Inúmeras acepções definem uma obra de arte. E certamente a literatura ocupa lugar destacado nessa barafunda. E posso usar a obra O Último Voo do Flamingo, do premiado escritor e biólogo moçambicano Mia Couto, como um dos exemplos mais apropriados para esta afirmativa. Sua prosa a ratificará.
A prosa de Couto é incomparável. Escreve revelando as vozes africanas legítimas. Sua linguagem e vocabulário são peculiares, cobrindo-nos de termos e expressões autênticas – e muitas vezes poéticas - do povo moçambicano colonizado pelos portugueses, numa miscigenação deslumbrante e riquíssima para o plano literário.
A história se desenrola nos primeiros anos da consagração da independência de Moçambique e cessação dos conflitos internos (1992/93), ainda sob a proteção de forças de paz da ONU e algum resquício da influência dos aproveitadores comunistas durante a fragilização das contendas pela liberdade. Na remota aldeia de Tizangara soldados internacionais explodem deixando como rastros apenas e igualmente uma boina e um pênis decepado.
Assim, para se desvendar o mistério inúmeros personagens transitam pela trama narrada em primeira pessoa pelo protagonista, nomeado então “tradutor”, habitantes locais de destaque caricaturados, estrangeiros sem nexo e poderosos – e pretensos poderosos – medíocres e incultos (estes, comuns em qualquer pequena aldeia pelo mundo afora). Tudo numa crítica rasteira de Couto aos causadores, abusadores e aproveitadores das guerras e dos conflitos.
Sua capacidade de fabulação é magnífica, proporcionando uma estrutura forte e consistente em uma história mirabolante. Diante da iniquidade dos poderosos, personagens incorpóreos, de singular importância no contexto, participam da trama sem nenhum pudor do autor. Os trechos mais tocantes do livro são encontrados na descrição do bizarro nascimento do protagonista, pelo pai, as gravações (feitas por um italiano segundo protagonista) das belas sabedorias da prostituta e do triste relato da matança de flamingos.
Num posicionamento de preservação dos costumes e das tradições locais, Couto coloca as explosões como forma de afastar as influências e dominações estrangeiras, figurando até uma explosão do próprio país como forma de também se preservar a nação inteira da influência maléfica dos políticos e poderosos que exploram o país a tanto tempo, independentemente da colonização europeia.
Como grande e influente escritor que é Mia Couto traz-nos aqui uma elucidativa parcela do sofrimento – e da contida revolta - dos povos africanos diante de toda a miríade colonizadora e exploradora daquelas nações. Tudo com a mais livre criatividade possível numa obra literária. Brilhante.
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Valdemir Martins
07.04.2024
Fotos: 1. Capa do livro; 2. O voo do flamingo; 3. Os líderes tribais e os oficiais; 4. A matança de flamingos; 5. Os exércitos estrangeiros; 6. Mia Couto.
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