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1 de abr. de 2023

O Caminho de Casa

Nunca teremos a dimensão plena da diáspora africana ocorrida em função do uso abusivo da mão de obra escrava para o desenvolvimento das novas colônias europeias, uma vez que o negro africano nunca foi bem visto ou aceito nos países e comunidades europeias, a partir do século XVII. Mas, graças à Literatura e às boas pesquisas realizadas por alguns escritores, podemos pelo menos ter uma noção do que foi essa barbárie. É o caso da obra O Caminho de Casa, livro de estreia da ganesa Yaa Gyasi.

Nascida em Gana e criada nos Estados Unidos, a jovem Gyasi tornou-se um dos nomes mais comentados na cena literária norte-americana em 2016. Este seu romance recebeu resenhas estreladas dos mais importantes jornais e revistas daquele país, alcançou a disputada lista dos mais vendidos do The New York Times, foi incluído na prestigiosa lista dos 100 livros notáveis do ano do mesmo jornal e conquistou o prêmio PEN/Hemingway de melhor romance de estreia.

Com uma narrativa poderosa e envolvente que começa no século XVIII, numa tribo africana, e vai até os Estados Unidos dos dias de hoje, Gyasi apresenta-nos, de forma bastante realista, as consequências da captura principalmente de jovens ganeses e do respectivo comércio de escravos dos dois lados do Atlântico ao acompanhar a trajetória de duas meias-irmãs desconhecidas uma da outra, e das gerações seguintes dessa linhagem separada pela escravidão.

As narrações das aldeias e famílias ganesas são muito cativantes, criativas e comoventes. Levam-nos aos ambientes caseiros e comunitários das tribos, suas lutas, paixões, traições e tragédias; sonhos e costumes. Já as narrações dos dramas vividos nas prisões e junto às hostes dos comerciantes e seus mancomunados agentes europeus são na maioria bastante chocantes.

Tudo isso depois é transposto para as fazendas norte-americanas onde os suplícios se acentuam de forma bastante trágica. A trama nos é contada de forma dinâmica e num ritmo denso o suficiente para absorvermos a grande quantidade de personagens diversificados, sem perder seus liames.

E, de emoção seguida de emoção, sete gerações são envolvidas numa grande obra que reflete os sofrimentos e alegrias de incomensurável número de pessoas que tiveram suas origens na África e foram dispersas em vidas sofridas, heroicas e até bem sucedidas por todas as Américas.

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Valdemir Martins

31.03.2023

Fotos: 1. Capa do livro:; 2. Aldeia típica; 3. A captura; 4. Símbolo de lutas na América; 5. Os negros bem sucedidos; 6. Yaa Gyasi

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21 de fev. de 2023

Desonra, uma reflexão sobre o que nos honra na vida.


Apesar de sabermos, até vulgarmente, que cada ser é feliz à sua maneira, para o freguês regular de uma meretriz na Cidade do Cabo, “nenhum homem é feliz até morrer”, como na última fala do coro de Édipo. E assim, nesta atmosfera, temos o início do intrigante romance Desonra do consagrado escritor sul africano J. M. Coetzee, laureado com o Nobel de Literatura em 2003, e premiado na França, na Irlanda e em Israel; foi o primeiro autor agraciado duas vezes com o Man Booker Prize.

E a felicidade do professor protagonista, encontrada somente nos momentos de alcova com suas conquistas - ou com qualquer outra mulher, pois ele não tem limites - é suspensa quando, arrogante, é desmascarado pelo seu próprio círculo de trabalho.

O excêntrico protagonista sempre esteve cercado de mulheres desde a infância. É um mulherengo incontrolável e Coetzee, inspirado num poema do britânico Lord Byron, cria um enredo brilhante para este incontrolável namorador, um “espírito errante” como na composição byroniana.

Num momento de confronto entre a obra do poeta e esta do romancista, cria-se um ato de colisão do personagem de Byron com o de Coetzee, e é intenso e primoroso. Revela também aqui, sem dúvidas, a genialidade literária do autor. Como o Lúcifer do poeta, o protagonista de Coetzee não age por princípios, mas por impulsos.

E, mais uma vez, um literato traz à baila o degenerado jeito de ser da imprensa moderna: baseado num pretenso fato, traçar narrativas para demolirem-se reputações. Tudo para, irresponsavelmente, garantir audiências e visualizações e, portanto, verbas publicitárias para sobrevivência da corrosiva mídia. Segundo o texto, os jornalistas agem como “caçadores que encurralaram um animal estranho e não sabem como acabar com ele.”

Finalmente, depois de longa procrastinação, o protagonista inicia ensaios para escrever uma ópera sobre Byron na Itália. O que alcança, consciente ou não, são encenações de flashes de sua própria vida como se fossem as do poeta, mudando apenas os personagens e os lugares. E como sua vida, fica incompleta. Assim, como tudo em sua existência, deixa de viver a felicidade, mesmo antes de morrer, corroborando o pensamento de Sófocles.

O livro é uma lição literária e o texto conciso de Coetzee torna-se mais mordaz quando se embrenha nas relações branco-negros no pós-apartheid envolvendo a família do professor, em partes marcantes e decisivas do livro. A violência percorre toda a obra deixando suas marcas tóxicas nos principais relacionamentos e nos abusos, sejam de pessoas ou de animais.

Envolto em sua teimosia e arrogância, o protagonista caminha para a velhice percebendo-a verdadeiramente num confronto direto com sua vida, em uma encruzilhada que lhe ocorre quando tenta conviver com a filha. O que construiu de sólido? E esta é a grande reflexão que a obra nos leva a fazer sobre nossas próprias vidas. Principalmente aos que já suplantaram a chamada meia idade. Somos honrados? O que nos restou de tudo o que fizemos?

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Valdemir Martins

20.02.2023

Obs: Mesmo não tendo a menor sombra de preconceito em seu texto, o livro teve uma forte repercussão na África do Sul, apenas por abordar a existência de conflitos ainda como ranço do apartheid, obrigando Coetzee a abandonar sua terra natal e se estabelecer em Adelaide, na Austrália.

Fotos: 1. Capa do livro:; 2. A Universidade do Cabo; 3. A aula fatídica; 4. A fazenda; 5. A feira; 6. O sacrifício de cães; 7. J. M. Coetzee.

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8 de fev. de 2023

A Segunda Espada: uma história de maio.

Numa narrativa alucinante e riquíssima em referências pessoais, num texto claro e brilhante, o escritor pós-modernista austríaco de descendência eslovena Peter Handke, Prêmio Nobel de Literatura de 2019, leva sua obra A Segunda Espada – uma história de maio a uma das mais brilhantes narrativas do individualismo e da neurose solitária, enquanto, ao descrever seu mundo, o desconstrói através das palavras.

Num texto que inicialmente parece ir tornando-se confuso, aos ajustes primorosos de Handke - um mestre das palavras - vão encaixando-se as situações, os lugares, o tempo, os personagens e os questionamentos. Trechos lembram até divagações de mentes de idosos em suas indefectíveis reminiscências.

Na primeira frase da obra, Handke consegue apreender toda a sensação permanente de solidão que transmite o protagonista, porquanto só ele tem em seu âmago ferido os motivos da demanda: “Então, essa é a face de um vingador!”, quando se olhou no espelho pela manhã. E o motivo do vingador é a disseminação de uma mentira.

Como em outras obras atuais, mais uma vez apresenta-se aqui uma crítica de um literato ao sensacionalismo jornalístico de uma imprensa que apenas procura seus interesses militantes e comerciais sem escrúpulos, deixando de prestar sua principal função que é a de informar a verdade. E as consequências são inúmeras e muitas vezes fatais, como é o caso desta história. E aqui se torna o fulcro do enredo, como numa caixa de surpresas.

Sua crítica política e pregação pela liberdade são sutis: “Mas há uma coisa que eu sei e sempre soube: quero levar uma vida cavalheiresca. E isso é algo que aqueles lá, do outro lado das montanhas não permitem, sequer conhecem algo assim, não têm a menor ideia do que seja une vie chevaleresque. Libertar-se – mas como? Livrar-se dos assassinos dos andares superiores e ingressar no mundo dos cavalheiros – mas como?”

A meta na vida presente do personagem vem de uma inspiração bíblica de longa data, segundo Handke, onde Deus pede vingança para si e para seu povo, concedendo-lhe, assim, o direito – como membro do seu povo – de também pleitear vingança. E, portanto, o autor explora a subjetividade do personagem ao extremo. As divagações pessoais e até filosóficas inundam o texto, a partir de reminiscências desde a infância.

Assim, encontramos aqui mais um grande mestre na digressão no enredo, como o fizeram consagrados nomes (citados por ele), de Homero a Tolstoi, passando por Cervantes. E ao analisar profundamente o sentimento das pessoas que viajavam com o protagonista em um bonde, Handke até transita pelo surrealismo, descrevendo um leitor com o livro de ponta-cabeça e uma pessoa falando ininterruptamente ao celular inoperante, e o comportamento controverso de outros passageiros no veículo. E, de forma recorrente e inteligente, constrói uma história divagando e tergiversando.

Então, Handke nos traz a história de um homem solitário com uma meta na vida. Um solitário que convive com outros na mesma condição. E cada encontro é uma história, um pensamento, uma reflexão. E esta, corroborada por sua qualidade literária e estilo original, é a condição do livro. Uma obra forte, sucinta e sempre ambivalente. Essa solidão – imensa – nos é relatada nas diversidades do cotidiano, onde Handke chega ao extremo de divagar, séria e filosoficamente, sobre a solidão de insetos, animais e até atletas, comparando-os, inclusive, com marionetes. Como ele escreve: “E todos pareciam ocupados em seus silêncios”.

Ao final, Handke tece uma eloquente narrativa da solidão sentida, onde se á vulnerável e ao mesmo tempo invisível. Aquele despercebido das multidões só é notado e valorizado pelo próprio protagonista, segundo se subentende, sem mágoas. Condição que é difícil de aceitar, sem condicionar-se ao desprezível, ao frágil e ao insignificante. No entanto, enquanto todos passam precipitados em seus egos e devaneios, ele estava feliz, pois era o único a caminhar sob um belíssimo céu azul.

A tudo isso, some-se a permanente expectativa pelo deslanche e pelo desfecho da história, deixando, quem se deleita com um bom texto literário, preso atentamente à leitura.

Este é um livro surpreendente, mais que recomendado para quem procura deleite literário e não apenas uma história bem escrita. Uma obra fadada a ser um clássico.

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Valdemir Martins

08.02.2023

Fotos: 1. Capa do livro:; 2. Olhando-se no espelho; 3. Solitários no bar; 4. Picardia, na Île-de-France; 5. Ruinas de Port-Royal des Champs; 6. Peter Handke.

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13 de jan. de 2023

Nunca deixe de ler Nunca

Nesta que talvez seja a obra mais política e crítica de todas as que li do consagrado Ken Follett, desde seu princípio uma simples palavra incomodou-me como se estivesse lendo com cisco nos olhos. Trata-se do vibrante romance Nunca, onde um de seus principais personagens é Pauline Green, então presidente dos Estados Unidos, mas tratada irritantemente, ao longo das 624 páginas, pelos tradutores, na publicação da Editora Arqueiro, como “presidenta”. Por não ser usual e ter seu curso restrito no idioma em se tratando de Brasil, essa palavra incomodou-me bastante.

Mas, apartando o incômodo, o livro surpreende – como sempre, em se tratando de Follett -, ao trazer-nos a intriga internacional desta vez envolvendo, americanos, franceses, chineses, sul e norte-coreanos, jihadistas, chadianos, sudaneses e japoneses. Os serviços secretos, marca central de boa parte de seus livros, faz-se presente com força neste trabalho, com todas as suas modalidades de atuação, desde a mais inteligente até a mais brutal. É, com certeza, a obra mais ficcional de Follett.

A ideia deste enredo, segundo o autor, surgiu a algum tempo, quando pesquisava dados para escrever Queda de Gigantes, primeiro livro da espetacular trilogia O Século (veja comentário em https://contracapaladob.blogspot.com/2018/07/o-mundo-que-ainda-nao-terminou-1.html ). Como nesse livro, este trata de uma guerra indesejada, mas que tornou-se inevitável. O que nos alerta para repensar as dimensões da atual guerra entre Rússia e Ucrânia, bem como a de Israel contra o Irã (e seus apadrinhados grupos terroristas Hamas e Hezbollah) como presságios terríveis, tornando a obra uma leitura indispensável.

Numa narrativa simples, com ritmo inicialmente lento que vai progredindo até uma narrativa avassaladora e angustiante, a obra abrange política internacional, armamentos modernos, tráfico de pessoas, drogas e armas, bem como trata de xenofobia, terrorismo e estratégias e táticas militares. Os personagens são muito bem desenvolvidos e extremamente instigantes.

As revelações de esquemas e procedimentos escusos e inescrupulosos de ditaduras africanas e asiáticas, bem como a violência dos governos socialistas e comunistas pelo mundo, são outro ponto forte na trama, já que Follett é um profundo pesquisador para sempre embasar suas histórias em dados reais, suas colocações são perfeitamente críveis.

Por ser um romance atual, contemporâneo, a competência de Follett leva-nos a reflexões importantes sobre a inescrupulosa imprensa sensacionalista e militante, algo bastante atual e presente nas importantes democracias ocidentais. Não sem motivos, a personagem presidente é uma inteligentíssima e sensível democrata do partido Republicano ianque que sofre ataques idiotas de políticos e da imprensa domésticos. Algo também hoje comum no mundo ocidental.

Ao introduzir mais uma presidente de uma república asiática, igualmente volta a ser usada a palavra anômala “presidenta”, ali colocada pelos tradutores. E o autor reforça, a seguir, sutilmente a irresponsável atuação da imprensa sensacionalista ao redor do mundo, sempre fomentando discórdia para manter alta audiência.

Follett leva-nos para uma crise política mundial sem paralelo ou imaginação anterior, obrigando-nos a não largar a leitura, tamanha a ansiedade. Apenas abranda-a com flashes familiares e românticos como só ele sabe fazer.  E nesse tom, leva tudo, tudo ao seu limite, tornando o final do livro uma agonia insuportável. E seu final é surpreendente e exatamente compatível com o teor da trama.

Leitura fortemente recomendável por suas qualidades de construção, diálogos inteligentes e dinâmicos, graus de informações atualizadas e níveis de sensações emocionais de alto volume.

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Valdemir Martins

12.01.2023

Ilustrações: 1. Capa Editora Arqueiro; 2. Salão Oval da Casa Branca; 3. Lago Chade; 4. Congresso do Partido Comunista Chinês; 5. O Deserto do Saara; 6. Sede do Governo da Coréia do Norte; 7. Explosão nuclear; 8. Ken Follett.

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18 de dez. de 2022

O Remorso de quem não ler. Assim mesmo. *****

Obras de autores lusófonos devem ser lidas no original para completo desfrute de sua essência. São os casos, por exemplo, de Mia Couto, João Cabral de Melo Neto, José Saramago, João Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Raduan Nassar, António Lobo Antunes e Graciliano Ramos. Há que se saborear com deleite toda a grandeza de seu estilo, sua linguagem, sua sintaxe e semântica, sua sobriedade e ironia, entre outras filigranas imperdíveis e impossíveis de não se refestelar de prazer literário.

Não foge a essa premissa o esplendoroso O Remorso de Baltazar Serapião, do escritor, editor, artista plástico, apresentador de televisão e cantor angolano-português Valter Hugo Mãe. Indispensável é a leitura da introdução de José Saramago a este livro vencedor do prêmio que leva seu nome, em 2007. Nela, nosso único Nobel lusófono define: “Este livro é uma revolução. Este remorso tem de ser lido como algo que traz muito de novo e fertilizará a Literatura. É impossível que não influa no que se escrever daqui para diante.”

Passa-se a história numa aldeia portuguesa na Idade Média, quando uma mulher esposa é tão valiosa quanto uma vaca doméstica. O narrador é apenas um adolescente com a testosterona em explosão trazendo todo o contexto macho/fêmea da época inserido num ambiente familiar e social do lugarejo onde habita.

E num clima que entremeia o fantástico com realidades que chegam a ser cruéis, predomina a desconfiança persistente da traição de uma esposa, não tornada factual pelo insano corno. Então, quando a obra ameaça ficar no marasmo, o rei, uma mulher queimada e uma maldição entram em cena e o romance sai da aldeia, toma novos rumos e a ela retorna. Aqui, Mãe rasga a realidade para criar beirando a desumanidade, onde, ironicamente, prevalece o amor do protagonista.

Uma obra para ser lida com disposição e apetite literários, sem se esperar descrições simples, mesmices românticas e palavreado rotineiro. É, em seu âmago, uma obra de arte de um realismo acentuado e enriquecido pelo fantástico. A violência crua, presença que permeia a obra, dobra-se de quando em quando ao lirismo nato do autor, enriquecendo sobremaneira a leitura.

É, sem dúvida, um texto que exige do leitor algum discernimento do contexto regional e do português lusitano, posto que todas as obras de Valter Hugo Mãe aqui são assim publicadas por exigência do autor. O que é ótimo, pois se traduzido para o português brasileiro perderia totalmente sua essência e seu esplendor.


Não perca esta revolução. Nesta leitura apreende-se a força e a beleza de um descobrimento literário; de um criador artístico sublime revelando uma língua multiforme, multicolorida. E, definitivamente, um enredo poderosamente simples o suficiente para não ser superado pela força técnica e de expressão da própria obra.

Valdemir Martins

18.12.2022  

Ilustrações: 1. Capa Editora 34; 2. Capa Editora Globo; 3. Baltazar Serapião; 4. A vaca Sarga; 5. A mulher queimada; Valter Hugo Mãe.

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30 de out. de 2022

Obra imensamente humana descrevendo Sobrevidas.

Espontaneamente, seria difícil à maioria das pessoas escolher a leitura de um livro sobre a República Unida da Tanzânia, antigos países africanos Tanganica e Zanzibar, unidos em 1964. Havendo a motivação de um Prêmio Nobel de Literatura, como no meu caso, decidi ler Sobrevidas, do tanzaniano Abdulrazak Gurnah, laureado em 2021. E não me arrependi.

Com um início pesado, farto em nomes e parentescos, a obra vai desenrolando-se como um novelo e revelando a brutal história do retardatário colonialismo alemão na África Oriental nos primórdios do século XX. Numa construção de texto diferenciada, fugindo do óbvio, Gurnah não deixa de nos surpreender com fatos inesperados e que vão transformando agradavelmente os rumos do romance.

A utilização impiedosa dos jovens locais recrutados e treinados para compor batalhões violentos contra seu próprio povo e numa guerra colonial contra invasores ingleses, denuncia a opressora civilização colonialista europeia visando a consolidação de impérios pelo mundo. E os países africanos - antes dos asiáticos - sem exceção, foram os que mais sofreram esse massacre humano e cultural brutal, mudando os destinos de grande parte de suas populações. Não sem antes exaurir suas riquezas e a força de seus povos.

Tudo isto está presente neste robusto enredo histórico muito bem trabalhado literariamente por Gurnah, tornando-se uma obra-denúncia de grande força. Em meio ao caos gerado pelos alemães às famílias tanzanianas à época, aspectos humanitários são mesclados aos abusos e à violência. Esta, também presente nos costumes educacionais familiares, marca forte presença na obra.

Em duas frases, no terço inicial do livro, Gurnah expõe a essência deste seu trabalho. Diz o general alemão a um serviçal nativo: “Por isso eu estou aqui — para tomar posse do que é nosso por direito, por sermos mais fortes. Nós estamos lidando com um povo atrasado e selvagem e a única forma de dominá-lo é incutir terror nas pessoas e em seus inúteis sultões e produzir obediência na base da pancada.”. E, nesse tom, os alemães perderam a colônia para os ingleses em violentas batalhas de conquista. A derrota valeu a queda do kaiser na Alemanha, na mesma época em que na Rússia o czar Nicolau Romanov II e sua família eram assassinados para a ascensão do proletariado ao poder.

Mas, a partir do término da guerra e sob a relativa paz do domínio inglês, os habitantes locais começam a retomar ou a reconstruir suas vidas e o autor volta a dar relevo aos personagens principais.

São basicamente quatro protagonistas que se revezam nos capítulos, criando um liame literário fundamental na estrutura do romance. E, na narração de suas vidas, Gurnah desabrocha seu escrito original, simples e objetivo, dando um ritmo muito agradável à leitura. Revela os traços culturais do povo tanzaniano, suas mazelas, costumes e sofrimento com as atrozes intervenções coloniais no cotidiano desse povo. Da história de cada personagem germina basicamente um livro, os quais vão constituir, no terço final da obra, mais um precioso livro, tamanha a riqueza de fatos e narrativas.

Apesar da violência entranhada no texto, trechos de história, lirismo, ingenuidade, força de vontade, coragem, amor e fidelidade tornam a obra imensamente humana a descrever um genocídio e todas as Sobrevidas.

Valdemir Martins

27.10.2022

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Localização da Tanzânia; 3. O povo tanzaniano; 4. Os alemães colonizadores ; 5. Batalha com as tribos; 6. Abdulrazak Gurnah.

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9 de set. de 2022

A boa filha fica em casa

Romances policiais, via de regra, envolvem sempre um criminoso, policiais e investigadores como protagonistas. Não é o caso, por exemplo, do livro A Boa Filha, da norte-americana Karin Slaughter. Nesta obra, a autora nos enreda num clima de desespero cruciante logo no início do livro, não por uma, mas por duas sequências descritivas diferenciadas do mesmo fato, após a narrativa de um brando e corriqueiro cenário familiar. E como num degradê literário invertido, o fato volta a ser relatado quase ao final da obra, numa riqueza de detalhes dramáticos que dificilmente o leitor deixará de se emocionar.

Sim, logo no início o leitor perde o fôlego. Como num tropeção, ele cai de um universo regular para um profundo e assombrador mundo de horrores, pelas descrições apavorantes e nauseantes, que traduzem o mais profundo desespero. Uma dessas sequências é novamente descrita por outra personagem e, sem ser maçante, parece um novo fato.

A autora faz dessas situações seu diferencial literário. E, na sequência, ingressa em narrativas descritivas de detalhes de pressões e fatores psicológicos sem ser cansativa. Neste caminho, constrói cenários, estrutura histórica e constituição dos personagens.
Longe de ser um John Grisham, Slaughter parte para uma nova narrativa onde usa como condimento novo fato mixado com as narrativas anteriores, construindo um romance excepcional e de imensa expectativa, criando grande ansiedade no leitor. Um drama familiar acompanha todo o desenrolar das ações do enredo, tendo até alguns curtos diálogos um pouco maçantes, mas de fundamental importância na estrutura da obra.

Traumas de infância, violência diversa, escatologia, técnicas jurídicas, dramas pessoais e familiares, luto e fisiologia marcam este surpreendente A Boa Filha como um livro denso, porém de leitura fluida e final inesperado. 

Excelente entretenimento com doses culturais.

Valdemir Martins

06.09.2022

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Atentado na floresta; 3. Atentado na escola: 4. Acusação popular; 5. Karin Slaughter.

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18 de abr. de 2022

Véspera: a dramaticidade suprema

Muito provavelmente você jamais colocaria nomes como Barrabás, Zebedeu ou Gestas em seus filhos, pelas evidentes conotações maléficas oriundas da Bíblia. E é um nome precito como esses que traz à baila o contexto do excelente livro Véspera, da talentosa escritora mineira Carla Madeira, segundo autor brasileiro mais lido em 2021.

Num texto envolventemente criativo, Madeira joga com ideias e palavras de forma magistral num enredo narrado em dois tempos, em meio ao alcoolismo, ao radicalismo e temor religiosos e ao forte e pavoroso sentimento de perda em todos os personagens.

A autora coloca em pauta questões religiosas polêmicas, demonstrando a força da religião no caráter das pessoas, com personagens fragilizadas por supostos sacrilégios -tornando-se inseguras e indecisas perante a vida - e até um sacerdote querendo provar que Deus pode ser violento.

Neste conturbado romance, Madeira expõe uma família infeliz que atravessa uma tragédia urbana, no melhor estilo grego, cujos membros, numa disputadíssima prova de revezamento por protagonismo, brilham em suas respectivas performances e tornam-se personagens inesquecíveis do romance brasileiro.

Uma obra que destaca, além dos chamados desígnios de Deus, o livre arbítrio humano e sua capacidade – ou não – de tomar decisões e impor atitudes. O ser humano precisa, para sua sobrevivência e para viver em sociedade, constantemente tomar decisões.

O que comer, o que vestir, que nome dar aos filhos, quanto gastar, dar um presente, escolher amigos, fazer uma reclamação, que curso fazer, que programa assistir, que livro ler, hora do banho, e por aí vai. Intermitentemente e eternamente decidindo. E é disto que a mineira Madeira trata dramaticamente neste livro, demostrando de maneira romanceada, com muita criatividade e num texto deslumbrante, o cotidiano de uma família desestruturada desde suas origens.

Uma decisão errada, uma atitude titubeante, um olhar distraído e pronto, pode-se mudar uma ou várias vidas. Usando esse subterfúgio, a autora explora a complexidade e a diversidade da família na linha central desta sua obra. Consegue levar-nos a uma viagem com todos os tipos de emoções, desde tensão e suspense a leves traços de humor e de familiaridade com personagens e situações.

Carla Madeira é sem dúvida uma das melhores escritoras brasileiras contemporâneas, infelizmente ainda sem o devido reconhecimento do público, e somente recuperada graças à visão literária (e comercial, claro) da Editora Record. Carla lançou seu primeiro livro, “Tudo é Rio”, em 2014 pela Editora Quixote, o qual, apesar do sucesso de crítica, não decolou. Fica a nossa forte recomendação.

Valdemir Martins

15.04.2022 

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Caim e Abel; 3. A loja de ferragens; 4. Matemática; 5. Fazendo tricô; 6. Carla Madeira

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