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10 de jan. de 2021

Torto Arado: a revelação de um grande talento brasileiro. *****

Mudos ou não, o baiano Itamar Vieira Júnior faz seus pouco conhecidos personagens falarem em sua brilhante obra Torto Arado, recém-ganhadora do Prêmio Oceanos 2020, a mais importante láurea literária da Língua Portuguesa. Não bastasse a proeza, a obra de estreia de Vieira já havia triunfado em 2018 – ano de seu lançamento - ao arrebatar o Prêmio Leya. 

Não há diálogos grafados no texto, mas eles proliferam no enredo na medida em que o leitor vai se envolvendo – sim, pois neste livro você não apenas lê, mas envolve-se fortemente – na história da família do Seu Zeca Chapéu Grande e da comunidade local de Água Negra, na Chapada Diamantina, Bahia. 

A escrita extremamente simples e límpida de Vieira esconde uma história e um ambiente rural brasileiro complexos e pouco conhecidos. A humildade e a inocência do rico elenco de características únicas e comoventes vão transformando-se numa epítome de ótimas reflexões da vida, principalmente pelas irmãs que narram a maior parte desta história. 

Vieira consegue a proeza de escrever como mulher, uma vez que as contadoras dos dramas familiares são duas jovens e uma criatura encantada. Nas narrativas apresentam-se a tradicional estrutura rural do sertão brasileiro e seu legado ainda com alguns resquícios escravocratas. 

Por ter formação e doutorado em Estudos Étnicos e Africanos e por sua experiência em trabalhar com comunidades típicas e originais da região – claro, além do talento literário -, o autor alcança um nível autêntico de expressão, de denúncia e de protesto, sem a necessidade de mimicar, tornando claras as vozes de deficientes, afrodescendentes, indígenas, mulheres, os ainda semi-escravizados e os que vivem em servidão. Apesar do regionalismo do romance, a linguagem clara e sucinta de Vieira subentende um tesouro de universalidade somente encontrado em grandes mestres brasileiros nesse tipo de narrativa, como Graciliano, Rosa, Nassar, Lins do Rego e Rachel de Queiroz. 

Na saga desta família e de sua comunidade quilombola as injustiças crescem na proporção de suas proles. Os costumes simples e paupérrimos podem até chocar alguns, da mesma forma que revolta outros. A narrativa de Vieira sobre o definhamento e passamento de um dos personagens-chave, por exemplo, é arrebatadora e comovente, tanto quanto a descrição do velório que a segue, com seus sons, gestos, costumes. Emocionante. 

O lirismo nas descrições da natureza, das crenças, das pessoas, das tipicidades, somados à história dos povos do sertão com suas peculiaridades exíguas ditadas pela tradição e a violência dos coronéis, tornam a obra um testemunho fundamental para se entender importantes aspectos dos pouco conhecidos quilombolas.
 
Guarde este nome: Itamar Vieira Júnior. Estamos felizmente diante de mais um grande talento literário brasileiro. Um escritor de verdade, com estrutura, forma e conteúdos dignos de figurarem na ABL, ao contrário de alguns poucos que presentemente lá estão.

Vieira honra aqui o nome de seu genitor, sua formação e seu cargo público. Espero que assim continue, sem despencar para o polemismo e a militância. Precisamos dele no rol dos grandes escritores brasileiros. Seja bem-vindo! 

Valdemir Martins
10.01.2021

Fotos: 1. capa do livro; 2. quilombola típico; 3. tapera da comunidade rural; 4. cerrado baiano; Itamar Vieira Junior.

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2 de dez. de 2020

Leia desconfiando de todos; a suspeita ficou muda. ***

Tive uma sensação muito estranha ao ler
A Paciente Silenciosa, do cipriota- inglês Alex Michaelides, pois este drama de suspense bem psicológico prende-nos na leitura e simultaneamente a desestimula pela pouca qualidade literária da obra.

Trata-se de uma trama intrincada e inteligente, estruturada de forma intrigante, como numa obra de Agatha Christie, levando-nos a desconfiar praticamente de todos os personagens num assassinato cuja esposa é a maior suspeita, apesar de, reconhecidamente, amar demais o marido encontrado chacinado.

A determinação do protagonista em fazer a suspeita falar e desvendar a dúvida se ela realmente atirou no marido o arrasta para um caminho tortuoso que sugere que as raízes do silêncio da esposa são muito mais profundas do que ele jamais poderia imaginar. E diante da verdade, ele vai titubear.

Assim, o autor elabora um final eletrizante, entre mistério e drama, levando o leitor a questionar tudo o que acabou de ler.

Esse thriller psicológico provocativo de estreia revela Alex Michaelides como um grande autor para quem gosta do gênero. E o coloca na lista dos grandes vendedores de livros policiais modernos, como Jo Nesbo e James Patterson, autores que produzem thrillers expressos, sem muita preocupação com o valor literário.

A obra teve a produção de sua versão cinematográfica interrompida em função da pandemia do Covid-19.


Valdemir Martins

02.12.2020

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9 de nov. de 2020

Mesmo na mais escura das noites existe luz.


Pelas próprias condições econômicas, força e união do povo e das colônias judaicas pelo mundo, deram-se o devido valor ao atroz Holocausto, hoje erroneamente considerado o maior genocídio da história mundial. Ou até, como manifestam alguns governos muçulmanos radicais, o Holocausto é um mito. Mas, quem conhece bem a História sabe que ele é real e que, além dele, outros massacres monumentais, como o Holodonor esfamélico na Ucrânia, o extermínio irracional e ilógico cometido por sanguinários ditadores como Mao Tse Tung na Revolução Cultural chinesa e Joseph Stálin na revolução bolchevique soviética e na II Guerra Mundial, ultrapassam qualquer imaginação humana. 

Apesar da força genocida dos atos de Hitler, os de Mao e de Stálin nada deixam de vantagem para os nazistas. Isto pode ser lido e entendido em muitos livros que tratam do assunto. 

Assim como marcou a vida de milhões de russos e de povos dominados pelos soviéticos em todos os tempos, perda, sofrimento, medo e terror marcaram a vida dos povos forçadamente agregados ao império comunista soviético. Desde as dinastias czaristas até a Perestroica, passando pelo sanguinário regime comunista estalinista, nada mudou. 

Trens para os gulags
E é disso que trata o livro A Vida em Tons de Cinza, da lituano-americana Ruta Sepetys. A barbárie na invasão da Lituânia pelos comunistas na década de 1940 é aqui representada pela história de uma família lituana e seus vizinhos nesse execrável capítulo da História, representando a vida e o destino de 20 a 60 milhões de pessoas (dependendo da fonte), de diversos povos, que passaram pelas mãos sanguinolentas dos bolcheviques que resultou no extermínio de um terço dos povos do Báltico durante o reinado de horror stalinista. 

Numa linguagem simples e direta, pelo fato de a narração ser efetuada por uma jovem, Sepetys – após entrevistar vários sobreviventes - registrou criativamente este romance dramático. Transporta-nos para lugares às vezes lindos e na maioria das vezes horrorosos, entremeando, no drama, fatos poéticos nas lembranças da protagonista. E assim cativa nossa leitura e nos faz devorar o livro ansiosamente. 

Aprisionada em gulags da Sibéria com sua mãe e seu irmão, a protagonista de quinze anos – valendo-se de seus incríveis dotes artísticos – tenta contato com o pai através de imagens por ela desenhadas, sem saber se ele sobreviveu. E, como se não fosse suficiente, suas agruras e barbaridades continuam até a região ártica, onde apresenta-nos uma história devastadora pela violência e humilhações que vivenciam. 

Ruta Sepetys
Apesar de serem hoje nações prósperas, isto é o que restou dos povos bálticos enquanto seus países eram varridos do mapa no século passado: história. Uma história extremamente desumana que é-nos apresentada de maneira direta neste excelente romance de Ruta Sepetys. Ela consegue, contando-nos apenas o drama de um grupo de expatriados, expor claramente a barbárie deste genocídio pouco conhecido da história. 

Valdemir Martins 

02.11.2020

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2 de nov. de 2020

Até onde pode chegar um ato de louca paixão ****

O consagrado escritor norte-americano Scott Turow pressentiu no jovem Raphael Montes uma promessa brasileira como grande escritor de policiais, após ler Suicidas, obra de estreia do novo talento, em 2011. Montes, então, veio evoluindo a cada obra tornando-se também um escritor policial e de suspense de sucesso em terras brasileiras.

Scott Turow
Em seu romance Dias Perfeitos, de 2014, - uma história de amor obsessivo - tudo começa muito ameno, comum e óbvio. Aos poucos cresce torna-se grudento e você não consegue parar de ler para saber até onde pode chegar um ato de louca paixão. Nesta obra bem estruturada, percebe-se claramente que Montes ainda procura por uma linguagem literária mais consistente para marcar seu estilo. Porém seu enredo é estonteante, surpreendente a cada página.

Aqui ele demonstra – desde cedo – sua capacidade de esmiuçar uma mente doentia e de explorar dosada e adequadamente sua psique. Numa história vibrante, dinâmica, as peripécias do protagonista nos gratificam com reviravoltas surpreendentes, situações inacreditáveis. Algumas poucas até forçadas ou improváveis, o que demonstra o autor ainda em fase de amadurecimento. Um final morno, como no início, pode até decepcionar alguns leitores.

Ilha Grande
Mas, é espantoso o nível de crescimento do enredo e envolvimento proporcionados por Montes, chegando a um ápice de loucura e situações macabras, escatológicas e de terror dignas de Clive Barker e Stephen King, neste, lembrando a obra Misery. O inteligente e paranoico protagonista parece-nos às vezes um parvo a sonhar grandiosidades e felicidades pretensamente impossíveis. Mas caindo na realidade das situações bastante criativas do autor, apresenta-se mais como um frio macho assexuado e um personagem sombrio com fortes indícios de psicopatia.

O que parecia um inconsequente encontro casual num churrasco de conhecidos num domingo transforma-se no pesadelo brutal para os dois protagonistas de almas atormentadas e para todos os personagens principais da obra. E, claro, para os felizardos leitores que escolheram ler Dias Perfeitos.

O livro já ganhou o mundo sendo comercializado para catorze países e os direitos da obra foram vendidos para o cinema, em produção nacional a ser dirigida por Daniel Filho.

Valdemir Martins

27.10.2020

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15 de out. de 2020

Sobre Como um Monstro é Criado *****

Uma façanha incrível consegue o estreante – e já premiado - escritor sueco Niklas Natt och Dag em sua obra inicial 1793: você lê no escuro. Sim, é a incrível sensação que temos ao ler este eletrizante e ousado thriller noir, um dramático romance policial histórico transcorrido em Estocolmo no final do século XVIII.

Desde os ambientes descritos, sejam numa taberna, num quarto ou num escritório, até as peripécias em resgate de corpo, batalhas, investigações ou caminhadas, tudo sugere escuridão ou pouca luz, tornando seu universo muito pesado, apesar da leitura fácil e leve. Esse clima leva intencionalmente o leitor ao condicionamento do ambiente que o autor quer que se leia a obra. E você passa a participar dela no intenso frio e nas sombras.

Até os dois protagonistas e demais personagens são carregados de peso, com suas dores, sujeiras, doenças, bebedeiras, roupas e defeitos físicos. E assim, proporcionam uma perturbadora leitura sempre mais acentuada a cada página. A trama desenvolve-se em Estocolmo e seus arredores, com um pit stop na Revolução Francesa. Aqui, num drama histórico, a capital sueca mais parece estar na Idade das Trevas ou Idade Média e não no final do século XVIII, em plena modernidade histórica. Tudo é extremamente grotesco, escuro, fétido, mórbido, insalubre: outro desafio para o leitor.

O fio condutor, um crime bárbaro, leva-nos aos excessos do poder. Não dos grandes poderosos, mas dos menores, os mais perigosos e contundentes, causando-nos revolta e indignação de níveis extremos. Um antídoto intenso àqueles arautos que atualmente cultuam o empoderamento de grupos em suas diversidades.

Claro que ler 1793 incomoda. É uma obra chocante. Natt och Dag equivale e às vezes supera, em terror, o aclamado Stephen King. E é insuperável nas descrições mundanas e escatológicas. Mescla suspense e pressão psicológica de maneira magistral e, assim, prende o leitor naquele ponto de não conseguir largar a leitura. Sem obviedades, surpreende a cada página com um realismo cru, pungente e muitas vezes repugnante. Para nós latinos, a única dificuldade desta leitura reside nos nomes de pessoas e locais, algo extremamente difícil, passando a ser mais um desafio no livro.

Este é um surpreendente thriller histórico que “retrata a capacidade de se ser cruel em nome da sobrevivência ou da ganância, como também a capacidade para o amor, a amizade e o desejo de um mundo melhor.”

Hoje, em tempos de hipersensibilidade social, onde muitas pessoas revoltam-se gratuitamente ao se sentirem ofendidas e agredidas por simples palavras ou imagens na tv ou nas redes sociais, levando consigo irracionalmente seus grupos de convívio de raça, religião e opção sexual, é importante que 1793 seja lido. Niklas Natt och Dag irá apresentar-lhes o que realmente é sofrimento, sujeira, ignorância, intolerância e injustiça.

Nesta era em que eternas desigualdades são totalmente visíveis, aprender como um monstro é criado em época de predominância dos monstros talvez amenize essa injustificada e incipiente ânsia por justiça social em confortáveis tempos de internet.


Valdemir Martins

14.10.2020 

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Obs: segundo o próprio autor, este é o primeiro livro da trilogia denominada Bellman Noir. O segundo livro, 1794, já foi publicado na Europa e o terceiro está no prelo.


2 de out. de 2020

A luminosidade em seres tão mergulhados nas trevas ****

Após ler os excelentes “A Estrada” e “Onde os Velhos não Têm Vez” (este, base para o filme ganhador do Oscar em 2007), li o impressionante Meridiano de Sangue ou O Crepúsculo Vermelho no Oeste, do norte americano Cormac McCarthy. Um faroeste diferenciado, extremamente realista e chocante. Um western reinventado, onde o absurdo e a alucinação se sobrepõem à realidade.

O calor e ...

Aqui, o leitor sente o terrível calor e secura do inóspito oeste norte americano e do norte mexicano, bem como seu frio extremo mais ao norte; sente a terrível fedentina dos corpos imundos dos personagens e seus piolhos; gruda no barro e no sangue de inúmeros mortos; arrepia-se e fica abalado com carnificinas de índios e mexicanos protagonizadas por um grupo extremamente violento de americanos desgarrados e desencaminhados de sua pátria, 
deleitando-se em sua monstruosa missão infame contratada por poderosos regionais para eliminar o maior número possível de índios. E, ironicamente, levar seus escalpos como comprovantes.

...o frio do deserto.

Quem lê Meridiano de Sangue não sai a mesma pessoa no final do livro. Intermitentes deambulações pela violência extremamente explícita abalizam o arcabouço desta assustadora obra de McCarthy. Num crescendo, com detalhes meticulosamente sanguinolentos e escatológicos, a violência tropeça sempre nos trechos ou frases de lirismo e poesia, estilo e sabedoria de McCarthy.

O bando

O protagonista não tem nome. De “garoto” ele transforma-se em homem no momento certo do enredo e, para sobreviver, precisa ser tão ou mais violento que seus companheiros e inimigos. Seu co-protagonista, um juiz poliglota, culto, multi prodigioso, às vezes asqueroso e caricato, é na realidade um monstro dentro de toda alucinante violência conduzida pelo perpétuo e ambíguo personagem.

É um majestoso romance noir sobre aspectos cruciantes da história do oeste norte americano, sem concessões à cinematografia: sem John Wayne ou Clint Eastwood ou Jerônimo ou sargento Garcia. Nem Rin Tin Tin. A linguagem do livro, seus personagens, as paisagens, as descrições eventuais de romance de formação, a intensidade dos fatos e seu ritmo alucinante, constroem a grandeza da obra.

Os Apaches

O controvertido crítico literário norte americano Harold Bloom, ao considerar que este romance sobre o western “jamais será superado, escreveu: “A merecida notoriedade de ‘Moby Dick’ e ‘Enquanto Agonizo’ é levada adiante por ‘Meridiano de Sangue’, pois Cormac McCarthy é discípulo de Melville e Faulkner. Eu diria que nenhum romancista norte-americano vivo, nem mesmo Pynchon, oferece-nos um livro tão marcante e memorável quanto ‘Meridiano de Sangue’...”.


No final, com suas ponderações, McCarthy expõe o âmago da obra, em meio aos discursos infindáveis do grotesco juiz Holden, esclarecendo que era contra o vazio e o desespero que o grupo pegava em armas e se refastelava em sangue.

Todos seus personagens são absolutamente humanos com suas obscuridades e brilhos, uns mais outros menos, como todos nós. Mas McCarthy nos faz enxergar “a luminosidade nesses seres tão mergulhados nas trevas”.

Valdemir Martins

30.9.2020

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12 de set. de 2020

Abrindo uma porta sobre a noite. ****

Culpa-se a falha provável da editora, da revisão ou da gráfica ao início da leitura da obra Cemitério de Pianos, do premiado poeta e romancista português José Luís Peixoto, ao perceber-se a narrativa bruscamente quebrada por uma nova, então desconhecida. Uma constante no livro.

Conserto de pianos
Baseado na história da vida real de uma atleta fundista português, o livro não nos fala de esportes, mas das memórias póstumas de seu pai, um competente marceneiro sempre preocupado com os episódios peculiares de sua família; os felizes, os mórbidos e os terríveis. Por três gerações.

O almoço de domingo
A taberna dos vinhos
Abordando um cotidiano que deve ser comum ou similar a muitos leitores, Peixoto intercala-o sempre abruptamente com a mesma história num outro momento, e sempre numa linguagem simples, porém numa construção extremamente criativa e poética, ás vezes rotineira. Peixoto transmite a sensação de que escreve com sofreguidão, atropelando a sequência lógica do drama, resultando numa nova forma de escrever, para muitos, confusa. Para mim, resultado de sua prevalecente predisposição poética. Um encanto para quem curte boa literatura.

A maratona de Francisco
Em certos pontos, as memórias passam a ser do próprio fundista, com retrocessos às memórias do pai. Intermitentes reminiscências da violência doméstica, das paixões incontroláveis e às vezes inconsequentes; das descobertas auspiciosas e das labutas constantes, ao fim, regadas por bons canecos de vinho.

José Luís Peixoto
Peixoto tem uma extraordinária forma de interpretar o mundo, expressa pelas suas escolhas certeiras de linguagem e de imagens. Aqui, o fantástico é contado com a naturalidade do quotidiano. Ele escreve com grande sentido de linguagem poética e grande domínio da língua portuguesa. Tendo pianos como liame da maior parte dos dramas da obra, Peixoto coloca um anjo, quase ao final, a desconstruir o protagonista e a concluir o atormentado sofrimento do maratonista Francisco.

Valdemir Martins

09.09.2020

21 de ago. de 2020

Uma das mais belas personagens femininas da literatura universal *****


Se eu disser que Ana-não, protagonista e título do quase desconhecido – no Brasil - livro do espanhol Agustín Gómez-Arcos, é uma das mais belas personagens femininas da literatura de todos os tempos, muitos atinarão exagero de minha parte. Mas ela é única em sua beleza, traduzida pelo autor em amor, perseverança, amargura e grandiosidade em sua figura humana.

Porta da casa de Ana-não
Arcos, falecido precocemente aos 59 anos em 1998 em Paris, vítima de câncer, é considerado um anarquista literário altamente inovador pela crítica inglesa e francesa. Pouco sucesso obteve na terra natal por ser um crítico ferrenho e amargo do regime ditatorial franquista, conquistando, deste modo, muitos leitores pela Europa livre, principalmente na Inglaterra e França, onde residiu e trabalhou.

Pão, presente para o filho
Por lá, Ana-não foi um de seus maiores sucessos pelo fato de ser o menos polêmico de seus livros e por abordar uma protagonista extremamente humana. A obra concentra-se na dor e no luto de uma viúva que atravessa o território espanhol a pé, do sul ao norte, para encontrar o filho. Nesta impressionante aventura materna, ela vê a presença constante da morte que lhe passa recados dúbios sobre a certeza de concluir sua jornada e encontrar o ente querido.

Andaluzia - terra de Ana-não
Trata-se, sem dúvida, de um terno e agitado poema em forma de prosa. Uma narrativa diferenciada que se concentra na solidão aflitiva de uma mãe de família e no seu obcecado propósito de rever o filho querido e de levar-lhe algo que muito gosta. Narra sua lentidão numa triste jornada por uma Espanha estranha - moderna e diferente de tudo que ela se lembrava -, em seu caminho para ver o filho sobrevivente, preso para a vida.

Agustín Gómez-Arcos
Possivelmente por razões puramente comerciais, o único livro de Gómez-Arcos publicado por aqui foi Ana-não. Livros preciosos como Maria Republica, L'enfant pain e The Carnivorous Lamb, somente importados e em espanhol, francês e inglês. Assim, quem desejar ter o prazer de ler este grande autor em português só encontrará o livro em sebos físicos e no site Estante Virtual (procure pelo autor) ou eventualmente no Mercado Livre.

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Valdemir Martins
18.08.2020

11 de ago. de 2020

Só mesmo seres inanimados podem ter tanta vida. *****

Ler Atlas de Nuvens do inglês David Mitchell é como saborear um prato de deliciosos canapés variados, com seis sabores, um melhor que o outro. Este é o sentido figurado sobre o prazer de ler esta obra de vanguarda literária, de estrutura inovadora e surpreendente. Utilizando a frase de um personagem do início do livro eu diria que “só mesmo seres inanimados podem ter tanta vida”, considerando-se aqui os seres inanimados como cada uma das seis criativas histórias que compõem a obra.

O ex-escravo Autua e Adam Ewing
Neste livro, considerado a obra-prima de Mitchell, ele judia do leitor. Atormenta-nos com uma certa falta de apoteoses, com os gritos calados. Ele joga com o excitamento e a seguida resignação ao mesmo tempo 
em que vai acumulando pontos de alusão para preparar-nos para algo maior. Arguto, é um grande jogador literário, bulindo com quebra-cabeças muito inteligentes.

Frobisher e o velho compositor
 Aliás, inteligência é o que não falta neste precioso enredo, retalhado por diário de viagem, romance epistolar, novela policial, thriller, drama e aventura distópicos, todos com diálogos inteligentes e arguciosos, dramáticos e irônicos, coloquiais e sofisticados. Todos enredados num contexto de esperança, não só pelo texto, como pela recorrência de referências dos textos coirmãos e uma tatuagem em forma de cometa nos protagonistas que pode até sugerir possíveis reencarnações.

A jornalista Luisa Rey e o segurança
Mitchell é tão competente que você acredita, ao passar de uma história para outra, que está lendo o texto de um novo autor, tamanha a mudança de estilo percebida na história seguinte. E para completar, os primeiros cinco textos têm aproximadamente o mesmo volume, enquanto a sexta narrativa é diferenciada. Trata-se de uma história ambientada num futuro pós-apocalíptico em que a civilização e a linguagem humanas se deterioraram assustadoramente e voltam aos períodos que ironicamente hoje denominaríamos de bárbaros, não fosse o excepcional e assustador desenvolvimento tecnológico em questão.

O atrapalhado editor Cavendish
A quinta história é uma distopia pressaga, de linguagem claudicante e inúmeros vocábulos inventados, a maioria de contrações de palavras normais, resultando na perfeita compreensão do texto. Já na sexta narrativa, a linguagem é inteiramente coloquial, informal e contracionada, porém bastante dinâmica e até divertida de se ler, num texto contado na primeira pessoa e com muitos diálogos. Enfim, recomendo que as seis histórias não devem ser percebidas individualmente, mas em sua totalidade, como parte de uma grande história.

A clone Sonmi-451
O livro, como um todo, torna-se uma charada filosófica onde Mitchell afirma sua crença na bondade e na solidariedade humanas prevalecendo sobre o egoísmo, o fanatismo cego, a maldade e a violência de pessoas ardilosas e traiçoeiras que agem sós ou liderando comunidades rotuladas de governamentais, grupais, empresariais ou religiosas.

Zachry e a misteriosa Meronym
David Mitchell
Enfim, Mitchell é sem dúvida um vanguardista literário. A estrutura deste Atlas de Nuvens bem atesta esta certeza, corroborada pela linguagem extremamente criativa, multifacetada, à vezes poética e incrivelmente originais, em enredos surpreendentes, cultos, com ricos aspectos de pesquisa, além de revolucionários na forma e conteúdo. Obrigatório a quem gosta de inovações e qualidade literária.

Como estes textos inanimados têm tanta vida!

Valdemir Martins
31.07.2020

Obs: as fotos referem-se a cenas do filme - com o título ridículo de "A Viagem" - de 2012 baseado no livro e com famosos no elenco.

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