Pesquisar este blog

12 de jan. de 2019

A loucura onde menos se espera.


Uma das causas dos baixíssimos índices de leitura da população brasileira é o erro fundamental de impor títulos, autores e gêneros às crianças iniciantes em leitura principalmente nas escolas. Não vou entrar aqui no mérito das obras, mas todos sabem – ou tem ainda uma ideia – do que se obrigam os alunos a ler.

Para mim, o método ideal seria o do critério de escolha da própria criança dando-lhes sim alternativas de escolha. Enquanto minha professora me obrigava a ler Senhora, de José de Alencar e Dom Casmurro, de Machado de Assis, minhas leituras favoritas perambulavam entre Tarzan, de Edgar Rice Burroughs, A Cabana do Pai Thomaz, de Harriet Beecher Stowe, Bom dia, Tristeza, de Françoise Sagan, O Cortiço, de Aluísio Azevedo e A Carne, de Júlio Ribeiro. Hoje leio com prazer o Memorial de Aires, do Machado, e estou achando excelente.

Ou seja, o fundamental para a leitura é a descoberta do prazer de ler. Com certeza, muitas pessoas que não gostam de ler nunca tiveram a oportunidade de ter em mãos ou diante dos olhos um livro que pudesse lhes dar prazer, seja pelo texto, seja pelo assunto ou a história.

Hoje por exemplo, aos 70 anos, vivo descobrindo leituras prazerosas. A surpresa mais recente deu-se com a obra Os Loucos da Rua Mazur, do premiado escritor português João Pinto Coelho. Sua grande qualidade é a construção do texto e a linguagem realista e fluente onde coloca-nos trechos enigmáticos, ironias precisas e preciosas, assim como a convivência de protagonistas e personagens díspares que enriquecem sobejamente a obra.

Polônia dividida em 1939

Mas seu estilo vigoroso e único lembra-nos em alguns aspectos e na qualidade seus compatrícios José Saramago e Walter Hugo Mãe. Senão, veja: “E depois havia Dreide, a louca. Ninguém lhe sabia pai, mãe ou nação. Chegara acompanhada por um cigano, duas mulas e uma miúda nas entranhas. O cigano desaparecera, levara uma das mulas e ficaram as três. Desde então, fixara-se ali, chegada ao vilarejo, mas ainda na floresta, por cautela.”.


Consegue colocar-nos em meio a cenas pesadas, como a descrição sucinta e precisa, meticulosa e eficaz, do búnquer onde lutam personagens, levando-nos a sentir com exatidão o clima ambiente com todos os seus fedores repugnantes e a lama e fezes grudando em nossos pés. Descreve com realismo absoluto as cenas, os locais e as reações, coadunantes ou não, numa atmosfera tétrica como: “Depois passou o cabo Marek; já sem chorar ou rezar, agarrava contra o peito uma mão decepada na esperança de que fosse a sua; logo atrás, amparado por dois companheiros, um rapazinho. Erik fixou-lhe mais os olhos esbugalhados do que as tripas que abraçava, aparvalhado.”

A obra desenvolve-se frenética proporcionando-nos protagonistas que são simultaneamente autores e personagens. São basicamente dois livros em um, ambos regados intermitentemente à prosa poética, história, religião, amor e paixão. A narrativa da primeira relação sexual de um adolescente cego é brilhantemente sublime e poética.

Cidade de Jedwabne inspirou a obra
A ajustada trama da tolerante e até pacata convivência entre judeus e cristãos num vilarejo à nordeste da Polônia só é desconjuntada, juntamente com a cidade, pelos sinistros bolcheviques soviéticos e sua cega obediência e ignorante idolatria ao líder genocida Stálin (efetivamente e fora do romance, os bolcheviques, como uma praga, destruíram tudo por onde passaram ao longo da história). A partir daí e sem a interferência dos nazis, instala-se o tétrico. E o livro transforma-se numa obra-prima do terror, com pessoas comuns promovendo - num rompante de ignorância, intolerância e crendice - um fratricídio que jamais sairá da mente dos leitores. Pinto Coelho, como já o fizera em todo o texto, prima, então, de forma descomunal nos detalhes. E como descrito na capa do livro da edição brasileira: “Na Polônia ocupada por soviéticos e alemães, o horror vem de quem menos se espera.”.

João Pinto Coelho
Um livro arrebatador, Prêmio Leya de 2017, pouco divulgado e de incomensurável valor literário para a língua portuguesa, seja pelo enredo e escrita, quer por sua estruturação e pela capacidade de fabulação de João Pinto Coelho.

Valdemir Martins
12/01/2019.

Os Loucos da Rua Mazur  - Romance português de João Pinto Coelho - Editora Casa da Palavra – Rio de Janeiro, 2018.

*** Se você gostou deste comentário, siga-nos. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito do blog. Muito obrigado!

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Agradeço seu comentário e participação!