O caudaloso e vigoroso romance histórico O Homem que Amava os Cachorros
não conta as peripécias de um eventual dono de um cão Marley, mas de um apaixonado
dono de galgos russos borzóis. E de outros personagens que também amavam os cães.
E não se trata aqui de uma estória de cachorros. São histórias entrelaçadas que
se completam e têm um único final, abordando vidas de protagonistas reais que
tiveram uma terrível “vida de cachorro” ou que viveram enganados como um cachorro
raivoso e destruidor.
Em meio à escuridão das maldades humanas e de eventos
negativos da natureza ele está sempre acendendo uma luz, numa poderosa
linguagem criativa e fluente. Assim é a escrita do cubano Leonardo Padura nesta obra. Narrando a incrível vida desterrada
do bolchevique puro-sangue Liev Davidovitch Trotski na pós-revolução russa, de
forma romanceada e em três planos narrativos. Padura incrementa o enredo com as
vidas paralelas do homem mais marcante na biografia de Trotski depois do
arrivista e poderoso Stálin: o espanhol Ramón Mercader, seu algoz, levando a
reboque a existência de um medíocre, honesto e batalhador jornalista cubano que
também amava os cachorros e que se torna responsável pela obra, revelando-nos a
miserável e inacreditável vida dos cubanos pós-revolução.
Leon Trotsky |
Com um texto impecável e vibrante, conduzindo os fatos de modo
magistral, Padura não nos deixa largar a leitura enredando-nos em histórias da guerra
civil espanhola, dos meandros políticos da segunda guerra mundial, da revolução
bolchevique e do fantástico golpe engendrado por Stálin atribuindo a Trotsky a
responsabilidade de uma eventual traição aos desígnios da revolução proletária
soviética. Como se não bastasse – mas faz parte da história real – temos ainda
como protagonistas os artistas mexicanos Frida Khalo e seu marido Diego Rivera
e do escritor francês e teórico fundamentalista do surrealismo André Breton (a
quem o degredado russo declarou: “Para a arte, a liberdade é sagrada, é a sua
única salvação. Para a arte, tudo tem de ser tudo.”). Além de passagens pelo
gélido inverno ucraniano, pelos encantos mediterrâneos da Turquia, os fiordes
noruegueses, Barcelona, Paris e a estranha e congelante Moscou. E, principalmente,
o tórrido distrito de Coyoacán na Cidade do México.
Frida Khalo eTrotsky |
Conhecido no mundo como o grande companheiro
de Lenin, Trotski foi o colíder da Revolução Comunista de Outubro de 1917 na
Rússia dos czares; o comissário russo vitorioso da I Guerra e o criador do
Exército Vermelho. Um comunista - lá no fundo um detestável pequeno burguês -
que gostava de vida em sociedade, boa bebida, boa comida e almejava sempre o
conforto proporcionado pela renda de seus escritos. Apesar de, ele e seu
carrasco, terem um comportamento estoico na vida e na desgraça.
Trata-se de um livro bastante realista –
onde escorre vodca, sangue e medo por suas entrelinhas -, mas absolutamente
verdadeiro em meio a um romance histórico e noir.
Retrata-nos o esplendor da falseta governista do temido ditador Stalin; expõe
os meandros de seus serviços secretos, a monstruosidade da manipulação das
pessoas através da mentira e a crueldade de mais alto grau no tratamento dado à
população faminta, suja, doente, enregelada e maltrapilha. Nada além de um
governo genocida, característica, a partir de então, de outras “revoluções
comunistas” como a cubana, a chinesa e a cambojana, na sequência.
E Padura coloca-nos então a questão política
chave do livro: onde termina o ideal socialista e
inicia-se um processo totalitário? A obra faz-nos refletir se não seria necessário admitir que a
concepção marxista de sociedade e do socialismo estava errada. O próprio autor
considera que “a classe operária tinha demonstrado com a experiência russa sua
incapacidade de governar a si própria”. O autor, assim, traça um retrato histórico das
consequências da mentira ideológica e do seu poder destrutivo sobre a utopia mais importante do século XX.
Ramón Mercader preso no México |
Segundo o próprio Trotsky concluiu, “a União Soviética não
fora mais que a precursora de um novo sistema de exploração e que a sua
estrutura política tinha inevitavelmente de gerar uma nova ditadura, maquiada,
quando muito, com outra retórica...”. Era obrigado a reconhecer que o
stalinismo não tinha suas raízes no atraso da Rússia nem no ambiente
imperialista hostil dos czares, mas na incapacidade do proletariado de se
transformar em classe governante.
O golpe do montanhês georgiano Stalin na nascente revolução soviética,
após a morte de Lenin (supostamente envenenado por ordem do próprio Stalin),
decretando o purista Trotsky como traidor da revolução e o doloroso expurgo e
assassinato de milhões de indivíduos (a maioria inocente), instituindo o
império da mentira, leva-nos, sem dúvida, a concluir que a revolução comunista legítima
e original morreu no berço. Como disse o próprio proscrito Trotsky em 1937: “sinto
pena de mim mesmo e de todos os que, enganados e usados, acreditamos alguma vez
na validade da utopia fundada no já então desaparecido país dos sovietes...”.
Leonardo Padura |
Assim, o modelo tido hoje como comunista ou socialista nada
mais é que o conceito stalinista de governar, haja vista os países que na
atualidade são considerados comunistas – todos eles ditaduras totalitaristas sangrentas
como a de Stalin – entre os quais Cuba, Venezuela, Síria, Coréia do Norte,
China e, dissimuladamente, ainda a Rússia, dentre as 49 ditaduras ainda
existentes no mundo. O socialismo nesses países e a moderna história russa
demonstrada por Leonardo Padura vêm confirmar surpreendentemente que o comunismo nasceu
morto e que este livro O Homem que
Amava os Cachorros é seu epitáfio.
Valdemir Martins
Novembro de 2018.
*** Se você gostou deste comentário, siga-nos. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito do blog. Muito obrigado!