Leitores
ansiosos e impacientes não devem ler O Terror, primeiro livro do premiado
escritor estadunidense de ficção científica e terror Dan Simmons lançado no Brasil. Trata-se de uma caudalosa obra de
aventura histórica, baseada em fatos reais, entremeada de uma aterradora
fantasia, especialidade de Simmons.
E
não há como escapar: para relatar a torturante e perigosa viagem histórica do
capitão inglês Sir John Franklin, em 1845, à
procura da cobiçada Passagem Noroeste, que liga os oceanos Atlântico e Pacífico
através do Círculo Polar Ártico, há a necessidade de detalhes. E eles são
fundamentais para se entender o que deu certo e errado nesta famosa peripécia
oficial da Real Marinha Britânica há quase dois séculos.
Entre o certo e o errado, acontece o pior: um ser tenebroso
passa a fazer parte dos personagens e intromete-se no enredo, tornando tudo
muitas vezes pior do que poderia ser. Isto, numa região inóspita, enregelante, extremamente
mutante, onde nem a bússola funciona por estarem quase diretamente sobre o polo
magnético, no extremo norte do Canadá. Assim, para o leitor não ficar tão
desorientado quanto a tripulação, recomendo abrir o mapa da região na internet
e ilustrar-se dos locais de agruras dessa gente. Vale a pena.
Para reconstituir essa história, Simmons enreda-nos numa
atmosfera sufocante, congelante e muito, muito escura e obscura, numa época de
tecnologia e medicina muito elementares e limitadas. A aflição é permanente. O
leitor participa como ouvinte incrédulo das conversas, relatos e reuniões dos
comandantes e oficiais das duas reforçadas embarcações Erebus e Terror, as mais
fortes para enfrentar o gelo glacial e munidas com os equipamentos mais
modernos da época.
O trabalho de pesquisa histórica, geográfica e científica de
Simmons é brilhante, reinventando de maneira original uma das mais sedutoras
histórias da exploração marítima no século XIX. Conduz-nos à fascinante
narrativa quase lendária do Sir John Franklin, num crescente de suspense,
incredulidade e terror. Pela permanente condição de ambiente e situações
inóspitas, essa incredulidade é permanente, principalmente para nós de um mundo
de tecnologia que se renova a cada hora e por não conhecermos uma atmosfera
extremamente gélida como a deste livro.
Simmons não escreve tão bem quanto Jules Verne, mas esta aventura nada deixa a desejar às do
consagrado escritor francês, reforçadas pela persistente névoa de terror que
envolve o texto. O autor é hábil ao estruturar o enredo, partindo de uma
história real documentada em registros oficiais da Marinha Real Britânica e dos
diversos diários dos oficiais da expedição. Retrospectivas e belos momentos de
recordações, além da fantasia, descontraem e iluminam o que poderia ser um
chato relato de viagem. É um incrível livro de aventuras que, superados os 5%
mais pesados e iniciais do texto, quem gosta do gênero não consegue largar a
leitura.
Porém, próximo à metade do livro, um capitão, em sua condição
de abstinência, entra em delirium tremens,
com uma sequência aborrecida de visões, desestimulando até a continuidade da
leitura. Mas não se engane. A partir daí a obra recrudesce e entra num ritmo
alucinante, descortinando efetivamente o terror e o desespero, dominando o
leitor com narrativas sufocantes, escatológicas, enregelantes e, enfim,
insuperáveis em sua constância de crueldade. Realmente, um livro para fortes.
Depois de muita escuridão ao longo do livro, Simmons
brinda-nos com uma linda lenda esquimó, trazendo luz, então, a toda a escuridão
que atravessamos na leitura. E um final deslumbrante como uma aurora boreal.
O livro
gerou a antológica minissérie
de televisão The Terror,
do Ridley Scott, que estreou nos Estados Unidos e
no Canadá em 2018. No Brasil, pode ser vista no streaming Amazon Prime. Mas, não recomendo a série por ser
extremamente condensada, perdendo detalhes riquíssimos do livro e desvirtuando
seu enredo. Seu final óbvio, diferente do livro, foi elaborado para pessoas
extremamente racionais, sem a beleza que a sensibilidade dos leitores pode
desfrutar com o ápice da obra escrita.
Valdemir Martins
03. FEV. 2021
Fotos: 1. Capa do livro; 2. Local da tragédia; 3. O navio Terror encalhado; 4. Capitão irlandês Francis Crozier; 5. A esquimó Silna; 6. Barco salva-vidas com sobreviventes; 7. O autor Dan Simmons.
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