Habituar-se com a família conservadora e extremamente
devota. Esta é a primeira tarefa na leitura de O Desassossego da Noite,
brilhante livro de estreia da já premiada jovem
holandesa Marieke Lucas Rijneveld (29
anos), de texto
extremamente elaborado com rico teor literário. Um drama estonteante que quase
nos faz chegar às lágrimas e nos arranja ansiedade e profunda tristeza já no primeiro capítulo.
Vencedor do International Booker
Prize* de 2020, esta obra moderna, de forte linguagem poética, atravessa-nos
emocionalmente, mesmo estando tão distantes dos costumes da área rural dos
Países Baixos. É lá que se passa este romance contemporâneo de evocação terna e visceral
de uma infância presa entre a vergonha e a salvação.
A partir de um fato assaz marcante, a vida da família
altera-se peremptoriamente. E um fantasma passa a pesar e a marcá-la
constantemente. Os pais, com seus afazeres e suas crenças, profundamente
conservadores e carolas, preocupam-se com quem se foi e deixam de dar atenção
aos seus filhos. Estes, por sua vez, se
vão afastando lentamente da família para encontrar, no abandono a que foram deixados,
estratégias que lhes permitam lidar com a tragédia e sobreviver ao luto, mesmo
que isso implique muitas vezes violência e desassossego.
Rijneveld, através de sua protagonista - uma menina de doze
anos -, alfineta crítica e sistematicamente, às vezes até com sarcasmo, as considerações
religiosas, cobrando sempre resultados dos costumes e mesmices dos crentes,
entre eles seus pais e o próprio pastor. Usa com inteligência a argumentação
infantil para expressar suas convicções, críticas e pontos de vista sobre os
costumes e a sociedade, como o relato de uma criança na voz de um adulto.
Carregado de metáforas e “pensamentos sábios”, como reflete a
protagonista, o livro leva-nos a conjecturar sobre as situações cotidianas que vivenciamos.
Bule com nosso passado infantil, como uma colher a mexer numa panela, fazendo-o
também com nossas crenças, manias e preferências. “As pessoas precisam de
problemas pequenos para se sentirem maiores” é um dos exemplos que nos leva à
reflexão.
Uma obra para quem aprecia um bom texto e não apenas uma boa
história. Um texto muito bem estruturado, que leva à reflexão, às vezes
poético, às vezes sarcástico e até necessariamente vulgar, mas com excelência
de qualidade literária. Parte de estereótipos infantis para mostrar a
importância de se valorizar e apoiar as pessoas e suas fraquezas, as quais, por
vezes, levam-nos a atos extremos. Um livro que parte do dramático, passa até
pelo cômico e deixa o leitor surpreso, indignado, enojado e muito ansioso.
Este O Desassossego da Noite não tem
ainda, até esta data, uma edição brasileira. Li-o numa publicação portuguesa,
cujo e-book adquiri pela internet, por recomendação do excelente site literário
lusitano Wook. Mas, de qualquer forma, fica aqui minha forte recomendação
de leitura.
Valdemir Martins
29.06.21
* O
International Booker Prize é um laurel que homenageia (e premia com 50 mil
Libras) autores e tradutores por uma mesma obra de ficção traduzida para o
inglês e publicada no Reino Unido e Irlanda. Neste caso, a tradutora premiada
foi a também holandesa Michele Hutchison.
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Fotos: 1. Capa edição portuguesa; 2. Salvamento tardio; 3. Vacas leiteiras; 4. Gado sacrificado devido a aftosa ; 5. Rãs da protagonista ; 6. Marieke Lucas Rijneveld.
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