Pesquisar este blog

1 de dez. de 2024

2041 – Como a Inteligência Artificial vai Mudar sua Vida.

A aceitação de novas tecnologias pela sociedade passa inescapavelmente pela sua compreensão e assimilação pelos seus principais difusores, como os responsáveis pelos meios de comunicação através da mídia, do cinema, das artes e das redes sociais, entre outros. Sua má compreensão e difusão incorreta pode causar estragos inimagináveis na utilização das tecnologias, podendo até condená-las.

A Inteligência Artificial (IA) é a bola da vez, já está em nossas vidas e veio para ficar, aceite ou não a sociedade. Mesmo com as limitações das ideologias pré-fabricadas e das narrativas superficiais inconsequentes expondo essa tecnologia como algo maléfico – sob o efeito das crenças sociais embasadas há tempos em mitos e embustes religiosos (como diz Yuval Noah Harari em seu novo best-seller Nexus) -, “os apregoados monstros ou robôs dominadores de mentes,  os criadores de desemprego e os humanos que querem dominar o mundo” nada poderão fazer diante da realidade que se apresenta na atualidade e no futuro.

Há de se considerar, portanto, que embora os humanos não tenham a capacidade da IA de analisar uma enorme quantidade de dados ao mesmo tempo, as pessoas têm uma habilidade única de utilizar experiências, conceitos abstratos e senso comum para tomar decisões, capacidades hoje impossíveis pela IA.

E é disso que trata a obra 2041 – Como a Inteligência Artificial vai mudar sua Vida nas Próximas Décadas, do taiwanês Kai-Fu Lee e do chinês Chen Qiufan, preocupados em difundir de maneira realística, clara e objetiva a verdade sobre essa importante e (hoje) fundamental tecnologia.  Sua estratégia  para que o livro não seja mais um daqueles teóricos pesados e que a assimilação dos conceitos e das utilidades da IA seja natural, foi transmiti-los de forma simples, direta e agradável através de contos.

Existem inúmeros cenários em que a IA pode melhorar profundamente a nossa sociedade, pois tem como uma das principais consequências a geração de riqueza suficiente para ajudar a reduzir a fome e a pobreza no mundo. E com certeza esta é a forma bastante adequada para que até os leigos entendam o que já está acontecendo via IA e o que vem por aí.

A tática de usar contos onde o emprego da IA está presente nos enredos facilita muito a compreensão da tecnologia. Engenhosamente, ao final de cada conto os autores inserem uma análise mostrando como a IA agiu em cada caso e como tecnicamente isso foi possível aplicado aos dias atuais. Comparavelmente, seria o equivalente a ensinar aspectos da ciência a crianças via historinhas em desenhos animados e numa linguagem bastante adequada. Nem por isso os autores deixam de fazer alertas importantes sobre os perigos de você – inconscientemente – ser manipulado.

E a intenção dos autores é proporcionar conhecer de forma correta esta tecnologia que já está mudando o status quo do mundo. E as pessoas precisam ter essa constatação de forma positiva no seu dia-a-dia, uma vez que a IA é irreversível e está aí há alguns anos participando de nossas vidas sem que a reconheçamos ou percebamos obviamente. A grande maioria das pessoas, crianças, jovens e idosos, navegam pelo Facebook e pelos sites da Amazon, por exemplo, sem que saibam como estão sendo observados ou influenciados.

Lee foi vice-presidente da poderosa Google chinesa e um dos principais desenvolvedores da Inteligência Artificial desde sua origem há décadas, e Qiufan é um consagrado escritor de ficção científica moderno. A união dessas duas competências, com profundo conhecimento de seus cabedais, leva-nos a uma obra extremamente leve, fácil e útil para quem tem o interesse e/ou a necessidade de conhecer essa tecnologia – principalmente os jovens - sendo ou não da área de informática.

E ao contrário do que se projeta nas distopias de futuros de fim de mundo e de terra arrasada, os autores nos apresentam as imensas possibilidades de vida e sobrevida com a utilização da IA. Da descoberta de novos fármacos e cura de doenças às novas formas biológicas de se produzir alimentos e combater a fome; da redução de custos na produção e venda de manufaturados à rapidez e eficiência nos serviços domésticos e nos transportes públicos e individuais, entre outras benfeitorias, são e serão o resultado desse novo mundo administrando lógica e celeridade pela IA.

Sim, um novo mundo que daqui a vinte anos mudará completamente a vida de todos e ensejará que as crianças de hoje vivam num mundo real que para nós hoje não passa de ficção científica.

Esta obra deveria ter sua leitura obrigatória nas escolas de nível médio e universitário. Mas como neste país a educação está entregue a um governo e a grupos ideológicos que pouco se interessam pelo futuro (e mesmo pela educação), recomendo a leitura de 2041 – Como a Inteligência Artificial vai mudar sua Vida nas Próximas Décadas para todos aqueles que têm sob sua responsabilidade ou interesse afetivo pessoas próximas e familiares jovens que ainda têm um futuro pela frente.

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins

30.09.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Os canais de mídia; 3. A tecnologia do futuro; 4. Os contos peculiares deste livro; 5. A horta tecnológica; 6. A medicina e a cura via IA; 7. Os serviços domésticos automatizados; 8. O futuro da integração humana e tecnológica; 9. Kai-Fu Lee; 10. Chen Qiufan.

13 de nov. de 2024

Baumgartner, um escritor descrito por um arquiteto.

Há dias que tudo começa conturbado. Algo dá errado, um esquecimento, um acidente e o inesperado, e você prefere não ter levantado da cama, pois não consegue realizar aquilo que precisa. E esse é o primeiro dia do protagonista-título Baumgartner, em mais uma grande obra – e último romance - do consagrado escritor americano Paul Auster.

Dir-se-ia que trata-se de um romance sobre o azar, tamanha a intensidade de coisas erradas sequenciais que recepcionam o leitor, não fosse uma narrativa tremendamente humana, peculiaridade forte nos textos de Auster. Com todo seu talento, ele inicia a obra, por conseguinte, traçando as características atrapalhadas de um viúvo de setenta anos enfrentando imprevistos logo pela manhã.

O texto carrega nas tintas do sofrimento, tudo para untar as páginas que vão receber o sentido luto pela esposa do protagonista. E isso começa pela leitura de um texto autobiográfico dela, que era escritora, como se ela estivesse ali relatando extremamente emocionada à viva-voz. Como ato contínuo, outra tragédia.

Auster descreve, com uma sensibilidade exacerbada, a tortura do luto para um ser extremamente apaixonado. Tudo é muito doído e belo. Emocionante, após quase vinte anos de casamento e dez de solidão. E esse luto é uma forma excepcionalmente criativa encontrada por Auster para celebrar a vida. Assim, escreve “Viver é sentir dor, disse para consigo, e viver com medo da dor é recusar viver.”. E assim, o protagonista desenvolve a teoria – em um livro em elaboração – de que um membro amputado é como a perda da pessoa amada (e vice-versa), pois “ambos estiveram intimamente ligados a um corpo vivo”. 

Então, surge a personagem que o fará afastar-se de seu luto, sem, contudo, cessá-lo: uma segunda companheira de vida, como emblematicamente profetizara a parceira original. Mas, claro, mais um desastre. E num texto magnífico, de simbologia profunda, Auster leva nosso protagonista a retornar a seus textos. Ali, reflexivamente, ele entende ser prisioneiro de si próprio. E que a solidão esfacela sua estrutura, sua condição humana; sua vida. E, com toda a virilidade de um jovem, sente-se velho. E decide, apesar de tudo, libertar-se.

Simultaneamente, tem a percepção de leves sinais de senilidade, ou como prefere encarar, “o princípio do fim”. Doces recordações da infância com a irmã e a adolescência com os amigos, as passagens marcantes em transportes e as recordações históricas com a família, como filmes, projetam-se em sua mente. Chega ao extremo de ir conhecer a terra natal do avô, em mais uma deliciosa representação de Auster, numa provável incursão familiar autobiográfica, dentre outras tantas passagens deste livro. Tudo isso, numa extraordinária análise criativa e expositiva do amadurecimento e da velhice.

Sua escrita é limpa, criativa, musicalmente absorvível, apesar da objetividade. Leve, apesar das inúmeras tragédias e contratempos. E sempre desejosamente romântica. Usa a simbologia de forma precisa, forçando o leitor a reflexões soberbas sobre o protagonista, mas enlaçando-nos e propiciando-nos a possibilidade de refletirmos sobre nós mesmos. Sobre o próprio luto, o amor e a memória. Dentre tantos outros trechos extraordinários, a descrição das deambulações de seu pai para escrever uma carta, bem como o conteúdo da missiva, é uma dos mais exuberantes textos da literatura norte-americana moderna.

Ao ler este Baumgartner de Paul Auster percebe-se claramente que não se trata de assimilar ou saborear apenas uma história, um enredo. A suprema qualidade literária que o autor imprime à obra fará felizes aqueles que apreciam a leitura de altíssima qualidade. Quem assim o faz, dar-se-á por privilegiado de ter um texto dessa magnitude em suas mãos. Um livro de despedida, digno de um arquiteto literário. Absolutamente, o imortal Paul Auster vai nos fazer permanente falta.

Paul Auster faleceu em abril deste ano, aos 77 anos, deixando um legado de mais de 30 livros, com traduções para 40 países. Boa parte da crítica considera-o injustiçado por nunca ter sido lembrado pela Academia Sueca do Prêmio Nobel de Literatura, apesar de sua consagrada obra. Dentre seus trabalhos mais importantes, destaco A trilogia de Nova York, integrada pela quixotesca Cidade de Vidro, em que personagens atravessam a escrita do autor; Fantasmas, no qual cores ditam nomes para os personagens e O Quarto fechado, narrando em torno de um artista que se apropria da criatividade alheia.

Escritor nova-iorquino típico, foi imensamente premiado na Europa – em especial na França -, o que lhe faltou absurdamente em seu próprio país.

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins

22.09.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. A queda na escada; 3. Os sinais da senilidade; 4. O mundo dos livros; 5. A nova companheira; 6. A emocionante carta do pai; 7. Auster em sua biblioteca; 8. O autor Paul Auster.

22 de out. de 2024

Vento Vazio que enche todas as mentes.

Reminiscências, boas e más, são o muito que sobra para boa parte dos idosos. E nada além disso ou de uma vida inútil, dependente e estagnada. Não fossem os mais jovens, os velhos teriam sobrevivência naquele lugar? É nesse espírito que a escritora mineira Marcela Dantés principia seu romance Vento Vazio.

E, não, não desgruda depois de começada a leitura dessa linda obra. Com uma linguagem descontraída, fluente, rica e criativa, Dantés romanceia um local de ventania constante e cortante, gelada, ou um lugarejo tão árido que contamina a alma das pessoas. O que de mais novo tem – além dos nenéns -, é velho: torres eólicas há muito abandonadas. E com elas, o protagonista velho há muito tempo.

Velho e vizinho da morte e narrador mágico do lugarejo e seus personagens, vivos e mortos. A fictícia Quina da Capivara, na longínqua mineira Serra do Espinhaço, um aglomerado de oito casas, uma venda, a capela e quatro torres esquecidas.

Entram em destaque na segunda parte, duas novas protagonistas narradoras, antes personagens. Antes distantes; agora próximas, apesar de distantes. Você vai entender. Uma delas, inclusive, com o segredo de uma escavação. A outra, um pouco citadina, tida como maluca por suas reações imprevisíveis e surpreendentes.

São os capítulos das mulheres. Fortes, diferenciadas e até estranhas para a maioria de nós, também citadinos. Mulheres, assim como a autora, que contam tudo. Duas únicas famílias comparecem à obra: uma destruída pelo fogo, outra pelas tetas de uma das mulheres.

Já na terceira parte, outra mulher – também personagem anterior -  enlouquece de vez na figura de uma adolescente libertina e liberada por absoluta falta de estrutura familiar. Consequentemente, sua narrativa é desregrada e erotizada, em dosagem bem superior à das outras mulheres. E a morte, que já vinha crescendo, com ela torna-se uma ode. Uma ode à morte. Uma ode assimétrica. Uma loucura.

Como grande coadjuvante no enredo temos o vento constante que assola o lugar. Um “vento que enlouquece”, segundo a autora. O Vento Vazio que maltrata e enlouquece os moradores; participa de tudo e que ali em tudo está presente. “...só o vazio inteiro que cabe no fim do mundo, não tem ninguém, não tem mais ninguém mas continua ventando.

Desmonta figuras religiosas, cheirando assim a crença gnóstica, apesar de abusar de experiências transcendentais. Em seu estilo inovador, Dantés traz renovações literárias. Embala-nos em um ritmo narrativo deleitoso, palatável e até surpreendente. A construção tanto dos protagonistas como dos demais personagens é gradual e cativante. Cada faceta é relevante. Cada fato uma surpresa. Um romance com aroma de poema.

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins

29.08.2024

Fotos: 1. Capas do livro. 2. O velho sobrevivente; 3. As velhas torres eólicas; 4. Os coronéis do sertão; 5. A muralha da Serra do Espinhaço; 6. A amante do coronel; 7. A autora Marcela Dantés.

8 de out. de 2024

Carl Sagan revela O Mundo Assombrado pelos Demônios.

O cientista planetário, astrônomo, astrobiólogo, astrofísico, escritor, divulgador científico e ativista norte-americano Carl Sagan (hoje com 90 anos) inicia um de seus mais brilhantes livros dedicando-o ao seu neto Tonio, desejando-lhe um mundo livre de demônios e cheio de luz. Sintetiza, de certa forma, o contexto da obra O Mundo Assombrado pelos Demônios.

E principia este trabalho na sua infância, onde as crianças costumam questionar diversos fatos por não entenderem ainda a lógica de sua realidade. Assim, por exemplo, como saber o que é imaginação ou realidade? Ou como se podia ver o som e ouvir a luz? E assim seus pais o introduziram simultaneamente no ceticismo e no assombroso, dois modos de pensamento que são a base do método científico.

Na sequência, critica severamente o ensino das ciências exatas nas escolas, as quais não conseguem despertar a curiosidade dos alunos em formação para o que é ensinado: ”Nosso trabalho consistia meramente em recordar o que nos tinha ordenado: consegue a resposta correta, não importa que entenda o que faz.”  Já na Universidade de Chicago ele encontrou um programa de ensino no qual era impensável que um aspirante a físico não conhecesse Platão, Aristóteles, Bach, Shakespeare, Gibbon, Malinowski e Freud, entre outros.

Parte a seguir para os relatos espúrios, tão comuns hoje em dia, nos quais a grande maioria de  pessoas crédulas incautas acreditam em inúmeras balelas sem comprovação científica, como a existência de Atlântida, o poder dos cristais ou a previsão dos horóscopos, por exemplo, com a cooperação desinformada (e frequentemente a conivência cínica) de periódicos, revistas, editores, rádio, televisão, sites, produtores de cinema e similares. E escancara essa pseudociência difundida pelas fontes de informações disponíveis à população, com amplos e profundos interesses comerciais e de ativismo sócio-político.

Sempre com inúmeros exemplos, ele passa pelos momentos pretéritos da ciência, como a escuridão de dez séculos da antiguidade sem qualquer produção científica. E considera então o dom da vida e a sobrevivência como a base e inspiração do desenvolvimento científico. E conclui que os avanços na medicina e agricultura salvaram muitas mais vidas do que as que se perderam em todas as guerras da história.

Alerta, então, para mais atenção às consequências da tecnologia a longo prazo se usadas sem controle ou destinadas para o mal. E a que interesses serve a ignorância, além do progresso ininterrupto na auto desvalorização do homem causado pela revolução científica.

Baseado em seus estudos científicos, Sagan prevê que os Estados Unidos será uma economia de serviço e informação; quase todas as indústrias manufatureiras fundamentais se deslocarão para outros países; os temíveis poderes tecnológicos estarão em mãos de uns poucos e ninguém que represente o interesse público poderá se aproximar sequer dos assuntos importantes; as pessoas perderão a capacidade de estabelecer suas prioridades ou de questionar com conhecimento aos que exercem a autoridade; nós, obstinados a nossos cristais e consultando nervosos nossos horóscopos, com as faculdades críticas em declive, incapazes de discernir entre o que nos faz sentir bem e o que é certo, iremos deslizando, quase sem nos dar conta, na superstição e na escuridão.

E assim Sagan desenvolve esta sua ode à ciência e ao conhecimento, numa denúncia importante sobre o obscurantismo mascarado de entretenimento e solução, desmontando as crenças das passivas massas em superstições, credos religiosos e, principalmente, nas pseudociências.

Citando o profeta Isaías - Esperamos a luz, mas contemplamos a escuridão - Sagan deixa-nos um potente pensamento para reflexão: “Simplesmente, não há volta. Nós gostemos ou não, estamos atados à ciência. O melhor seria lhe tirar o máximo proveito. Quando finalmente o aceitarmos e reconhecermos plenamente sua beleza e poder, encontrar-nos-emos com que, tanto em assuntos espirituais como práticos; saímos ganhando.

Esta é uma obra transformadora. Com certeza, os leitores mais instruídos ficarão incomodados. Com fortes possibilidades de mudar alguns de seus conceitos. Já os menos letrados, perdidos por perdidos, com absoluta certeza não conseguirão ultrapassar os capítulos iniciais.

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

 

Valdemir Martins

25.08.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Ver o som e ouvir a luz; 3. Balelas como o horóscopo; 4. A escuridão da ciência na Idade Média; 5. O obscurantismo religioso; 6. A tecnologia na guerra; 7. O anel de galáxias e a infinitude do cosmo; 8. O autor Carl Sagan.

26 de set. de 2024

O Pássaro Pintado para o Bem e para o Mal.

A violência das guerras não está só nos campos de batalha. Sua força destrutiva descomunal invade a vida das pessoas até antes de se iniciarem os confrontos bélicos. E toda a pureza e a inocência permanecem apenas nas crianças, mesmo que sofram maus tratos, indiferença, sede ou fome. O pecado maior de uma guerra é tolher a infância. E é dessa forma que o premiado escritor polonês Jerzy Kosinski dá início ao seu best-seller de 1965 O Pássaro Pintado.

Com abertura impactante, a obra nos traz uma torturante narrativa de desmanche da inocência infantil ludibriada por imagens ilusórias das mentiras que contam às crianças. Tudo reforçado pelas atitudes adultas violentas, bruscas e sem comiseração.

As crendices religiosas e maldições, fruto de ignorância e fantasias, logo contaminam o texto  e inacreditáveis pragas e superstições conduzem as atitudes paradoxais e insanas. O pequeno protagonista começa a se destacar como o escopo de tudo o que é pestilento. E tragédias passam a ser seu cotidiano, num clima de violência gratuita e miséria.

Esta é uma obra que concentra todo o horror, desalento e desolação do ambiente satélite a uma guerra, contada de forma extremamente realista e chocante, entremeada de pitadas de realismo fantástico que lhe acrescentam imenso valor literário.

A narrativa de Kosinski é extremamente crua, cruel, sanguinolenta e até escatológica. Exige, em alguns trechos, que o leitor controle o seu estômago e sua mente. Como um sadista, descreve cenas fortes, brutais e extremamente realistas. Mas, ele simplesmente descreve o que de fato acontece nas cercanias das guerras, mudando o comportamento humano face a toda a barbárie que envolve as pessoas involuntariamente. É o resultado da bestialidade da guerra, da luta pela sobrevivência.

O leitor irá perambular e viver aventuras com o pequeno protagonista de aldeia em aldeia; de floresta em floresta. Em suas divagações perante o sofrimento ou alguma rara satisfação, o menino incorpora seus pensamentos aos de aldeões, transgredindo paradigmas religiosos, supersticiosos e até demoníacos. Apresenta-nos, desta forma o autor, a promiscuidade do pensamento humano perante a insegurança e o sofrimento frequentes.

Numa clara crítica aos nazistas, o menino reflete: “Os alemães me intrigavam. Que desperdício, refletia. Um mundo tão cruel e desumano, valeria a pena que alguém se empenhasse em governar?” E rememora que sem contar com o auxílio de Deus ou do Diabo o que sempre prevalece é a força brutal e bruta dos alemães, causadores da guerra, agindo por influência dos Maus Espíritos e saindo sempre vitoriosos.

Ninguém podia detê-los. Eram invencíveis: cumpriam sua função com magistral habilidade. Contaminavam a outros com o ódio de que estavam possuídos, condenavam nações inteiras ao extermínio. Era provável que todos os alemães houvessem vendido a alma ao Diabo desde o berço. Aí residia o segredo de seu poder e de sua força.

Kosinski, num feito extraordinário, desenvolve um ensaio sobre o Mal e o Bem em pleno romance. O pequeno protagonista, começa a analisar sua vida – mesmo dentro de uma pura ótica infantil – e conclui que de nada lhe adiantaram igrejas, padres, gente bondosa e orações (“uma verdadeira perda de tempo”), uma vez que a partir da separação de seus pais só lhe sobrevieram sofrimento, dor e angústia; que só lhe cortejaram com sucesso as forças do Mal, que em muito superaram o Bem. E toma uma decisão drástica mudando os rumos de sua história.

Em seu arremate final, o autor introduz os soldados soviéticos na obra, concedendo-lhes a aura da bondade contrastando com tudo que o pequeno protagonista vivenciou até então, e contrariando toda a sua recém elaborada definição de vida. Assim um militar russo faz a iniciação do menino, mostrando-lhe o embuste das religiões em oposição ao magnífico e benevolente Partido Comunista e seu chefe Stalin, ícones da bondade suprema.

Reflexões sobre vingança e heroísmo, liberdade, direitos e deveres infantis são muito marcantes nas páginas finais da obra com final previsível. Mas, a marca indelével que nos fica é o sofrimento ao derredor de uma guerra que a transpõe e avança sobre toda a reconstrução das sobrevidas. E nosso agora jovem protagonista representa o reflexo dos pássaros pintados por toda uma tragédia.

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins

15.08.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Capa da edição inglesa; 3. Os pássaros pintados; 4. A criança na guerra; 5. A influência da Igreja; 6. A influência soviética; 7. A ponte destruída; 8. Crianças nos acolhimentos pós guerra; 8. O autor Jerzy Kosinski.

15 de set. de 2024

Dois Irmãos, dois pesos e duas medidas.

A ambivalência prevalece no breve romance Dois Irmãos, do premiado romancista brasileiro Milton Hatoum. Um drama familiar ambientado em Manaus envolve-nos num incidente ocorrido entre irmãos gêmeos que, como uma cicatriz, marca toda a obra.

A dualidade está presente em cada parágrafo, pois destaca sempre um pai que pensa de uma forma e uma mãe de outra; a personalidade de um que difere substancialmente do outro, o amor e o ressentimento, o bem sucedido e o esquálido; e assim segue nas atitudes dos personagens.

Narrado pelo filho da empregada da família, baseado em conversas ouvidas, cenas presenciadas e atos participativos, o romance possibilita-nos degustar uma obra simples, porém extremamente dinâmica. Seus personagens se agitam até de formas surpreendentes nos seus relacionamentos, sempre marcados pelo amor, pelo ciúme e pelo trabalho. E engolfa o leitor em cenas de bandalheira, paparicação, desvelo e até estupro. Tudo em meio aos aromas, sabores, palafitas, igarapés, prostíbulos, chuvaradas, usos e costumes manauaras.

A degradação e esfarelamento da família de origem libanesa é contada após trinta anos pelo órfão que desconfia ser seu pai um dos homens da família. Pelo desregramento familiar qualquer deles pode sê-lo. Mas a personalidade da mãe – forte para todos e frágil para um dos filhos – liderou toda a bagunça.

Tudo isso, engendrado pelo manauara exímio contador de histórias Milton Hatoum. Criativo, coerente, autêntico em suas precisas descrições realistas; original na criação de situações. Apesar de o trato do comportamento humano estruturar toda a obra de forma modelar, Hatoum nada em criatividade na construção deste soberbo romance. Não fosse pela alta qualidade da obra e pelo respeito ao autor, poderíamos dizer que é digna de uma novela do horário nobre.

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins

08.08.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Cidade de Manaus à época; 3. O irmão malandro; 4. O bar nas palafita; 5. Milton Hatoun.

30 de ago. de 2024

Os sobreviventes das Noites de Peste.

Não chega a surpreender o Prêmio Nobel turco Orhan Pamuk iniciar mais um romance abordando as tradições islâmicas e o Império Otomano. Desta vez, no seu livro mais recente, Noites de Peste, ele principia sua ficção contando o desastre da tutela do Abdul Hamid II - o 34º sultão otomano - sobre o que ainda restava do domínio turcomano no início do século XX. E, claro, tudo complicado pelo surgimento de pestes e revoltas anticristãs.

Nesta caudalosa ficção histórica seu enredo desenrola-se numa ilha paradisíaca imaginária localizada no Mar Mediterrâneo chamada Mingheria, entre as ilhas de Creta e Chipre, ao sul da Turquia. Dentre inúmeros fatos históricos, ele entremeia a permanente rixa de cristãos ortodoxos gregos e muçulmanos e o surgimento da peste com o ficcional governador ditatorial da ilha e as lideranças religiosas e os cônsules que não colaboram com as autoridades sanitárias. E assim, Pamuk começa a elevar o suspense da obra.

Cada nova situação ou introdução de personagem relevante dá a Pamuk a inspiração de novas divagações, trazendo-nos dados e análises históricas muito interessantes, o que deve desagradar, com certeza, aos leitores menos pacientes. Mas, o acúmulo de informações enriquece sobremaneira a obra, justificando mais uma vez, a  máxima láurea literária do escritor. Seu trabalho de pesquisa histórica é tão profuso a ponto de sufocar a leitura em certas passagens.

As situações e alternativas são amplamente conversadas entre os personagens, com devaneios e reminiscências abundantes, amarrando sobremaneira a evolução do enredo. Pamuk desencadeia uma série de capítulos de formação, contando a vida e perspectivas dos principais personagens, prolongando assim a narrativa, de maneira um pouco excessiva. E a leitura não embala. Embola. E de maneira incomodativa, pelo menos para mim.

A narração é feita na terceira pessoa, de forma até coloquial, e baseada nas cartas que uma princesa enviava para sua irmã e, estranhamente, num rompante diferenciado de seus textos, o autor revela mortes de personagens já em capítulos iniciais. Assim como fatos futuros do enredo e, espantosamente, não traz spoilers à leitura.

O protagonista mais em destaque não passa de um personagem burlesco comparável a diversas autoridades destacadas na atualidade. E, nesse embalo, Pamuk traça um paralelo crítico declarado à barafunda que se tornou o recente episódio da pandemia de  Covid-19 e a miríade de controles à sua propagação. Isto, carregado dos similares preconceitos e discriminações, abuso de autoridade e tráfico de influências. Até a cotidiana contagem de mortos nos leva ao recorrente carro-chefe da mídia à época.


A dramaticidade por vezes e alternadamente irônica é uma marca na narrativa e uma distinção no estilo do autor. Chega a ser a “linguagem oficial” do fato mais importante do enredo, o que enriquece a obra e quebra toda uma rígida expectativa e tensão proporcionada pela peste e pela incompetência de alguns servidores municipais, burocratas e das lideranças. Seus paralelos traçados com momentos históricos - como a Revolução Francesa, por exemplo - galgam as raias da ironia (ou mesmo do deboche). Outro fato que chama a atenção é que o autor pode ter possivelmente retratado a  figura do idolatrado Mustafa Kemal Atatürk - fundador da República da Turquia - no personagem herói oficial Kamil, o que lhe rendeu um processo na cidade de Esmirna, na Turquia.


Não diria que se trata de um livro empolgante, mas por trás de seu conteúdo respira uma obra literária com qualidade, de um grande escritor. No segundo terço do livro, depois de Pamuk fazer todas as apresentações de personagens e  seus sentimentos, envolvimentos e situações, a obra começa então a pegar ritmo, sem, no entanto, abandonar longas digressões.

A peste, que pela lógica até da época, seria controlável, proliferou de tal forma que atinge até o leitor causando mal estar com toda a situação. Tudo pela irresponsabilidade de um grupo com plenos poderes, porém incompetente, desfocado, inoperante e, claro, muito amador. A quantidade de mortes é tamanha que muitos leitores podem imaginar que não vai sobrar personagens para encerrar o livro, uma vez que até alguns protagonistas sucumbem à história.

Vejo na trama uma profunda e sarcástica crítica política e social de Pamuk aos governos exploradores da ignorância do populacho, assim como, aos políticos incompetentes e ludibriadores; aos poderosos ineptos e aos servidores públicos corruptos e acomodados. Bem como  às lideranças religiosas ardilosas e a todos os puxa-sacos serviçais. Chega ao extremo de envolver a obra, no seu crepúsculo, em terrorismo de Estado, em plena teocracia.

Como insinua ser a normalidade nos governos islâmicos, o autor os representa no livro como algo anárquico, cheio de fanatismo, ignorância e bestialidade, além do oportunismo. Por sua franca incompetência, neste caso, a obra o denomina “gerenciador da anarquia da peste”, com as políticas absurdas e equivocadas que foram implementadas.


No final, Pamuk abandona a peste, dedicando-se a digressões sobre o esfacelamento do Império Otomano, passando então ao relato da quarta geração dos protagonistas e sobre como sobreviveram os membros do sultanato otomano após a derrocada. E, como numa dissertação escolar, descreve as reminiscências da bisneta deles - e “autora” do livro - sobre os familiares e a ilha de Mingheria.

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins

26.07.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Mapa da região; 3. O sultão Abdul Hamid II; 4. O porto de Mingheria; 5. As bolhas da peste; 6. A devastação da peste; 7. As fugas da ilha; 8. O enforcamento; 9. Os líderes religiosos; 10. O palácio Topkapi em Istambul; 11. O autor Orhan Pamuk.