Pense em como você escreveria uma carta para a sua mãe, viva
ou falecida, relembrando a vida em comum, o cotidiano compartilhado, as companhias, os momentos ruins e os bons. Como seria? Ah, e não esqueça que sua
mãe não sabe ler.
Aqui,
neste caso, teria que dosar sua escrita com boas porções poéticas. Pois estou
falando do inebriante romance epistolar do poeta vietnamita-americano Ocean Vuong, em sua obra de estreia
como romancista Sobre a Terra Somos Belos por um Instante. Este é o mais
recente lançamento da Editora Rocco, celebrado vigorosamente pela crítica
internacional, principalmente a norte-americana. E você só vai entender esse
título após concluir a leitura da obra.
Uma leitura prazerosa que nos faz lembrar, em certas passagens,
situações similares ou próximas de algumas que também vivenciamos com nossa
família. Mas, certamente, não as escreveríamos em qualquer carta. Mas Vuong,
num trabalho autobiográfico, consegue valorizá-las entremeando passado e
presente, num misto de narrativa literária com carta-narrativa. Traz à luz
vidas diferenciadas, de mundos díspares, e coloca em cheque como
podemos curar e resgatar uns aos outros sem deixar de ser o que somos.
Seu texto é esplendoroso. Sem contestações: “Acordo com o som
de um animal aflito. O quarto tão escuro que nem sei dizer se meus olhos estão
abertos. Uma brisa passa pela janela rachada, e com ela entra a noite de
agosto. ...Eu me equilibro no ar negro e vou rumo ao corredor.”
Sua crítica social é suave, ao tempo que ferina e realista,
principalmente no contexto da Guerra do Vietnã, seus sobreviventes e interação
com os jovens soldados americanos, quase meninos, e a vida de imigrantes na
América. Trata do preconceito racial e religioso ao relembrar para a mãe suas
passagens como “invisíveis” aos olhos americanos por não falarem o inglês corretamente.
Versa sobre perdas; perdas terríveis. Sobre aprendizados e conquistas, lentas,
suaves e profundas.
Passagens magistrais serão inesquecíveis, como o trabalho de
manicure numa senhora amputada, ou o porquê crianças vietnamitas são chamadas por
nomes terríveis. Ou, ainda, a importância da palavra “desculpe”. E alguém se encontrando
e encontrando alguém numa fazenda de tabaco. Ou, emocionantemente, a volta de um
feto num sonho.
De forma bastante criativa, de repente Vuong narra um fato
diferente, estranho ao assunto que vinha abordando e, num jogo de palavras em
transição, vai desvendar a dessemelhança numa ligação de história inesperada.
Uma técnica literária difícil e rara, mas extremamente encantadora. Assim como
ele trabalha os jogos de palavras como trocadilhos de ideias que se completam.
Literariamente brilhantes, pois este é um livro para as pessoas sensíveis ou dispostas a sê-lo.
Em mais uma incrível sacada, no terço final da obra, para nos
fazer crer que o texto foi escrito por um drogado, vários trechos parecem-nos incompreensíveis, como se resultasse realmente da escrita elaborada sob o
efeito de narcóticos. Se assim não for. Apesar de o sexo ser tratado com
poesia, transmuta-se em algo que poderia ser violento, mas é apenas colocado
aqui como algo verdadeiro e fortuito. Descrições explícitas de atos em exageros
de detalhes – até escatológicos - maculam a obra apenas por destoar de seu
contexto geral.
Assim, como num grande poema, sua especialidade, Ocean Vuong,
a grande revelação literária americana, brinda-nos com um pequeno compêndio de
contos de sobrevivência sempre dos mesmos personagens. A sobrevivência no
cotidiano. Os destroços e os resumos de um sonho.
Exatamente isso. Sobre a terra somos belos por um instante. Uma obra diferente, encantadora. Nos limites da linguagem.
Valdemir Martins
18.04.2021
Fotos: 1. Capa do livro; 2. Fugitivos do Vietnã; 3. Fazenda de tabaco; 4. Preparo de heroína; 5. Búfalos em queda; 6. O autor Ocean Vuong.
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