Muito provavelmente você jamais colocaria nomes como
Barrabás, Zebedeu ou Gestas em seus filhos, pelas evidentes conotações
maléficas oriundas da Bíblia. E é um nome precito como esses que traz à baila o
contexto do excelente livro Véspera, da talentosa escritora
mineira Carla Madeira, segundo autor
brasileiro mais lido em 2021.
Num texto envolventemente criativo, Madeira joga com
ideias e palavras de forma magistral num enredo narrado em dois tempos, em meio
ao alcoolismo, ao radicalismo e temor religiosos e ao forte e pavoroso
sentimento de perda em todos os personagens.
A autora coloca em pauta questões religiosas polêmicas,
demonstrando a força da religião no caráter das pessoas, com personagens fragilizadas
por supostos sacrilégios -tornando-se inseguras e indecisas perante a vida - e
até um sacerdote querendo provar que Deus pode ser violento.
Neste conturbado romance, Madeira expõe uma família infeliz
que atravessa uma tragédia urbana, no melhor estilo grego, cujos membros, numa
disputadíssima prova de revezamento por protagonismo, brilham em suas
respectivas performances e tornam-se personagens inesquecíveis do romance
brasileiro.
Uma obra que destaca, além dos chamados desígnios de Deus, o
livre arbítrio humano e sua capacidade – ou não – de tomar decisões e impor
atitudes. O ser humano precisa, para sua sobrevivência e para viver em
sociedade, constantemente tomar decisões.
O
que comer, o que vestir, que nome dar aos filhos, quanto gastar, dar um
presente, escolher amigos, fazer uma reclamação, que curso fazer, que programa
assistir, que livro ler, hora do banho, e por aí vai. Intermitentemente e
eternamente decidindo. E é disto que a mineira Madeira trata dramaticamente neste
livro, demostrando de maneira romanceada, com muita criatividade e num texto
deslumbrante, o cotidiano de uma família desestruturada desde suas origens.
Uma decisão errada, uma atitude titubeante, um olhar
distraído e pronto, pode-se mudar uma ou várias vidas. Usando esse subterfúgio,
a autora explora a complexidade e a diversidade da família na linha central desta
sua obra. Consegue levar-nos a uma viagem com todos os tipos de emoções, desde
tensão e suspense a leves traços de humor e de familiaridade com personagens e situações.
Carla Madeira é sem dúvida uma das melhores escritoras
brasileiras contemporâneas, infelizmente ainda sem o devido reconhecimento do
público, e somente recuperada graças à visão literária (e comercial, claro) da
Editora Record. Carla lançou seu primeiro livro, “Tudo é Rio”, em 2014 pela Editora
Quixote, o qual, apesar do sucesso de crítica, não decolou. Fica a nossa forte recomendação.
Valdemir Martins
15.04.2022
Fotos: 1. Capa do livro; 2. Caim e Abel; 3. A loja de ferragens; 4. Matemática; 5. Fazendo tricô; 6. Carla Madeira
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