A violência das guerras não está só
nos campos de batalha. Sua força destrutiva descomunal invade a vida das
pessoas até antes de se iniciarem os confrontos bélicos. E toda a pureza e a
inocência permanecem apenas nas crianças, mesmo que sofram maus tratos,
indiferença, sede ou fome. O pecado maior de uma guerra é tolher a infância. E
é dessa forma que o premiado escritor polonês Jerzy Kosinski dá início ao seu best-seller de 1965 O
Pássaro Pintado.
Com abertura
impactante, a obra nos traz uma torturante narrativa de desmanche da inocência
infantil ludibriada por imagens ilusórias das mentiras que contam às crianças.
Tudo reforçado pelas atitudes adultas violentas, bruscas e sem comiseração.
As crendices religiosas
e maldições, fruto de ignorância e fantasias, logo contaminam o texto e inacreditáveis pragas e superstições
conduzem as atitudes paradoxais e insanas. O pequeno protagonista começa a se
destacar como o escopo de tudo o que é pestilento. E tragédias passam a ser seu
cotidiano, num clima de violência gratuita e miséria.
Esta é uma obra que
concentra todo o horror, desalento e desolação do ambiente satélite a uma
guerra, contada de forma extremamente realista e chocante, entremeada de
pitadas de realismo fantástico que lhe acrescentam imenso valor literário.
A narrativa de
Kosinski é extremamente crua, cruel, sanguinolenta e até escatológica. Exige,
em alguns trechos, que o leitor controle o seu estômago e sua mente. Como um
sadista, descreve cenas fortes, brutais e extremamente realistas. Mas, ele simplesmente
descreve o que de fato acontece nas cercanias das guerras, mudando o
comportamento humano face a toda a barbárie que envolve as pessoas
involuntariamente. É o resultado da bestialidade da guerra, da luta pela
sobrevivência.
O leitor irá
perambular e viver aventuras com o pequeno protagonista de aldeia em aldeia; de
floresta em floresta. Em suas divagações perante o sofrimento ou alguma rara
satisfação, o menino incorpora seus pensamentos aos de aldeões, transgredindo
paradigmas religiosos, supersticiosos e até demoníacos. Apresenta-nos, desta
forma o autor, a promiscuidade do pensamento humano perante a insegurança e o
sofrimento frequentes.
Numa clara crítica aos nazistas, o
menino reflete: “Os alemães me intrigavam.
Que desperdício, refletia. Um mundo
tão cruel e desumano, valeria a pena que alguém se empenhasse em governar?”
E rememora que sem contar com o auxílio de Deus ou do Diabo o que sempre
prevalece é a força brutal e bruta dos alemães, causadores da guerra, agindo
por influência dos Maus Espíritos e saindo sempre vitoriosos.
“Ninguém
podia detê-los. Eram invencíveis: cumpriam sua função com magistral habilidade.
Contaminavam a outros com o ódio de que estavam possuídos, condenavam nações
inteiras ao extermínio. Era provável que todos os alemães houvessem vendido a
alma ao Diabo desde o berço. Aí residia o segredo de seu poder e de sua força.”
Kosinski, num feito extraordinário,
desenvolve um ensaio sobre o Mal e o Bem em pleno romance. O pequeno
protagonista, começa a analisar sua vida – mesmo dentro de uma pura ótica
infantil – e conclui que de nada lhe adiantaram igrejas, padres, gente bondosa
e orações (“uma verdadeira perda de tempo”),
uma vez que a partir da separação de seus pais só lhe sobrevieram sofrimento,
dor e angústia; que só lhe cortejaram com sucesso as forças do Mal, que em
muito superaram o Bem. E toma uma decisão drástica mudando os rumos de sua
história.
Em seu arremate final, o autor
introduz os soldados soviéticos na obra, concedendo-lhes a aura da bondade
contrastando com tudo que o pequeno protagonista vivenciou até então, e
contrariando toda a sua recém elaborada definição de vida. Assim um militar
russo faz a iniciação do menino, mostrando-lhe o embuste das religiões em
oposição ao magnífico e benevolente Partido Comunista e seu chefe Stalin,
ícones da bondade suprema.
Reflexões sobre vingança e heroísmo,
liberdade, direitos e deveres infantis são muito marcantes nas páginas finais
da obra com final previsível. Mas, a marca indelével que nos fica é o
sofrimento ao derredor de uma guerra que a transpõe e avança sobre toda a
reconstrução das sobrevidas. E nosso agora jovem protagonista representa o
reflexo dos pássaros pintados por toda uma tragédia.
Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!
Valdemir Martins
15.08.2024
Fotos: 1. Capa do livro; 2. Capa da edição inglesa; 3. Os pássaros pintados; 4. A criança na guerra; 5. A influência da Igreja; 6. A influência soviética; 7. A ponte destruída; 8. Crianças nos acolhimentos pós guerra; 8. O autor Jerzy Kosinski.