Confusão é o
sentimento de que Julian Barnes impregna o início de sua consagrada obra
O Ruído do Tempo, em função de sua proposital fragmentação
narrativa. Cabe ao leitor, no seu deleite, ir juntando as peças e informações para
descobrir a formação inicial de um brilhante texto.
Confusa também é a
sofrida história do músico russo Dmitri
Dmitriyevich Shostakovich, compositor e
pianista da era soviética que se tornou internacionalmente conhecido em
1926 após a estreia de sua Primeira Sinfonia, composta aos 19 anos, e
foi considerado ao longo de sua vida como um grande compositor. Barnes fala da
infância complicada do protagonista que o obrigou a ser o “homem da casa” logo
cedo, aos 16 anos. Mas, com todo o seu talento, nesses tempos já era um talento
precoce e brilhava nos palcos de Moscou. Mas apesar disso e mesmo após a
consagração, sempre se sentiu um menino perdido.
Teve uma
relação extremamente complexa e crítica com o regime comunista. Quando estava
ainda no Conservatório, a Associação Russa de Músicos Proletários
iniciava então uma campanha contra a hegemonia das elites nas artes, na qual
Shostakovich estava incluído, pregando que “os trabalhadores tinham que ser
treinados para se tornar compositores, e toda a música viria a ser
instantaneamente compreensível e agradável às massas”. Além de utópico, isso
contrariava frontalmente sua formação iniciada com a mãe ao piano desde os nove
anos.
Além do
azar de Stálin não ter gostado de sua sinfonia, teve que enfrentar o Estado que
acabou assumindo também as tarefas das artes e os burocratas do Regime passaram
a controlar a produtividade também dos músicos, não importando sua qualidade.
Sua ópera Lady Macbeth de Mtsensk, consagrada até internacionalmente
recebeu crítica positiva do Pravda por ser uma conquista internacional
soviética, mas quando os humores políticos internos mudaram, o mesmo Pravda
destruiu e ridicularizou a obra por se tratar de uma expressão depressiva da
burguesia.
E, como
delata Barnes, o controle das artes passou a assumir um nível de censura
política e social de forma radical e absurda, por pessoas absolutamente
ignorantes e brutais. Daí a patente queda das artes soviéticas, principalmente
russas, enquanto durou o bolchevismo. Dali para frente na história, as
manifestações artísticas em regimes social-comunistas basicamente deixaram de
existir, em função do baixíssimo nível do que era produzido para manipular as
massas ignorantes e rústicas. O que perdura até hoje nesses padrões de regimes
quase sempre totalitários.
Mas, por
diversos motivos, Shostakovich foi sobrevivendo, submetendo-se na maioria das
vezes aos caprichos dos líderes comunistas e aos censores. Sua potente e
grandiosa Quinta Sinfonia em Ré menor, opus 47, de 1937 – sua primeira
obra dentro das novas regras governamentais – traz uma poderosíssima crítica
imperceptível ao regime e o consagra internacionalmente. E assim, com muita
inteligência, esperteza e competência foi conduzindo sua vida e obra sob
permanente coação e intimidação. E é nas reflexões do protagonista onde Barnes
desfila toda a ironia, questionamentos e paixões de Shostakovich com relação ao
regime soviético, seus líderes e tiranos em geral.
Sua
música expressa o colorido orquestral da escola russa e a diversidade de uma
enorme produção em todos os gêneros. Apesar de criticado por sua forçada adesão
política, era admirado por compositores da grandeza de Bela Bartok e respeitado
por contemporâneos como Stravinsky e Prokofiev. Mas, a qualidade de sua obra se
impôs e se mantém nos programas de todas as salas de concerto da atualidade.
E sua
música, como praticamente a completude delas, sobreviveu ao totalitarismo.
As obras de Shostakovich superaram o ruído do tempo e da história.
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Valdemir Martins
28.01.2024
Fotos: 1. Capa do livro; 2. Shostakovich pela FineArt America; 3. Cena da ópera Lady Macbeth; 4. Shostakovich compondo; 5. Capa da revista Time; 6. Recebendo a notícia da doença fatal; 7. Julian Barnes.