A ideia é injetar novidades e revisitações. "A leitura é uma fonte inesgotável de prazer, mas, por incrível que pareça, quase todas as pessoas não sentem esta sede." Carlos Drummond de Andrade
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29 de mai. de 2019
CONTRACAPA/Livros: Este livro não tem rosto de romance.
CONTRACAPA/Livros: Este livro não tem rosto de romance.: Pode-se até ler Svetlana Aleksievitch como se fosse um romance, tamanha a dramaticidade dos escritos da premiada escritora e jornalista b...
23 de mai. de 2019
Este livro não tem rosto de romance.
Pode-se até ler Svetlana Aleksievitch
como se fosse um romance, tamanha a dramaticidade dos escritos da premiada
escritora e jornalista bielorrussa, incluindo o Nobel de Literatura de 2015.
No
seu primeiro livro A Guerra não tem Rosto de Mulher, de 1986, a hoje setuagenária
inicia a obra num prólogo já emocionante, estarrecedor e dramático. E, numa
relevante e construtiva postura feminista, esclarece e inicia sua inédita e
importante inversão das narrativas sobre as guerras:
Trabaladora, pegue em arma! |
“Não sabíamos como era o mundo sem guerra, o mundo da guerra
era o único que conhecíamos, e as pessoas da guerra eram as únicas que
conhecíamos. Até agora não conheço outro mundo, outras pessoas. Por acaso
existiram em algum momento? A vila de minha infância depois da guerra era
feminina. Das mulheres. Não me lembro de vozes masculinas. Tanto que isso ficou
comigo: quem conta a guerra são as mulheres. Choram. Cantam enquanto choram.”
Menina na guerra |
Por essa conclusão lógica, constatou então que tudo o que se
falava, escrevia e consagrava sobre as guerras era através da voz masculina. E,
depois de inúmeras pesquisas e entrevistas com mulheres que viveram a guerra, concluiu
que os relatos femininos são distintos e falam de outras coisas: “A guerra ‘feminina’
tem suas próprias cores, cheiros; sua iluminação e seu espaço sentimental. Suas
próprias palavras. Nela, não há heróis nem façanhas incríveis, há apenas
pessoas ocupadas com uma tarefa desumanamente humana. E ali não sofrem apenas
elas (as pessoas!), mas também a terra, os pássaros, as árvores”. E completa: “Um
mundo inteiro foi escondido de nós. A guerra delas permaneceu desconhecida…
Quero escrever a história dessa guerra. A história das mulheres”, esclarece
Svetlana.
Sapadoras no cerco de Moscou |
Assim surge a monumental crônica feminina sobre a Segunda
Guerra Mundial, mais especificamente nos confrontos entre nazistas e Exército
Vermelho soviético, com passagens pela Revolução Bolchevique sob a tutela do
carniceiro ditador Stálin. Trata-se, sobretudo, de um livro para pessoas
sensíveis e corajosas, tanto homens como mulheres, interessados na verdade
nunca contada - nem imaginada - sobre os reais bastidores das guerras, com mais
de um milhão de mulheres tanto na retaguarda como na linha de frente dessas
batalhas.
Batalhão de fuzileiras |
A Academia Sueca atribuiu valor e poder a uma obra e estilo
inéditos. Em séculos de literatura nada nesse gênero havia sido escrito.
Svetlana criou, assim, um novo gênero literário classificado como novela
coletiva. Ou seja, com seus textos
a meio caminho entre a literatura e o jornalismo, ela usa a técnica
de “colagem”, justapondo testemunhos individuais com o que consegue
aproximar-se mais da substância humana dos fatos.
As temidas aviadoras soviéticas |
Não se consegue encontrar algo
no estilo aproximadamente similar nem nas obras dos norte-americanos Truman
Capote, Gay Talese, Tom Wolfe e Norman Mailer, precursores do jornalismo
literário. Não se trata de escrever ensaio ou crônica sobre um único
fato individual ou familiar, mas sim de uma tragédia coletiva de uma época
longa baseado em dezenas de testemunhos explícitos de inúmeras mulheres,
arrancados de suas almas.
Mulher em luta corporal |
A sofrida e feroz vitória soviética sobre os nazistas
custou mais de 20 milhões de vidas humanas em quatro anos e só foi conseguida
graças à imensa participação das mulheres soldados com idades entre catorze e
mais de cinquenta anos. Sim, isso mesmo: de crianças a idosas.
Em
nome da Revolução Bolchevique, o inescrupuloso e homicida Stálin, já em 1937,
três anos antes de se enfiar na guerra contra os alemães com seu Exército
Vermelho, começou a eliminar dessa hoste milhares de soldados e principalmente
comandantes “não confiáveis” para se garantir no poder, consolidando sua
ditadura sanguinária. E, assim, como não havia homens suficientes na União
Soviética, as mulheres tiveram que se sacrificar heroicamente na defesa da
pátria.
Órfãos soviéticos |
Antes
da metade do livro você se convence que pouco conhece de guerra. Tudo o que
sabe é o básico, histórico, técnico, de heroísmo barato, com muito pouco
sentimento. Pois Svetlana é implacável em sua apresentação crua, real,
detalhada e humana da guerra. Sim, você vai ponderar: no meio de algo tão
animalesco a guerra é humana. Em meio a algo tão “desumano” são as atitudes femininas,
das soldados lá engajadas para vencer e sobreviver, que se destacam os atos
heroicos e extremamente humanos, dilacerando a alma, a mente e a vida dessas
guerreiras chamadas então de “irmãzinhas” por seus companheiros de batalhas,
fugas, fome, frio, destruição e atrocidades. Enfim, de verdadeira carnificina.
Svetlana Aleksievitch |
Neste
livro, dezenas de depoimentos emocionantes, brilhantemente arrematados e
organizados por Svetlana ao longo de anos, traduzem o ineditismo do massacre
que foram os embates entre soviéticos comunistas e alemães fascistas (como são
tratados pela autora), moldados pelos inacreditáveis destinos de patrióticos
soldados soviéticos tratados como traidores pelo totalitarismo gélido e
sangrento do alto comando stalinista.
Depois
deste livro você vai encarar novas narrativas de guerras com outra visão. E vai
concluir que tudo que já leu sobre os conflitos bélicos não tem realmente rosto
de mulher.
Valdemir Martins
Em
22/05/2019.
Outros livros da autora publicados no Brasil pela Companhia das Letras: O Fim do Homem Soviético, Vozes de Chernobil, As Últimas
Testemunhas e Rapazes de Zinco.
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13 de mai. de 2019
Flores para Algernon: a vida por trás de uma janela.
Ler “Flores para Algernon” incomoda. Desde
o início, onde parece que estamos lendo com areia nos olhos. A escrita com
grafia errada e encoberta propositalmente pelo norte-americano Daniel Keyes para reforçar a condição
de retardado mental do protagonista Charlie, por quarenta páginas iniciais, é o
que dá início ao incômodo. Mesmo assim, o leitor não desgruda do livro.
Então, a ansiedade de Charlie torna-se contagiante e atinge
quem está lendo sua luta para ficar inteligente, seja na padaria onde trabalha,
no laboratório experimental ou nas consultas médicas. Seja nas disputas com
Algernon. E, aos poucos, o texto começa a mudar e o personagem começa a desabrochar,
como uma flor cercada de espinhos.
Charlie após cirurgia |
Começa então a ficar clara a proposta de Keyes de ir
desmontando, gradualmente, as imagens que se constrói das pessoas, sejam elas
doutores, estudantes, genitores ou simples trabalhadores braçais. Não só no
texto, mas em reflexões sobre a vida real ao que o leitor é instigado pela
força extraordinária da obra. Com intensa profundidade psicológica, o livro
leva-nos a constatar - mais uma vez em ponderações – o quanto as mensagens que
nos foram passadas durante a infância e a juventude influenciaram a formação de
nosso caráter. E depois da leitura muita coisa pode mudar nos conceitos dos próprios
leitores.
Labirinto montado por Chalie |
As mensagens bruxas, que nos são transmitidas através das
falas e das atitudes de terceiros durante nosso período de desenvolvimento
intelectual, desde uma surra, puxões de orelha ou punições durante a infância
até aqueles comentários inconsequentes – tipo “você é um inútil” ou “nunca
vai ser ninguém na vida” ou ainda “Deus
vai te castigar...” -, podem, inconscientemente, levar algumas pessoas a
ser covardes, tímidas, agressivas ou pior, até psicopatas. Cada um acumula ou
desenvolve de forma diferente, de acordo com a atmosfera em que cresce: seu
ambiente familiar, suas amizades, sua educação, seus costumes. Agora,
consciente de seus antecedentes pessoais, imagine se acontecesse com uma mente
retardada.
Assim é com o protagonista, cuja evolução leva-o a enxergar
com absoluta clareza os fatos, pessoas, locais e mensagens que lhe foram
infligidas. Ele aprende tudo extraordinariamente rápido, mas não consegue evoluir
emocionalmente e lidar com seus sentimentos.
Charlie e sua paixão |
Apesar de fortemente densa, a obra flui com leveza, num
romance de ficção científica extremamente interessante e de leitura cativante,
claro, agora não mais com areia nos olhos. Do meio para o fim, a história sofre
uma reviravolta com alterações no protagonista e em seu coadjuvante. E, de
surpresa em surpresa, a obra consolida-se como um debate profundo sobre a
bondade, o relacionamento humano e a solidão. Por uma das personagens
principais, causadora de problemas e crises importantes na história, Keyes
demonstra o perigo de se ter aquela preocupação “do que os outros vão pensar”
e, assim, tornar-se uma pessoa egoísta em prejuízo inconsciente de quem se ama
de verdade.
Daniel Keyes |
O livro é um clássico da literatura norte-americana e adotado
lá como leitura básica em muitas escolas de segundo grau. Consideram-na importante na formação dos jovens por
despertá-los para o fato de que professores, chefes, líderes religiosos,
atletas e até mesmo nossos desafetos ou amados são pessoas como nós. Têm
sentimentos variáveis, dores na alma, problemas de alguma ordem, defeitos de
personalidade, doenças invisíveis, frustrações diversas e também seus próprios desafetos.
Keyes, nesta obra, apresenta-nos a vida que temos – o
cotidiano - por trás de uma janela. A janela da própria vida. Com muita
simbologia, constrói uma obra pungente, extremamente dolorida, apesar de
fascinante e assaz emocionante. Como já disse, ler esta obra incomoda. Ninguém
sai incólume à leitura de Flores para Algernon.
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Sobre o livro:
Entre
os temas mais recorrentes da ficção científica, a percepção de múltiplas
realidades já abriu margem para narrativas clássicas e questões tão profundas
quanto um buraco negro. Afinal, o mundo que sempre percebemos a nossa volta
realmente existe? Mas para além dos portais interdimensionais, o autor
norte-americano Daniel Keyes manteve os pés no chão dentro do universo scifi e
apresentou uma história que explora o conceito, ao mesmo tempo que impacta por
sua delicadeza. Publicado originalmente em 1966, Flores para Algernon foi o
grande expoente da carreira do escritor, ganhador do prêmio Nebula e inspiração
para o filme Os Dois Mundos de Charly (1968) – que garantiu a Cliff Robertson o
Oscar de Melhor Ator. E com mais de cinco milhões de exemplares vendidos é
referência dentro das escolas dos Estados Unidos. (Editora Aleph)
Sinopse
(com spoiler):
A obra
surgiu sobre as palavras de um homem de 32 anos e 68 de QI: Charlie Gordon. Com
excesso de erros no início do romance, os relatos de Charlie revelam sua
condição limitada, consequência de uma grave deficiência intelectual, que ao
menos o mantém protegido dentro de um “mundo” particular – indiferente às
gozações dos colegas de trabalho e intocado por tragédias familiares. Porém, ao
participar de uma cirurgia revolucionária que aumenta o seu QI, ele não apenas
se torna mais inteligente que os próprios médicos que o operaram, como também
vira testemunha de uma nova realidade: ácida, crua e problemática. Se o
conhecimento é uma benção, Daniel Keyes constrói um personagem complexo e
intrigante, que questiona essa sorte e reflete sobre suas relações sociais e a
própria existência. E tudo isso ao lado de
Algernon, seu rato de estimação e a primeira cobaia bem-sucedida no processo
cirúrgico. (Editora Aleph)
Preço
médio R$ 48,00. Em algumas lojas Saraiva e no site Amazon R$ 30,90. E-book
Kindle R$ 23,48.
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