Nesta que talvez seja a obra mais política e crítica de todas
as que li do consagrado Ken Follett,
desde seu princípio uma simples palavra incomodou-me como se estivesse lendo
com cisco nos olhos. Trata-se do vibrante romance Nunca, onde um de seus
principais personagens é Pauline Green, então presidente dos Estados Unidos,
mas tratada irritantemente, ao longo das 624 páginas, pelos tradutores, na
publicação da Editora Arqueiro, como “presidenta”. Por não ser usual e ter seu
curso restrito no idioma em se tratando de Brasil, essa palavra incomodou-me bastante.
Mas, apartando o incômodo, o livro surpreende – como sempre,
em se tratando de Follett -, ao trazer-nos a intriga internacional desta vez
envolvendo, americanos, franceses, chineses, sul e norte-coreanos, jihadistas, chadianos,
sudaneses e japoneses. Os serviços secretos, marca central de boa parte de seus
livros, faz-se presente com força neste trabalho, com todas as suas modalidades
de atuação, desde a mais inteligente até a mais brutal. É, com certeza, a obra
mais ficcional de Follett.
A ideia deste enredo, segundo o autor, surgiu a algum tempo,
quando pesquisava dados para escrever Queda
de Gigantes, primeiro livro da espetacular trilogia O Século (veja comentário em https://contracapaladob.blogspot.com/2018/07/o-mundo-que-ainda-nao-terminou-1.html
). Como nesse livro, este trata de uma guerra indesejada, mas que tornou-se
inevitável. O que nos alerta para repensar as dimensões da atual guerra entre
Rússia e Ucrânia, bem como a de Israel contra o Irã (e seus apadrinhados grupos terroristas Hamas e Hezbollah) como presságios terríveis, tornando a obra uma leitura
indispensável.
Numa narrativa simples, com ritmo inicialmente lento que vai
progredindo até uma narrativa avassaladora e angustiante, a obra abrange
política internacional, armamentos modernos, tráfico de pessoas, drogas e
armas, bem como trata de xenofobia, terrorismo e estratégias e táticas militares.
Os personagens são muito bem desenvolvidos e extremamente instigantes.
As revelações de esquemas e procedimentos escusos e
inescrupulosos de ditaduras africanas e asiáticas, bem como a violência dos
governos socialistas e comunistas pelo mundo, são outro ponto forte na trama,
já que Follett é um profundo pesquisador para sempre embasar suas histórias em
dados reais, suas colocações são perfeitamente críveis.
Por ser um romance atual, contemporâneo, a competência de
Follett leva-nos a reflexões importantes sobre a inescrupulosa imprensa
sensacionalista e militante, algo bastante atual e presente nas importantes
democracias ocidentais. Não sem motivos, a personagem presidente é uma inteligentíssima
e sensível democrata do partido Republicano ianque que sofre ataques idiotas de
políticos e da imprensa domésticos. Algo também hoje comum no mundo ocidental.
Ao introduzir mais uma presidente de uma república asiática, igualmente
volta a ser usada a palavra anômala “presidenta”, ali colocada pelos
tradutores. E o autor reforça, a seguir, sutilmente a irresponsável atuação da
imprensa sensacionalista ao redor do mundo, sempre fomentando discórdia para
manter alta audiência.
Follett leva-nos para uma crise política mundial sem paralelo
ou imaginação anterior, obrigando-nos a não largar a leitura, tamanha a
ansiedade. Apenas abranda-a com flashes familiares e românticos como só ele
sabe fazer. E nesse tom, leva tudo, tudo
ao seu limite, tornando o final do livro uma agonia insuportável. E seu final é
surpreendente e exatamente compatível com o teor da trama.
Leitura fortemente recomendável por suas qualidades de
construção, diálogos inteligentes e dinâmicos, graus de informações atualizadas
e níveis de sensações emocionais de alto volume.
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Valdemir Martins
12.01.2023
Ilustrações: 1. Capa Editora Arqueiro; 2. Salão Oval da Casa Branca; 3. Lago Chade; 4. Congresso do Partido Comunista Chinês; 5. O Deserto do Saara; 6. Sede do Governo da Coréia do Norte; 7. Explosão nuclear; 8. Ken Follett.
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