Uma das causas dos baixíssimos índices de leitura da
população brasileira é o erro fundamental de impor títulos, autores e gêneros
às crianças iniciantes em leitura principalmente nas escolas. Não vou entrar
aqui no mérito das obras, mas todos sabem – ou tem ainda uma ideia – do que se obrigam
os alunos a ler.
Para mim, o método ideal seria o do critério de escolha da
própria criança dando-lhes sim alternativas de escolha. Enquanto minha
professora me obrigava a ler Senhora,
de José de Alencar e Dom Casmurro, de
Machado de Assis, minhas leituras favoritas perambulavam entre Tarzan, de Edgar Rice Burroughs, A Cabana do Pai Thomaz, de Harriet
Beecher Stowe, Bom dia, Tristeza, de Françoise Sagan, O Cortiço, de Aluísio Azevedo e A Carne, de Júlio Ribeiro. Hoje leio com
prazer o Memorial de Aires, do
Machado, e estou achando excelente.
Ou seja, o fundamental para a leitura é a descoberta do
prazer de ler. Com certeza, muitas pessoas que não gostam de ler nunca tiveram
a oportunidade de ter em mãos ou diante dos olhos um livro que pudesse lhes dar
prazer, seja pelo texto, seja pelo assunto ou a história.
Hoje por exemplo, aos 70 anos, vivo descobrindo leituras
prazerosas. A surpresa mais recente deu-se com a obra Os Loucos da Rua Mazur, do premiado escritor português João Pinto
Coelho. Sua grande qualidade é a construção do texto e a linguagem realista e
fluente onde coloca-nos trechos enigmáticos, ironias precisas e preciosas,
assim como a convivência de protagonistas e personagens díspares que enriquecem
sobejamente a obra.
Polônia dividida em 1939 |
Mas seu estilo vigoroso e único lembra-nos em alguns aspectos
e na qualidade seus compatrícios José Saramago e Walter Hugo Mãe. Senão, veja:
“E depois havia Dreide, a louca. Ninguém lhe sabia pai, mãe ou nação. Chegara
acompanhada por um cigano, duas mulas e uma miúda nas entranhas. O cigano
desaparecera, levara uma das mulas e ficaram as três. Desde então, fixara-se
ali, chegada ao vilarejo, mas ainda na floresta, por cautela.”.
Consegue colocar-nos em meio a cenas pesadas, como a
descrição sucinta e precisa, meticulosa e eficaz, do búnquer onde lutam
personagens, levando-nos a sentir com exatidão o clima ambiente com todos os
seus fedores repugnantes e a lama e fezes grudando em nossos pés. Descreve com
realismo absoluto as cenas, os locais e as reações, coadunantes ou não, numa
atmosfera tétrica como: “Depois passou o cabo Marek; já sem chorar ou rezar,
agarrava contra o peito uma mão decepada na esperança de que fosse a sua; logo
atrás, amparado por dois companheiros, um rapazinho. Erik fixou-lhe mais os
olhos esbugalhados do que as tripas que abraçava, aparvalhado.”
A obra desenvolve-se frenética proporcionando-nos
protagonistas que são simultaneamente autores e personagens. São basicamente
dois livros em um, ambos regados intermitentemente à prosa poética, história,
religião, amor e paixão. A narrativa da primeira relação sexual de um
adolescente cego é brilhantemente sublime e poética.
Cidade de Jedwabne inspirou a obra |
A ajustada trama da tolerante e até pacata convivência entre
judeus e cristãos num vilarejo à nordeste da Polônia só é desconjuntada,
juntamente com a cidade, pelos sinistros bolcheviques soviéticos e sua cega
obediência e ignorante idolatria ao líder genocida Stálin (efetivamente e fora
do romance, os bolcheviques, como uma praga, destruíram tudo por onde passaram
ao longo da história). A partir daí e sem a interferência dos nazis, instala-se
o tétrico. E o livro transforma-se numa obra-prima do terror, com pessoas comuns
promovendo - num rompante de ignorância, intolerância e crendice - um fratricídio
que jamais sairá da mente dos leitores. Pinto Coelho, como já o fizera em todo
o texto, prima, então, de forma descomunal nos detalhes. E como descrito na
capa do livro da edição brasileira: “Na Polônia ocupada por soviéticos e
alemães, o horror vem de quem menos se espera.”.
João Pinto Coelho |
Um livro arrebatador, Prêmio Leya de 2017, pouco divulgado e
de incomensurável valor literário para a língua portuguesa, seja pelo enredo e
escrita, quer por sua estruturação e pela capacidade de fabulação de João Pinto
Coelho.
Valdemir Martins
12/01/2019.
Os Loucos da Rua Mazur - Romance português de João Pinto Coelho - Editora
Casa da Palavra – Rio de Janeiro, 2018.
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