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8 de jul. de 2024

O grotesco embuste do Frankenstein.

Muito provavelmente este é o livro mais vilipendiado de toda a história da Literatura. Transfigurado nas adaptações para cinema, o fabuloso Frankenstein, da competentíssima e talentosa Mary Shelley, ficou famoso com suas figuras cinematográficas grotescas com pele verde, cabeça achatada e parafusos ridiculamente espetados; um castelo aterrorizante, um cientista louco e um insólito ajudante corcunda. Tudo mentira; nada fiel ao romance. 

A criatura grotesca que atravessa o enredo tem descrição sucinta por parte da autora e sua figura horripilante, naturalmente, fica por conta da criação fantasiosa de cada leitor.

Para ler esta consagrada obra clássica, você tem que se despojar de todas aquelas alegorias e imbuir-se de que está diante de uma gigantesca obra literária escrita por uma mulher sensível e habilidosa. Trata-se de uma obra peculiar - praticamente epistolar - perceptivelmente escrita por uma mulher, sem características de masculinidade que usualmente marcam as obras de aventura (contrariando também as versões celulósicas). Isso fica reiterado no estilo da carta recebida pelo doutor Frankenstein escrita por sua prima irmã cobrando notícias ainda no primeiro terço do livro.

Antes disso, num texto direto, Shelley já havia narrado a evolução desse cientista e de sua fabulosa criação ao dar vida a um ser inanimado, algo que aterrorizou a si próprio e mudou sua vida. Mas estranhamente, o ser que assombrou o criador, desaparece da obra por um bom tempo, Nesse ínterim fatos pessoalmente afetivos para o protagonista se desenrolam entre tragédias familiares e importante convivência com seu conterrâneo e grande amigo Clerval.

Apesar de toda a tragédia central do livro, com extrema dramaticidade a autora enreda-nos em outros tantos desastres tão trágicos e sofríveis quanto a criação de um monstro infame. A insegurança sentimental e emocional são uma constante no protagonista. O homem que desenvolveu e tinha consigo o poder de reativar a vida numa criatura morta, tornara-se um ser frágil, covarde e extremamente fraco em sua estrutura emocional. Realmente um dramalhão; um romance dark e depressivo maravilhosamente escrito.

Inspirada nas viagens com seu marido, Shelley leva-nos até a grandeza solitária das paisagens deslumbrantes do Vale do Chamonix, aos pés do Mont Blanc, nos Alpes franco-suíços. Lá, o protagonista reencontra sua criatura e, surpreendentemente, o “monstro” conta sua história e revela-se um ser gracioso, inteligente e muito bondoso. Sua narrativa comovente traz um contraste radical com o que até ali se havia lido, tão iluminada e feliz se evidencia. A criatura empreende, então, seu próprio crescimento intelectual e evolui por autodidatismo.


Pressionado pela criatura, Frankenstein cede a seus desejos e assume com ele um compromisso. Mas, o protagonista protela seus afazeres e passa a negligenciar seu compromisso, com consequências funestas.

Pode não ser a intenção da autora, mas entrevejo nas palavras derradeiras de Frankenstein uma crítica contundente às ambições científicas e tecnológicas sem a segurança de um objetivo claro, moral e realmente benéfico. Mas fica bastante claro para os leitores no remanescente discurso do “monstro” que a inveja impotente e a indignação amarga geram a sede insaciável de vingança. E  fica o recado da escritora.


Como feminista pioneira, Shelley não deixa de valorizar as personagens mulheres e de criticar dissimuladamente, por exemplo, o fato de uma criada ter que ser ignorante ou não instruida. Deprecia também a poesia viril e heroica da Grécia e de Roma em franca predileção pela literatura médio oriental (persa e árabe).

Apesar de a maioria das pessoas e da crítica considerarem Frankenstein como a obra prima de Mary Shelley, particularmente acredito que seu magnum opus seja a ficção apocalíptica O Último Homem, a qual recomendo fortemente.


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Valdemir Martins 

05.05.2024


Fotos: 1. Capa do livro; 2. O "monstro" impostor popular; 3. A faculdade de Ingolstadt; 4. O cientista e sua noiva; 5. A cidade de Chamonix e o Mont-Blanc; 6. O navio no Circulo Polar Ártico; 7. Mary Shelley em gravura da época.


PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO (1818)

O acontecimento que fundamenta esta ficção já não é considerado, segundo o dr. Darwin e alguns dos fisiologistas alemães, impossível. Não se deve presumir que eu atribua o mais remoto grau de fé e seriedade a tais devaneios; não obstante, ao aceitar que funcionam como argumento para um trabalho de fantasia, não julgo que apenas teço fios de horrores sobrenaturais.” (Mary Shelley) …/


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