Pesquisar este blog

28 de jun. de 2020

A perda de um paraíso que nunca existiu. *****


Charles Darwin, o ícone da ciência evolutiva, cravou há mais de dois séculos que “o paraíso não havia sido perdido”, uma vez que nunca existira. Corroborando essa teoria, o contemporâneo e respeitadíssimo historiador, crítico literário, professor e pesquisador da Universidade de Harvard, Stephen Greenblatt, escreveu este desconcertante “Ascensão e Queda de Adão e Eva”.

O Pecado Original
Vencedor dos Prêmios National Books Award (2011) e Pulitzer (2012), ambos de “Não Ficção” e conhecido no meio cultural, científico, acadêmico e teológico por seus inúmeros, polêmicos e preciosos livros, Greenblatt tem o grande mérito da profunda pesquisa para desenvolver e comprovar suas teses. Debruçando-se com afinco nas tábulas de argila da civilização babilônica, elaboradas em média em 1800 antes da era cristã e descobertas no século XIX em escavações de um templo de Nínive, capital do antigo império assírio (hoje Irã), ele contesta enfaticamente o Gênesis das bíblias judaica e cristã.

A Criação
E assim, leva de roldão as histórias do Paraíso ou Jardim do Éden com Adão e Eva a bordo; o Dilúvio, afogando Noé e os animais num mar de provas científicas; e, para encurtar, as científica e naturalmente impossíveis personagens com mais de 900 anos de vida.

A Expulsão
Voltando às tábulas de argila babilônicas, ele descobre que um dilúvio, igual ao de Noé com barco salvador e tudo o mais, foi causado pelo deus babilônio mais de dezoito séculos antes da era cristã e, portanto, em documentos muito anteriores e bem mais antigos do que a data em que Moisés teria recebido as tábulas da Torá no monte Sinai.

As tábulas assírias
Para o assiriologista britânico Georges Smith, o decifrador das tábulas, ficou claro que a narrativa hebraica das origens não era única de sua espécie. “O Gênesis era, evidentemente, uma resposta ao que os cativos hebreus tinham escutado vezes sem conta – dos babilônios - enquanto sentavam e choravam seu cativeiro junto aos rios Tibre e Eufrates. Comprovadamente os hebreus estavam decididos a se distinguir, desde a aurora dos tempos, dos seus ex-captores.” Assim, constituíram sua escritura religiosa hebraica à sombra das místicas babilônicas juntadas à sua história, plagiada posteriormente pelos cristãos como seu Velho Testamento.

A região de Nínive
Na sequência, Greenblatt contesta e desmonta, de maneira enfática, empírica e severa, Santo Agostinho, o maior defensor dos Gêneses bíblicos, apenas cruzando os textos de Confissões, obra máxima do religioso, com sua biografia pregressa. Surpreendente observar que um beato defensor do contrato de casamento apenas para procriação tenha vivido treze anos em concubinato libidinoso com uma mulher da qual nem cita o nome e com a qual teve um filho indesejado, exatamente como condenava.

Agostinho tornou-se um maniqueísta, sistema religioso cristão persa que considerava Jesus como um avatar da luz em oposição ao senhor das trevas e não como Filho de Deus. Os maniqueus não aceitavam as escrituras hebraicas e escarneciam dos capítulos iniciais do Gênesis, os mesmos ferrenhamente defendidos posteriormente pelo incongruente Agostinho.

Santo Agostinho
Em sua última crença, Agostinho radicaliza despejando em Eva a culpa por todos os pecados da humanidade, originadas pelo “pecado capital” perpetuado por Adão, vítima de sua parceira, e o transforma, em seus escritos e pregações, no episódio central do drama da existência humana. Para ele, por ser Deus justiçoso, o pecado original tem como extensão toda a perversidade humana e todas as desgraças como crimes horrendos, os horrores da tirania e das guerras, terremotos, incêndios, inundações, “não passam de punições distribuídas por um Deus justo”. A isso, Greenblatt rebate com a pergunta: “Poderia alguém afirmar que um doce bebê acometido de uma doença degenerativa esteja apenas recebendo a punição que mereceu?”.

E o que dizer dos milhares de crianças que morrem de fome na África e no Oriente Médio e que não são judias nem cristãs? Segundo Agostinho “para Deus ninguém é livre do pecado (...), nem o recém-nascido” (Confissões 1.7).

Responsável pela difamação de Eva como a origem de todos os pecados (segundo Agostinho), a condição da mulher, ao longo da história, passou a ser a de um ente inferior e sempre subjugado, até no Islamismo – como se comprova em seus costumes – pois Adão e Eva também estão presentes no Alcorão.

São Jerônimo
Para (São) Jerônimo, no século IV, “não foi Adão que foi enganado, mas a mulher que, seduzida, caiu em transgressão”, conceito repetido vezes sem conta ao longo dos séculos. Foi incutido em criancinhas, invocado sempre que o equilíbrio de poder do marido se via ameaçado e lançado contra mulheres inteligentes e articuladas que pareciam não conhecer o seu lugar.

Diante do obscurantismo da Idade Média, esse conceito negativo sobre a mulher e sua origem em Eva tomou corpo e até o filósofo Tomás de Aquino chegou ao extremo de afirmar: “para viverem juntos e fazer companhia um ao outro, dois amigos juntos são melhores que um homem e uma mulher”. Tudo com o lastro da forte e sanguinária Inquisição Católica, cujos troféus máximos eram extirpar nas fogueiras a bruxaria praticada pelas mulheres e caçar os judeus que causaram sofrimento a Maria.

Dictionaire de Bayle
O primeiro desmonte público – apesar de dissimulado – das ditas fábulas do Paraíso foi lançado pelo filósofo protestante francês Pierre Bayle, em sua obra Dictionaire Historique et Critique lançada em 1697, no crepúsculo do século 17, na sombra de sua proclamação de que “uma Igreja cristã que procurava obter uniformidade mediante instrumentos de tortura e fogueira, violava a própria essência do evangelho”. Os personagens Adão e Eva aparecem em inúmeros verbetes e notas de rodapé sempre sob o olhar cético e destruidor de Bayle.

Seu Dictionaire – trinta anos após a publicação do maior poema de louvor ao Gênesis (Paraíso Perdido, do inglês John Milton) - jogava na lata de lixo lendas que pouco a pouco haviam sido adicionadas à narrativa do Gênesis ao longo de mais de mil anos. A exemplo deste pensador francês, Voltaire, mais adiante em 1764, publicava seu Dicionário Filosófico com diversos verbetes destrutivos sobre o casal pecaminoso do Paraíso. E antes de finalizar esta brilhante obra, o autor não deixa de demonstrar a incompatibilidade do darwinismo com a crença em Deus, que com certeza é incompatível com a crença em Adão e Eva.

O grupo de chimpanzés
Saindo das lendas e ficções da religiosidade e das desconstruções filosóficas, Greenblat leva-nos ao epílogo desta obra analisando as semelhanças humanas com os chimpanzés sob a luz da ciência e do evolucionismo. Pondera uma eventual vida dos símios num paraíso e quais seriam suas reações mediante a nudez, ao conhecimento e demais itens importantes nos argumentos paraisionistas.

E após uma demorada e detalhada observação de um grupo completo de chimpanzés (crianças, jovens, adultos e velhos) em seu habitat natural, junto com outros cientistas, notaram que eles possibilitaram ver como seria viver sem o conhecimento do bem e do mal, da mesma forma como vivem sem sentir vergonha e sem saber que estão destinados a morrer. E conclui: “Eles ainda estão no Paraíso.”. Mas isso acontece porque formamos nossa ideia do Paraíso a partir de noções oriundas do nosso conhecimento do bem e do mal. “Nós já caímos; eles, não.”.

Stephen Greenblatt
Assim, como o mito de Adão e Eva está no cerne da nossa formação religiosa e cultural, deixando suas marcas através dos séculos, de vários pontos de vista – psicológico, artístico, teológico -, a trágica fábula determinou o modo como lidamos com o amor e a morte, a culpa e o desejo, e moldou de forma definitiva nosso destino.

Ascensão e Queda de Adão e Eva, apesar de tratar de um assunto tão sério, é uma obra eletrizante de fácil leitura e compreensão, passível de ser contestada somente por outros cientistas e estudiosos isentos, mas jamais por religiosos, por razões óbvias de defesa dos pilares das principais crenças religiosas dominantes.

Valdemir Martins
25.06.2020

*** Se você gostou deste comentário, siga-nos. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito do blog. Muito obrigado!

23 de jun. de 2020

A assustadora e reveladora batalha de Londres ****


Londres em 1854
Em meados do século XIX, a cidade de Londres era a mais populosa do mundo, concentrando, só no distrito de Berwick, 108 habitantes por km², enquanto, por exemplo, Manhattan abriga hoje algo em torno de 25 habitantes por km². A quantidade de dejetos humanos concentrados no espaço metropolitano infligia a Londres uma fedentina sem par, uma vez que a maioria das fezes era apenas recolhida pelos chamados catadores, que as vendiam para fertilizar as hortas e pomares das redondezas. Não havia sistema de esgoto e os penicos cheios eram despejados pelas janelas.

Broad Street onde tudo começou
Este é apenas um dos assuntos de que trata o livro O Mapa Fantasma, de Steven Johnson, escritor de ciência norte americano que transformou um episódio da história da ciência numa narrativa eletrizante, demonstrando como a luta de dois homens contra o cólera mudou o destino de nossas metrópoles. No mundo de hoje, com desinfetantes específicos, medicamentos adequados, sistemas de canalização e tratamento de esgoto e, enfim, com saneamento básico, não se tem a menor noção do que eram, há pouco mais de um século e meio, as condições de insalubridade até dos mais nobres em todo o mundo.

A bomba d'água maligna
Este livro, nesta época de pandemia do Coronavírus, torna-se uma leitura bastante interessante para demonstrar, de forma dramática e eficiente, como um vírus ou qualquer bactéria contamina com facilidade a população e a importância da prevenção e controle. Nele é demonstrado, por exemplo, a importância das bactérias e que, diferentemente dos vírus, sem elas não haveria vida neste planeta. Igualmente, Johnson explora o assunto e alerta para o risco de pandemia a partir da evolução e adaptação do vírus A1N5 (gripe aviária) no ser humano, o que provavelmente aconteceu com o aparecimento do Covid-19.

Mapa pioneiro de Snow no jornal
Dr. John Snow
Voltando a Londres, um dia em agosto de 1854, no populoso Soho, uma bebê de seis meses começa a vomitar e evacuar fezes líquidas e esverdeadas. Sua mãe, seguindo as normas de higiene da época, lavava suas fraldas e panos num balde e depois despejava seu conteúdo pestilento (com Cólera) numa fossa que desaguava no Tâmisa, rio que cruza a parte mais populosa da cidade e em cujas margens trabalhavam catadores de ossos, de fezes, de ostras, junta-trapos, lameiros, exploradores de esgotos, lixeiros, limpadores de fossa, cata-velas, cata-bagulhos entre outros. Mas o rio famoso também abastecia a cidade de água “potável” e o contágio pelo vírus do Cólera foi inevitável, provocando a maior epidemia de todos os tempos.

Esgoto pioneiro de Londres
A partir desse episódio, a narrativa nos leva à descoberta do tratamento inicial do Cólera e à obrigação do governo britânico de desenvolver um sistema de esgoto para a cidade, que hoje serve de modelo tanto para as metrópoles como para as pequenas cidades pelo mundo.
Stephen Johnson


E nessa balada, com ritmo, sarcasmo e inúmeras comparações com situações da atualidade, o autor nos proporciona diversas e agradáveis informações sobre nossa evolução social, científica e tecnológica, numa linguagem coloquial muito envolvente. Traz, inclusive, dados históricos muito interessantes, como, por exemplo, o fato de a Rainha Victoria ter exigido que o parto do seu quarto filho fosse indolor, usando as técnicas do Dr. John Snow – não o da série Game of Thrones –, mas o descobridor do clorofórmio como anestésico e das origens do Cólera.  Impossível não refletir sobre nosso passado, nosso tempo e nossa vida durante a agradável leitura desta obra.

Valdemir Martins
08.06.2020