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29 de jan. de 2025

Salvar o Fogo com lirismo e magia.

Felizmente, para a literatura brasileira e para nós, leitores, uma importante evolução literária de Itamar Vieira Junior pode ser constatada ao se iniciar a leitura de sua mais recente obra, Salvar o Fogo, ganhadora como Melhor Romance Literário  do Prêmio Jabuti de 2024. Fato que não me surpreendeu, uma vez que Itamar já havia conquistado com seu romance de estreia Torto Arado, nada menos que quatro premiações: o primeiro Jabuti de sua carreira  (2020), além dos internacionais Oceanos (20200,  Leya (2018) e Montluc Rèsistance et Liberté (2024).

Seu texto já antes claro e sucinto, traz-nos, a princípio, a história de um verdadeiro moleque – indesejado no rico preâmbulo que principia o livro – refutado por sua irmã tutora. Suas peripécias na infância e sua pureza bem retratam a instabilidade de muitas pessoas adultas.

A insegurança infantil em um lar desintegrado pela pobreza, pela educação capenga, pela falta de liderança paterna e pela interferência da religião é explorada por Vieira como definidor da vida e da personalidade dos personagens integrantes dessa família, nas quais, com certeza, muitos leitores irão se identificar. Fugir da “vidinha ordinária, rasteira, da penúria” é algo bastante comum, senão corriqueiro, por este Brasil afora.

Com uma excelente técnica narrativa, sua obra bem estruturada é muito bem escrita, criativa, com um enredo simples que dá muitas voltas sem sair do lugar, como num jogo de tabuleiro mudando apenas as peças de lugar e gerando encantamento. No entanto, o lirismo e a qualidade literária são excelsos e de uma beleza fluida. O diálogo quase ilógico, por exemplo, de duas senhoras, uma ex-prostituta e uma devota auto anulada, é de uma riqueza exuberante. Outro destaque fica por conta da narrativa, às vezes com viés de realidade mágica, o que enobrece sobremaneira sua qualidade literária.

Juntando os pedaços de uma família ao redor de um leito de um hospital humilde, Vieira constrói um mosaico de emoções dos personagens, poucas vezes encontrado em nossa literatura. Assim, introduziu na narrativa a terceira protagonista, nada menos que o liame ao seu primeiro livro, com uma incrível história.

A escancarada crítica à religião e suas regras retrógradas se faz permanente ao longo do texto. Personagens extremamente religiosos criticam – e põem em dúvida – atitudes dos monges, seus costumes, suas cobranças e seus sermões. Também não escapam de sua condenação os abusos dos poderosos sobre os humildes e necessitados, os preconceitos gratuitos e as superstições; igualmente os políticos ordinários são expostos. Tudo numa severa denúncia originária dos abusos colonialistas principalmente aos índios e aos escravos, entranhados inexoravelmente em nossa história.

Portanto, a injustiça social, para não falar na divina - uma vez que o caos, a corrupção e a violência são frutos do Homem, mesmo os sagrados-, faz-se presente com muita força, representando o protesto e a denúncia que marcam intencionalmente as obras do autor. E, segundo ele, este é o segundo livro de uma trilogia (iniciada com Torto Arado) sobre os que vivem da terra, sempre ligando seus personagens como Maria Cabocla e Bibiana, colocando, assim, ênfase e força nas figuras femininas.

Além das denúncias e protestos velados, cumprindo a saga da miséria na literatura nordestina brasileira, de Rachel a Amado, de Cabral a Suassuna, passando por Graciliano, o contemporâneo Vieira faz jus e honra até Castro Alves e Aluisio Azevedo com sua obra em contínua evolução. Bons ventos o trouxeram e outros tantos espalharão sua obra para que todos a conheçam. Que assim seja!

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Valdemir Martins

14.12.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Moleque brincando no rio Paraguaçu (BA); 3. Lateral do mosteiro da vila; 4. O rio e a floresta; 5. A irmã tutora Luzia lavando no rio; 6. As ruinas do mosteiro; 7. Torto Arado, o primeiro livro da trilogia; 8. O autor Itamar Vieira Junior.

6 de jan. de 2025

A eterna vida do falecido e incomparável Pedro Páramo.

Para quem “começou a escrever para combater a solidão” – como insistia em dizer -, o mexicano Juan Rulfo galgou estágios de sucesso literário jamais por ele imaginado, tornando-se um dos mais importantes escritores latino americanos de todos os tempos. Sua obra prima Pedro Páramo rodou o mundo e foi traduzida para trinta e dois idiomas. E, como afirmam os historiadores literários, serviu de cartilha para grandes escritores contemporâneos.

Dele nasceu o Realismo Mágico latino americano, onde beberam Gabriel García Márquez, Jorge Luís Borges, Julio Cortázar, Juan Carlos Onetti e  Carlos Fuentes, entre outros. E a obsessão de Rulfo pelas releituras e cortes levou suas obras a uma concisão e objetividade tão marcantes como as de Graciliano Ramos no Brasil. É contido no uso de adjetivos e cortou cerca de cem páginas deste trabalho antes de editá-lo. Mas, infelizmente, Rulfo deixou-nos apenas dois livros, este romance Pedro Páramo e a coletânea de contos Chão em Chamas. Duas obras suficientes para enriquecer a literatura tão fortemente que poucos autores contemporâneos o conseguiram igualar, segundo os estudiosos.

O protagonista desta obra é um órfão e chama-se Juan – assim como o autor – em busca de um pai e, a pedido da mãe, sai em busca de suas origens. E o que ele encontra é fantástico, literalmente. E logo de início extasiamo-nos com um texto deslumbrante, onde a leitura prazerosa corre solta em surpresas constantes. Múltiplos personagens inconfundíveis invadem nossa leitura. Um mais rico e surpreendente que o outro, passando como fantasmas.

Seu texto lírico e profundo envolve-nos como num sonho: “Ouvia de vez em quando o som das palavras, e notava a diferença. Porque as palavras que havia ouvido até então, e só então fiquei sabendo, não tinham nenhum som, não soavam; sentiam-se; mas sem som, como as que se ouve durante os sonhos.”

Estamos no mundo dos mortos, embaixo da terra onde eles conversam e reclamam. Outros estão em cima e contam suas histórias. E Rulfo no embalo conta tudo sobre a vida e a morte deles. E nada lúgubre ou fantasmagórico. Apenas um romance em cidade pequena, um povoado, que apesar de morto mantém viva suas memórias. Uma riqueza literária desse estirpe como ainda não havia lido.

Usando das mais primorosas técnicas literárias, Rulfo enleva-nos em sua explosão literária, fugindo dos enredos solenes e lineares, e colocando-nos frente a um palavreado lúdico que obriga-nos a construir com ele o que quisermos para, inescapavelmente, chegarmos ao protagonista do título através dos inúmeros figurantes que seu filho encontra antes de encontrá-lo. Sua narrativa não é um prêt-à-porter. Você precisa ajudá-lo, absorvendo sua criatividade e sentindo o êxtase de suas explanações.

Enfim, um livro para quem realmente aprecia qualidade literária de primeiríssima grandeza. Único e incomparável. Uma obra que celebra a vida através dos mortos. Brilhante!

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Valdemir Martins

21.11.2024

Obs: Após a leitura deste livro, recomendo assistir à minissérie do mesmo título na Netflix. Trata-se de outra obra prima, agora, cinematográfica.

Fotos: 1, Capa do livro; 2. A pequena cidade paterna; 3. O filho Juan Preciado: 4. O pai Pedro Páramo; 5. Personagens da obra; 6. o autor Juan Rulfo; 7. A excelente minissérie no Netflix.