Felizmente, para a literatura
brasileira e para nós, leitores, uma importante evolução literária de Itamar Vieira Junior pode ser
constatada ao se iniciar a leitura de sua mais recente obra, Salvar
o Fogo, ganhadora como Melhor
Romance Literário do Prêmio Jabuti de 2024. Fato que não me
surpreendeu, uma vez que Itamar já havia conquistado com seu romance de estreia
Torto Arado, nada menos que quatro
premiações: o primeiro Jabuti de sua
carreira (2020), além dos internacionais
Oceanos (20200, Leya (2018)
e Montluc Rèsistance et Liberté
(2024).
Seu texto já antes claro e sucinto,
traz-nos, a princípio, a história de um verdadeiro moleque – indesejado no rico
preâmbulo que principia o livro – refutado por sua irmã tutora. Suas peripécias
na infância e sua pureza bem retratam a instabilidade de muitas pessoas
adultas.
A insegurança infantil em um lar
desintegrado pela pobreza, pela educação capenga, pela falta de liderança
paterna e pela interferência da religião é explorada por Vieira como definidor
da vida e da personalidade dos personagens integrantes dessa família, nas
quais, com certeza, muitos leitores irão se identificar. Fugir da “vidinha
ordinária, rasteira, da penúria” é algo bastante comum, senão corriqueiro, por
este Brasil afora.

Com uma excelente técnica
narrativa, sua obra bem estruturada é muito bem escrita, criativa, com um
enredo simples que dá muitas voltas sem sair do lugar, como num jogo de
tabuleiro mudando apenas as peças de lugar e gerando encantamento. No entanto, o
lirismo e a qualidade literária são excelsos e de uma beleza fluida. O diálogo
quase ilógico, por exemplo, de duas senhoras, uma ex-prostituta e uma devota
auto anulada, é de uma riqueza exuberante. Outro destaque fica por conta da
narrativa, às vezes com viés de realidade mágica, o que enobrece sobremaneira
sua qualidade literária.
Juntando os pedaços de uma
família ao redor de um leito de um hospital humilde, Vieira constrói um mosaico
de emoções dos personagens, poucas vezes encontrado em nossa literatura. Assim,
introduziu na narrativa a terceira protagonista, nada menos que o liame ao seu
primeiro livro, com uma incrível história.
A escancarada crítica à religião
e suas regras retrógradas se faz permanente ao longo do texto. Personagens extremamente
religiosos criticam – e põem em dúvida – atitudes dos monges, seus costumes,
suas cobranças e seus sermões. Também não escapam de sua condenação os abusos
dos poderosos sobre os humildes e necessitados, os preconceitos gratuitos e as
superstições; igualmente os políticos ordinários são expostos. Tudo numa severa
denúncia originária dos abusos colonialistas principalmente aos índios e aos
escravos, entranhados inexoravelmente em nossa história.

Portanto, a injustiça social,
para não falar na divina - uma vez que o caos, a corrupção e a violência são
frutos do Homem, mesmo os sagrados-, faz-se presente com muita força,
representando o protesto e a denúncia que marcam intencionalmente as obras do
autor. E, segundo ele, este é o segundo livro de uma trilogia (iniciada com Torto Arado) sobre os que vivem da
terra, sempre ligando seus personagens como Maria Cabocla e Bibiana, colocando,
assim, ênfase e força nas figuras femininas.
Além das denúncias e protestos
velados, cumprindo a saga da miséria na literatura nordestina brasileira, de
Rachel a Amado, de Cabral a Suassuna, passando por Graciliano, o contemporâneo
Vieira faz jus e honra até Castro Alves e Aluisio Azevedo com sua obra em
contínua evolução. Bons ventos o trouxeram e outros tantos espalharão sua obra para que
todos a conheçam. Que assim seja!
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Valdemir Martins
14.12.2024
Fotos: 1. Capa do livro; 2. Moleque brincando no rio Paraguaçu (BA); 3. Lateral do mosteiro da vila; 4. O rio e a floresta; 5. A irmã tutora Luzia lavando no rio; 6. As ruinas do mosteiro; 7. Torto Arado, o primeiro livro da trilogia; 8. O autor Itamar Vieira Junior.
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