, chegarmos ao protagonista do título através dos inúmeros figurantes que seu filho encontra antes de encontrá-lo. Sua narrativa não é um prêt-à-porter. Você precisa ajudá-lo, absorvendo sua criatividade e sentindo o êxtase de suas explanações.

Enfim, um livro para quem realmente aprecia qualidade literária de primeiríssima grandeza. Único e incomparável. Uma obra que celebra a vida através dos mortos. Brilhante!

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins

21.11.2024

Obs: Após a leitura deste livro, recomendo assistir à minissérie do mesmo título na Netflix. Trata-se de outra obra prima, agora, cinematográfica.

Fotos: 1, Capa do livro; 2. A pequena cidade paterna; 3. O filho Juan Preciado: 4. O pai Pedro Páramo; 5. Personagens da obra; 6. o autor Juan Rulfo; 7. A excelente minissérie no Netflix.

18 de dez. de 2024

A Vegetariana brotou do nada e virou uma árvore.

No meu conceito literário, toda obra escrita sobrevive, sobressai e obtém êxito ao coadunar qualidade literária, um bom texto e um ótimo enredo, seja ela um romance histórico ou de ficção ou mesmo um ensaio. E com certeza, meu humilde conceito não se alinha aos da Academia Sueca, outorgante do Prêmio Nobel de Literatura. Dos últimos dez premiados, tenho sérias restrições à qualidade literária dos três mais recentes: a simplória Annie Ernaux, o repetitivo e aborrecido Jon Fosse e, agora, a feminista Han Kang.

Longe de me considerar um expert literário, emito apenas uma opinião pessoal por me reconhecer uma pessoa culta, de bom senso e de bom gosto. E ninguém é obrigado a concordar ou discordar do que penso. Assim, assumo o direito de criticar a Academia, uma vez que ignorou talentos e escritores fabulosos como Liev Tolstói, Marcel Proust, James Joyce, Virginia Woolf, Jorge Luis Borges, Paul Valéry, Philip Roth, Vladimir Nabokov, Mia Couto, Chinua Achebe e Paul Auster, entre outros.

Defendida com toda a energia pelas feministas de plantão, a obra A Vegetariana, da mais recente premiada da Academia, a sul coreana Han Kang, não passa de um livro simples, com um texto chocante, que trata de uma mulher neurótica e radicalmente vegana, que eventualmente é apenas usada por seu marido e pelo cunhado. Assim como acontece em centenas (ou milhares) de outras obras, sem qualquer crítica efetiva da inócua cultura woke.

Li este livro após o êxtase de ler Baumgartner, do incomparável Paul Auster. Talvez este tenha sido o meu erro, pois não foi como descer uma escada, mas como sofrer uma queda violenta. A Vegetariana é construído a partir de personagens perdedores, fracos, com mútua exploração. Talvez seja esse o mérito da obra, o qual não valorizo, principalmente por não conter qualidade literária.

Um boçal escolhe a esposa por não ser atraente e inteligente, para não ter problemas no casamento. A esposa deixa-se dominar por uma paranoia e altera a sua vida e a de todos os que estão ao seu redor, principalmente familiares. A autora explora profundamente esse aspecto, ora em episódios de violência física, ora psicológica. Cenas cruéis e devastadoras, de várias formas, são aqui também exploradas, culminando com abordagens sexuais sui generis e marcantes.

Desespero, angústia e reveses apoderam-se da obra de forma surpreendente e de ótima construção pela autora. E como leitores, participando da obra, impacientamo-nos diante das obsessões dos personagens que rodeiam a poderosa protagonista vegetariana radical. Uma conquista brilhante de Kang, envolvendo-nos sobremaneira neste curto e agoniante romance que lhe valeu, já em 2007, o Man Booker Prize.

Nesta narrativa psicológica, os personagens são negativistas: nunca pensam e refletem sobre o melhor, o positivo. Mas, sempre sobre culpas e atos negativos. E prevalece então a resignação. E tudo nos faz refletir sobre a vida; a nossa vida. Onde perdemos tempo em relacionamentos e reveses ou onde o ganhamos, como prêmios, também em relacionamentos e conquistas. Vivemos ou perdemos tempo e oportunidades na vida? Tudo isso, no crepúsculo da obra – sua terceira parte -, onde a autora consegue trazer-nos uma boa melhora no nível literário.

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins

17.11.204 

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Prato vegetariano; 3. O espancamento do pai; 4. O flagrante do marido; 5. A internação no sanatório; 6. Tornou-se uma árvore; 7. A autora Han Kang.

1 de dez. de 2024

2041 – Como a Inteligência Artificial vai Mudar sua Vida.

A aceitação de novas tecnologias pela sociedade passa inescapavelmente pela sua compreensão e assimilação pelos seus principais difusores, como os responsáveis pelos meios de comunicação através da mídia, do cinema, das artes e das redes sociais, entre outros. Sua má compreensão e difusão incorreta pode causar estragos inimagináveis na utilização das tecnologias, podendo até condená-las.

A Inteligência Artificial (IA) é a bola da vez, já está em nossas vidas e veio para ficar, aceite ou não a sociedade. Mesmo com as limitações das ideologias pré-fabricadas e das narrativas superficiais inconsequentes expondo essa tecnologia como algo maléfico – sob o efeito das crenças sociais embasadas há tempos em mitos e embustes religiosos (como diz Yuval Noah Harari em seu novo best-seller Nexus) -, “os apregoados monstros ou robôs dominadores de mentes,  os criadores de desemprego e os humanos que querem dominar o mundo” nada poderão fazer diante da realidade que se apresenta na atualidade e no futuro.

Há de se considerar, portanto, que embora os humanos não tenham a capacidade da IA de analisar uma enorme quantidade de dados ao mesmo tempo, as pessoas têm uma habilidade única de utilizar experiências, conceitos abstratos e senso comum para tomar decisões, capacidades hoje impossíveis pela IA.

E é disso que trata a obra 2041 – Como a Inteligência Artificial vai mudar sua Vida nas Próximas Décadas, do taiwanês Kai-Fu Lee e do chinês Chen Qiufan, preocupados em difundir de maneira realística, clara e objetiva a verdade sobre essa importante e (hoje) fundamental tecnologia.  Sua estratégia  para que o livro não seja mais um daqueles teóricos pesados e que a assimilação dos conceitos e das utilidades da IA seja natural, foi transmiti-los de forma simples, direta e agradável através de contos.

Existem inúmeros cenários em que a IA pode melhorar profundamente a nossa sociedade, pois tem como uma das principais consequências a geração de riqueza suficiente para ajudar a reduzir a fome e a pobreza no mundo. E com certeza esta é a forma bastante adequada para que até os leigos entendam o que já está acontecendo via IA e o que vem por aí.

A tática de usar contos onde o emprego da IA está presente nos enredos facilita muito a compreensão da tecnologia. Engenhosamente, ao final de cada conto os autores inserem uma análise mostrando como a IA agiu em cada caso e como tecnicamente isso foi possível aplicado aos dias atuais. Comparavelmente, seria o equivalente a ensinar aspectos da ciência a crianças via historinhas em desenhos animados e numa linguagem bastante adequada. Nem por isso os autores deixam de fazer alertas importantes sobre os perigos de você – inconscientemente – ser manipulado.

E a intenção dos autores é proporcionar conhecer de forma correta esta tecnologia que já está mudando o status quo do mundo. E as pessoas precisam ter essa constatação de forma positiva no seu dia-a-dia, uma vez que a IA é irreversível e está aí há alguns anos participando de nossas vidas sem que a reconheçamos ou percebamos obviamente. A grande maioria das pessoas, crianças, jovens e idosos, navegam pelo Facebook e pelos sites da Amazon, por exemplo, sem que saibam como estão sendo observados ou influenciados.

Lee foi vice-presidente da poderosa Google chinesa e um dos principais desenvolvedores da Inteligência Artificial desde sua origem há décadas, e Qiufan é um consagrado escritor de ficção científica moderno. A união dessas duas competências, com profundo conhecimento de seus cabedais, leva-nos a uma obra extremamente leve, fácil e útil para quem tem o interesse e/ou a necessidade de conhecer essa tecnologia – principalmente os jovens - sendo ou não da área de informática.

E ao contrário do que se projeta nas distopias de futuros de fim de mundo e de terra arrasada, os autores nos apresentam as imensas possibilidades de vida e sobrevida com a utilização da IA. Da descoberta de novos fármacos e cura de doenças às novas formas biológicas de se produzir alimentos e combater a fome; da redução de custos na produção e venda de manufaturados à rapidez e eficiência nos serviços domésticos e nos transportes públicos e individuais, entre outras benfeitorias, são e serão o resultado desse novo mundo administrando lógica e celeridade pela IA.

Sim, um novo mundo que daqui a vinte anos mudará completamente a vida de todos e ensejará que as crianças de hoje vivam num mundo real que para nós hoje não passa de ficção científica.

Esta obra deveria ter sua leitura obrigatória nas escolas de nível médio e universitário. Mas como neste país a educação está entregue a um governo e a grupos ideológicos que pouco se interessam pelo futuro (e mesmo pela educação), recomendo a leitura de 2041 – Como a Inteligência Artificial vai mudar sua Vida nas Próximas Décadas para todos aqueles que têm sob sua responsabilidade ou interesse afetivo pessoas próximas e familiares jovens que ainda têm um futuro pela frente.

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins

30.09.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Os canais de mídia; 3. A tecnologia do futuro; 4. Os contos peculiares deste livro; 5. A horta tecnológica; 6. A medicina e a cura via IA; 7. Os serviços domésticos automatizados; 8. O futuro da integração humana e tecnológica; 9. Kai-Fu Lee; 10. Chen Qiufan.

13 de nov. de 2024

Baumgartner, um escritor descrito por um arquiteto.

Há dias que tudo começa conturbado. Algo dá errado, um esquecimento, um acidente e o inesperado, e você prefere não ter levantado da cama, pois não consegue realizar aquilo que precisa. E esse é o primeiro dia do protagonista-título Baumgartner, em mais uma grande obra – e último romance - do consagrado escritor americano Paul Auster.

Dir-se-ia que trata-se de um romance sobre o azar, tamanha a intensidade de coisas erradas sequenciais que recepcionam o leitor, não fosse uma narrativa tremendamente humana, peculiaridade forte nos textos de Auster. Com todo seu talento, ele inicia a obra, por conseguinte, traçando as características atrapalhadas de um viúvo de setenta anos enfrentando imprevistos logo pela manhã.

O texto carrega nas tintas do sofrimento, tudo para untar as páginas que vão receber o sentido luto pela esposa do protagonista. E isso começa pela leitura de um texto autobiográfico dela, que era escritora, como se ela estivesse ali relatando extremamente emocionada à viva-voz. Como ato contínuo, outra tragédia.

Auster descreve, com uma sensibilidade exacerbada, a tortura do luto para um ser extremamente apaixonado. Tudo é muito doído e belo. Emocionante, após quase vinte anos de casamento e dez de solidão. E esse luto é uma forma excepcionalmente criativa encontrada por Auster para celebrar a vida. Assim, escreve “Viver é sentir dor, disse para consigo, e viver com medo da dor é recusar viver.”. E assim, o protagonista desenvolve a teoria – em um livro em elaboração – de que um membro amputado é como a perda da pessoa amada (e vice-versa), pois “ambos estiveram intimamente ligados a um corpo vivo”. 

Então, surge a personagem que o fará afastar-se de seu luto, sem, contudo, cessá-lo: uma segunda companheira de vida, como emblematicamente profetizara a parceira original. Mas, claro, mais um desastre. E num texto magnífico, de simbologia profunda, Auster leva nosso protagonista a retornar a seus textos. Ali, reflexivamente, ele entende ser prisioneiro de si próprio. E que a solidão esfacela sua estrutura, sua condição humana; sua vida. E, com toda a virilidade de um jovem, sente-se velho. E decide, apesar de tudo, libertar-se.

Simultaneamente, tem a percepção de leves sinais de senilidade, ou como prefere encarar, “o princípio do fim”. Doces recordações da infância com a irmã e a adolescência com os amigos, as passagens marcantes em transportes e as recordações históricas com a família, como filmes, projetam-se em sua mente. Chega ao extremo de ir conhecer a terra natal do avô, em mais uma deliciosa representação de Auster, numa provável incursão familiar autobiográfica, dentre outras tantas passagens deste livro. Tudo isso, numa extraordinária análise criativa e expositiva do amadurecimento e da velhice.

Sua escrita é limpa, criativa, musicalmente absorvível, apesar da objetividade. Leve, apesar das inúmeras tragédias e contratempos. E sempre desejosamente romântica. Usa a simbologia de forma precisa, forçando o leitor a reflexões soberbas sobre o protagonista, mas enlaçando-nos e propiciando-nos a possibilidade de refletirmos sobre nós mesmos. Sobre o próprio luto, o amor e a memória. Dentre tantos outros trechos extraordinários, a descrição das deambulações de seu pai para escrever uma carta, bem como o conteúdo da missiva, é uma dos mais exuberantes textos da literatura norte-americana moderna.

Ao ler este Baumgartner de Paul Auster percebe-se claramente que não se trata de assimilar ou saborear apenas uma história, um enredo. A suprema qualidade literária que o autor imprime à obra fará felizes aqueles que apreciam a leitura de altíssima qualidade. Quem assim o faz, dar-se-á por privilegiado de ter um texto dessa magnitude em suas mãos. Um livro de despedida, digno de um arquiteto literário. Absolutamente, o imortal Paul Auster vai nos fazer permanente falta.

Paul Auster faleceu em abril deste ano, aos 77 anos, deixando um legado de mais de 30 livros, com traduções para 40 países. Boa parte da crítica considera-o injustiçado por nunca ter sido lembrado pela Academia Sueca do Prêmio Nobel de Literatura, apesar de sua consagrada obra. Dentre seus trabalhos mais importantes, destaco A trilogia de Nova York, integrada pela quixotesca Cidade de Vidro, em que personagens atravessam a escrita do autor; Fantasmas, no qual cores ditam nomes para os personagens e O Quarto fechado, narrando em torno de um artista que se apropria da criatividade alheia.

Escritor nova-iorquino típico, foi imensamente premiado na Europa – em especial na França -, o que lhe faltou absurdamente em seu próprio país.

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins

22.09.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. A queda na escada; 3. Os sinais da senilidade; 4. O mundo dos livros; 5. A nova companheira; 6. A emocionante carta do pai; 7. Auster em sua biblioteca; 8. O autor Paul Auster.