Pare de ir a esses templos lúgubres, obscuros e frios que tu mesmo construíste e que acreditas ser a Minha casa. Minha casa está nas montanhas, nos bosques, nos rios, nos lagos, nas praias. Aí é onde Eu vivo e aí expresso meu amor por ti.
Baruch Spinoza, ou Bento Espinosa em sua língua
mãe, fundador do racionalismo e da moderna filosofia, sempre foi um contestador
das religiões. Não por ser ateu. Ele sempre acreditou no Criador, mas de uma
forma natural, pura, sem vícios humanísticos como a prevalente nas igrejas,
templos e sinagogas. Filho de família judaica portuguesa, nascido e criado em
Amsterdã, favorito do rabino por sua inteligência, desde cedo começou a
contestar as cerimônias da sinagoga e a dar interpretações corretas, simples e
racionais aos textos religiosos. Excomungado do judaísmo holandês, viveu como
artesão, professor livre de teologia e como filósofo. Por seu racionalismo,
fundou o criticismo bíblico moderno. Sua definição de Deus – abaixo reproduzida
- deixa bem claro o posicionamento de sua escola. O difícil, sem dúvida, é
contestá-lo sem esbarrar na religiosidade e, portanto, no sentimentalismo
religioso e no interpretativo fantasioso.
Esta introdução faz-se imperativa para abordarmos
mais uma obra excepcional de Irvin D. Yalom intitulada “O Enigma de Espinosa”.
Este escritor judeu americano, psicoterapeuta e fascinado estudioso de
filosofia que escolheu
estudar medicina por se sentir mais perto de Dostoievsky ou de Tolstoi, não
poderia deixar de ser, assim, um grande escritor.
De fato, nesta obra adentramos nas vidas de duas personagens
centrais – e reais -, por um lado temos Bento Espinosa – como dito acima - e
por outro, Alfred Rosenberg, um forte ideólogo e criador de algumas das
principais crenças do Nazismo, com uma estranha fascinação por Espinosa. Ambos,
com o liame do grande poeta Goethe como um enigma. Os capítulos vão alternando
entre as vidas dos dois protagonistas e, ao explorar a de Spinoza, nos é
permitido penetrar em seus pensamentos e ideias, como também mergulhar numa
época conturbada, com a inquisição perseguindo os judeus por toda a Europa, mas
especialmente pelos governos ibéricos e luteranos alemães. Já na abordagem da
vida de Rosenberg, é explorada a sua personalidade e pensamentos, a sua interação
com Hitler, além de episódios decisivos para a ascensão do nacional-socialismo
na Alemanha. A forma que o autor cria diálogos ficcionais entre as personagens
(que retratam pessoas reais) é credível, a narrativa explora diversos tópicos,
onde podemos encontrar filosofia, psicologia, teologia, historia e política,
além de termos apresentada uma dualidade de conceitos, pelo meio da narrativa, e
ainda nos deparamos com fatos históricos passados no século XVII e no século
XX.
Desta forma, Yalom explora a mente de dois homens separados
por trezentos anos, dois homens que mudaram o rumo do mundo, as vidas
interiores de Espinosa, o virtuoso filósofo secular, e de Rosenberg, o ímpio
assassino de massas. Yalom tem um talento único para personificar de forma
inesquecível os maiores pensadores da História. Deixa-nos fascinados e os seus
livros marcam-nos para sempre, como são o caso dos best-sellers “Quando
Nietzsche Chorou” e “A Cura de Schopenhauer”.
O Deus cósmico e universal de Espinosa
Em seu “Livro I da Ética e no
Tratado sobre a Religião e o Estado”, Espinosa delineia a sua concepção de um
Deus despersonalizado e geométrico, contrária a todas as formas de se idealizar
Deus como uma espécie de entidade, oculta e transcendente, que age conforme os
seus desígnios e a sua vontade suprema. Vejamos:
“Pare de ficar rezando e batendo o peito! O que eu
quero que faças é que saias pelo mundo e desfrutes de tua vida. Eu quero que
gozes, cantes, te divirtas e que desfrutes de tudo o que eu fiz para ti.
Pare de ir a esses templos lúgubres, obscuros e
frios que tu mesmo construíste e que acreditas ser a minha casa. Minha casa
está nas montanhas, nos bosques, nos rios, nos lagos, nas praias. Aí é onde eu
vivo e aí expresso meu amor por ti.
Pare de me culpar da tua vida miserável: eu nunca
te disse que há algo mau em ti ou que eras um pecador, ou que tua sexualidade
fosse algo mau. O sexo é um presente que eu te dei e com o qual podes expressar
teu amor, teu êxtase, tua alegria. Assim, não me culpes por tudo o que te
fizeram crer.
Pare de ficar lendo supostas escrituras sagradas
que nada têm a ver comigo. Se não podes me ler num amanhecer, numa paisagem, no
olhar de teus amigos, nos olhos de teu filhinho..., não me encontrarás em
nenhum livro!
Confia em mim e deixa de me pedir. Tu vais me dizer
como fazer meu trabalho? Pára de ter tanto medo de mim. Eu não te julgo, nem te
critico, nem me irrito, nem te incomodo, nem te castigo. Eu sou puro amor. Pare
de me pedir perdão. Não há nada a perdoar.
Se eu te fiz, eu te enchi de paixões, de
limitações, de prazeres, de sentimentos, de necessidades, de incoerências, de
livre-arbítrio. Como posso te culpar se respondes a algo que eu pus em ti? Como
posso te castigar por seres como és, se eu sou quem te fez?
Crês que eu poderia criar um lugar para queimar a
todos meus filhos que não se comportem bem, pelo resto da eternidade? Que tipo
de Deus pode fazer isso?
Esquece qualquer tipo de mandamento, qualquer tipo
de lei; essas são artimanhas para te manipular, para te controlar, que só geram
culpa em ti.
Respeita teu próximo e não faças o que não queiras
para ti. A única coisa que te peço é que prestes atenção a tua vida, que teu
estado de alerta seja teu guia.
Esta vida não é uma prova, nem um degrau, nem um
passo no caminho, nem um ensaio, nem um prelúdio para o paraíso. Esta vida é o
único que há aqui e agora, e o único que precisas.
Eu te fiz absolutamente livre. Não há prêmios nem
castigos. Não há pecados nem virtudes. Ninguém leva um placar. Ninguém leva um
registro. Tu és absolutamente livre para fazer da tua vida um céu ou um
inferno.
Não te poderia dizer se há algo depois desta vida,
mas posso te dar um conselho. Vive como se não o houvesse, como se esta fosse
tua única oportunidade de aproveitar, de amar, de existir. Assim, se não há
nada, terás aproveitado da oportunidade que te dei.
E se houver, tem certeza que Eu não vou te
perguntar se foste comportado ou não. Eu vou te perguntar se tu gostaste, se te
divertiste... Do que mais gostaste? O que aprendeste?
Pare de crer em mim - crer é supor, adivinhar,
imaginar. Eu não quero que acredites em mim. Quero que me sintas em ti. Quero
que me sintas em ti quando beijas tua amada, quando agasalhas tua filhinha,
quando acaricias teu cachorro, quando tomas banho no mar.
Pare de louvar-me! Que tipo de Deus ególatra tu
acreditas que Eu seja? Aborrece-me que me louvem. Cansa-me que agradeçam. Tu te
sentes grato? Demonstra-o cuidando de ti, de tua saúde, de tuas relações, do
mundo. Sentes-te olhado, surpreendido?... Expressa tua alegria! Esse é o jeito
de me louvar.
Pare de complicar as coisas e de repetir como
papagaio o que te ensinaram sobre mim. A única certeza é que tu estás aqui, que
estás vivo, e que este mundo está cheio de maravilhas.
Para que precisas de mais milagres? Para que tantas
explicações? Não me procures fora! Não me acharás. Procura-me dentro... Aí é
que estou batendo dentro de ti.
Baruch de Espinosa (1632-1677)
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