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24 de jun. de 2024

Tente alcançar a Cidade nas Nuvens.

Ao iniciar seu livro Cidade nas Nuvens, o premiado escritor norte americano Anthony Doerr (autor de Toda Luz que não Podemos Ver) leva-nos ao um ambiente futurista onde, em contraste, uma menina usa recursos rudimentares para seu divertimento. Como nesta história, o autor envolve-nos em mais quatro delas, tal qual contos isolados tendo um fio condutor: um livro muito antigo sobre uma fábula e passagens por bibliotecas.

Com uma belíssima escrita, Doerr transporta o leitor por fantasias adicionadas em realidades, em planos temporais distintos, nesta potente ficção. Situações de suspense entremeiam-se à magia de outras vividas por crianças. Cada criança tem seu problema peculiar e seu sonho particular permanentemente ameaçados pela vida real que os abarca. 

E de forma singular, naturalmente no desenrolar das histórias, personagens e situações vão se encaixando e engrenando, como no preparo  culinário quando se vão adicionando os ingredientes para, enfim, se preparar um bolo delicioso.

Dos leviatãs ao homem moderno, passando pela conquista de Constantinopla, a guerra da  Coreia e por uma nave espacial, nada escapa à criatividade de Doerr, num livro de literatura moderna muito bem elaborado e com excelente escrita. Enquanto coloca de forma certamente crítica alguns aspectos da vida moderna, principalmente tecnológica, Doerr surpreende-nos com uma reviravolta no enredo, fazendo uma importante denúncia sobre a manipulação de informações e imagens via internet.

Considero esta obra como revolucionária, além de contestadora, pois apresenta uma severa crítica ao fanatismo ecológico desmesurado, ao crescente embuste produzido pela tecnologia para atender a interesses específicos que não os verdadeiros, e outras fraudes sobre a sobrevivência da humanidade. 

A competência do autor na formação dos protagonistas é deslumbrante, envolvendo aspectos históricos que parecem estar fora do contexto mas que vão encaixar-se perfeitamente, - às vezes, até de forma surpreendente - na construção do enredo. Com o destaque à resiliência humana no uso correto da história para preservar culturas e inspirar as novas gerações.

Como os fragmentos do “livro protagonista”, Doerr fragmenta sua história em cinco protagonistas. E, como na história, ele faz com que o leitor monte um imenso e belo quebra-cabeças. E assim esta obra emociona e brilha excepcionalmente ao ser um “hino ao livro”, como reputa o próprio autor. Aliás, um dos melhores da atualidade.

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Valdemir Martins

27.04.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Menina na espaçonave; 3. Coruja na floresta; 4. Representação do livro; 5. Prisioneiros na Guerra da Coreia; 6. A menina de Constantinopla; 7. O autor Anthony Doerr.

14 de jun. de 2024

A Morte de Ivan Ilitch

A morte, em qualquer circunstância, sempre denota tristeza. Mas, Lev Tolstói consegue colocar alegria no início de uma de suas mais prestigiadas obras, A Morte de Ivan Ilitch, pois os companheiros do juiz Ilitch regozijam-se com a notícia de sua morte. Pelas benesses profissionais e pelo escolhido da escaveirada não ter sido um deles.

Assim, de forma cronologicamente inversa, Tolstói reconstrói brilhantemente a vida do juiz Ivan Ilitch, uma exceção em sua família de burocratas incompetentes. Aluno brilhante formou-se em direito e seguiu carreira no judiciário.

Casou-se com as maravilhas e os encantos dos primeiros tempos conjugais, e assombrou-se com a mudança de temperamento da esposa, tentando tirar-lhe o encanto e a decência da vida nos meses finais da primeira gravidez. Cresceu profissionalmente e relegou a família à menor importância em decorrência dos permanentes aborrecimentos com a esposa.

Vai a Petersburgo e consegue um emprego melhor, uma alta promoção no Ministério da Justiça com excelentes condições remuneratórias. E daí para frente galopa no sucesso, todos eram felizes, até começar o mau humor do juiz por problemas de saúde E muito e arrastado sofrimento. Até um encontro fatal e final. 

Um livro que fala da morte naquilo que ela é: um fato inconscientemente aguardado que quando eclode muda a vida dos vivos. Tolstói competentemente usa a morte na sua forte limitação. E explora ricamente a vida em seu entorno. Uma queda domiciliar leva o protagonista a ter inúmeros e constantes problemas de saúde a caminho da morte. E para isso explora magnificamente a vida de Ivan Ilitch.

As narrativas do sofrimento físico e psicológico são extremamente fortes, desesperantes a ponto de contagiar e emocionar o leitor. E aí se assenta o gênio criativo e descritivo de Tolstói. Adite-se a isto a vigorosa crítica social propiciada durante a agonia derradeira do protagonista, além da proposta inescapável de nos fazer refletir sobre nossa vida e nossos valores. 

Despeja no texto toda a força que a finitude da vida exerce nas pessoas de forma inconsiderada. Sempre à espreita, a morte está nas cobiçadas escaladas de cargos e promoções profissionais, nas perdas dos filhos, nas doenças esplanadas pelos médicos, nos jogos de cartas, nas noites mal dormidas e até nas músicas, até alcançar um permanente ápice na assombrada companhia do protagonista após este alcançar uma ótima posição pessoal e profissional. E dele não desata até ficarem para sempre juntos. 

Sou muito pequeno para a grandiosidade de Tolstói. O que você leu acima são as modestas impressões que este seu livro me propiciou, dentro do meu mundo e do meu contexto. Sinto-me, enfim, afortunado por ter lido e sentido mais uma das obras primas da literatura mundial. Uma obra tão brilhante.

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Valdemir Martins

15.04.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. A casa nova; 3. O imperdível carteado; 4. As consultas médicas; 5. O velório; 6. Lev Tolstói.

5 de jun. de 2024

O Último Voo do Flamingo

Inúmeras acepções definem uma obra de arte. E certamente a literatura ocupa lugar destacado nessa barafunda. E posso usar a obra O Último Voo do Flamingo, do premiado escritor e biólogo moçambicano Mia Couto, como um dos exemplos mais apropriados para esta afirmativa. Sua prosa a ratificará.

A prosa de Couto é incomparável. Escreve revelando as vozes africanas legítimas. Sua linguagem e vocabulário são peculiares, cobrindo-nos de termos e expressões autênticas – e muitas vezes poéticas - do povo moçambicano colonizado pelos portugueses, numa miscigenação deslumbrante e riquíssima para o plano literário. 

A história se desenrola nos primeiros anos da consagração da independência de Moçambique e cessação dos conflitos internos (1992/93), ainda sob a proteção de forças de paz da ONU e algum resquício da influência dos aproveitadores comunistas durante a fragilização das contendas pela liberdade. Na remota aldeia de Tizangara soldados internacionais explodem deixando como rastros apenas e igualmente uma boina e um pênis decepado.

Assim, para se desvendar o mistério inúmeros personagens transitam pela trama narrada em primeira pessoa pelo protagonista, nomeado então “tradutor”, habitantes locais de destaque caricaturados, estrangeiros sem nexo e poderosos – e pretensos poderosos – medíocres e incultos (estes, comuns em qualquer pequena aldeia pelo mundo afora). Tudo numa crítica rasteira de Couto aos causadores, abusadores e aproveitadores das guerras e dos conflitos. 

Sua capacidade de fabulação é magnífica, proporcionando uma estrutura forte e consistente em uma história mirabolante. Diante da iniquidade dos poderosos, personagens incorpóreos, de singular importância no contexto, participam da trama sem nenhum pudor do autor. Os trechos mais tocantes do livro são encontrados na descrição do bizarro nascimento do protagonista, pelo pai, as gravações (feitas por um italiano segundo protagonista) das belas sabedorias da prostituta e do triste relato da matança de flamingos.

Num posicionamento de preservação dos costumes e das tradições locais, Couto coloca as explosões como forma de afastar as influências e dominações estrangeiras, figurando até uma explosão do próprio país como forma de também se preservar a nação inteira da influência maléfica dos políticos e poderosos que exploram o país a tanto tempo, independentemente da colonização europeia.

Como grande e influente escritor que é Mia Couto traz-nos aqui uma elucidativa parcela do sofrimento – e da contida revolta - dos povos africanos diante de toda a miríade colonizadora e exploradora daquelas nações. Tudo com a mais livre criatividade possível numa obra literária. Brilhante.

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Valdemir Martins

07.04.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. O voo do flamingo; 3. Os líderes tribais e os oficiais; 4. A matança de flamingos; 5. Os exércitos estrangeiros; 6. Mia Couto.